Patrocínio:
Parceiro institucional:
O custo sistêmico da desigualdade: como a violência contra mulheres impacta a competitividade empresarial brasileira. (pvproduction/Freepik)
Diretora Executiva do Instituto Natura
Publicado em 29 de junho de 2025 às 07h00.
O Brasil encerrou 2024 com um aumento alarmante nos casos de violência contra mulheres, segundo o Mapa da Violência divulgado este mês pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Foram registrados 1.459 feminicídios - o maior número da série histórica - e mais de 83 mil casos de estupro, com média de 227 pessoas violentadas por dia, 86% delas do sexo feminino.
Poderíamos discutir se este aumento se deve de fato ao crescimento das ocorrências ou dos registros, mas creio que não chegaríamos a uma resposta conclusiva.
O que os dados deixam evidente é: vivemos em um país onde ser mulher continua a representar risco de morte.
Não se trata apenas de uma tragédia moral e social. Trata-se também de um alerta econômico, empresarial e estratégico.
Afinal, é possível prosperar ignorando a sociedade em que estamos inseridos? Podemos ter empresas saudáveis e inclusivas em um país que trata mal suas mulheres e meninas? Podemos gerar lucro duradouro com exclusão, violência e instabilidade ao nosso redor?
O pragmatismo empresarial deveria conduzir as lideranças justamente à contemplação dessas perguntas difíceis.
Nossa capacidade de avançar na construção de um futuro desejável depende, antes de tudo, de nossa disposição para encarar as perguntas difíceis que nos interpelam. Ou ignorá-las... por nossa própria conta e risco.
O Brasil é a 8ª maior economia do mundo em Produto Interno Bruto (PIB), mas ocupa o 84º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e amarga a 115ª posição no ranking global de paz e saúde para mulheres.
Ou seja, geramos riqueza, mas falhamos em transformá-la em bem-estar, segurança e oportunidades. Isso impacta diretamente o consumo, a inovação e a produtividade. Afeta todas as empresas, sem exceção.
A comparação internacional ajuda a iluminar esse paradoxo. Dos dez países com melhor desempenho em desenvolvimento humano, seis estão também entre os dez mais bem posicionados em paz e saúde para mulheres. Coincidência? Muito pouco provável.
Alicerçado em ampla e rigorosa análise de dados empíricos transnacionais, o livro The First Political Order: How Sex Shapes Governance and National Security Worldwide , analisa a conexão entre a subordinação sistemática das mulheres em uma sociedade e seu impacto sobre a governança, a estabilidade social e o desenvolvimento econômico.
A obra introduz o conceito de síndrome patrilinear, conjunto de normas sociais que sustenta a dominação masculina sobre a estrutura da sociedade.
Essa síndrome se manifesta na exclusão das mulheres da vida pública, na violência de gênero, no controle sobre sua autonomia e autodeterminação.
Seus efeitos são claros: instabilidade política, baixa governança, corrupção, desigualdade, insegurança alimentar e crescimento econômico anêmico.
O estudo revela algo notável: a presença da síndrome patrilinear é um preditor mais confiável de fragilidade estatal do que renda per capita, urbanização ou indicadores de governança.
O Brasil, nesse índice, marca 6 pontos em uma escala de 0 a 16. Está, portanto, no grupo de países onde a desigualdade de gênero estrutural ainda é presente e operante — embora de alguma forma mitigada.
Quando olhamos para os números recentes de feminicídio e estupro à luz desse conceito, compreendemos melhor o que está em jogo.
A violência de gênero não é apenas uma expressão de crueldade individual. É sintoma e motor de uma engrenagem maior, que perpetua insegurança, paralisa o desenvolvimento e mina a coesão social.
O Centro-Oeste brasileiro, por exemplo, lidera em taxa de feminicídio por 100 mil mulheres (1,87), superando a média nacional (1,34).
Estados da Região Norte concentram os maiores índices de estupro proporcional: Rondônia (87,73), Roraima (84,68) e Amapá (81,96).
Esses números revelam vulnerabilidades institucionais que vão muito além da esfera criminal: indicam zonas de colapso do tecido social e insuficiência da rede pública de proteção. E, por isso, de risco para qualquer atividade econômica.
É hora de as empresas brasileiras, orientadas por seu próprio pragmatismo, reconhecerem que não há prosperidade possível em meio à desolação humana. Não é idealismo: é inteligência de mercado.
Diversidade e equidade de gênero, por exemplo, já demonstraram impacto positivo comprovado na inovação, na lucratividade e na resiliência empresarial. Mas esse argumento precisa ser ampliado:
A equidade não pode ser vista apenas como diferencial competitivo; deve ser entendida como uma das condições estruturantes para o desenvolvimento sustentável.
Marcel Proust propôs que “a verdadeira viagem de descoberta não consiste em buscar novas paisagens, mas em ter um novo olhar”.
As lideranças empresariais em sua inescapável tarefa de compatibilizar necessidades de curto prazo e pensamento de longo prazo, ética corporativa e pragmatismo, são convocadas a ampliarem suas definições de sucesso.
As empresas mais bem-sucedidas do futuro serão as que integram o pensamento sistêmico à suas estratégias e práticas, capazes de entregar valor econômico, social, humano e ambiental.
As crises que enfrentamos são interdependentes - não se pode combater a pobreza ignorando o racismo, nem impulsionar a economia ignorando a violência contra mulheres.
O caminho para um país mais próspero e justo começa com um novo olhar — e com a coragem de encarar a verdade sobre quem somos e o que precisamos transformar.