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O cientista Carlos Nobre em Davos, durante o Fórum Econômico Mundial, em janeiro de 2025.
Editora ESG
Publicado em 17 de junho de 2025 às 07h02.
Última atualização em 17 de junho de 2025 às 07h34.
Ao mesmo tempo em que se prepara para sediar a COP30 em Belém, marco histórico como primeira conferência climática da ONU realizada na Amazônia, o Brasil vive uma ofensiva contra instrumentos de proteção ambiental.
Nesta terça-feira (17), um deles estará no centro das atenções: o leilão para exploração da Foz do Amazonas, que acontece cercado por polêmicas, num processo que incluiu pedido de suspensão por parte do Ministério Público Federal e ações judiciais por parte de petroleiros.
Contudo, a tensão que deve crescer nos próximos dias é a que envolve o Projeto de Lei 2.159/2021, uma proposta que flexibiliza significativamente as regras para licenciamento de atividades potencialmente poluidoras.
Aprovada no Senado em maio passado, o PL representa mais que uma mudança regulatória. Simboliza, apontam especialistas, uma queda de braço entre modelos de desenvolvimento que definirão o futuro ambiental brasileiro.
De um lado, setores econômicos tradicionais pressionam por maior relaxamento. De outro, a comunidade científica alerta para os riscos de desmantelamento de salvaguardas ambientais construídas arduamente ao longo de décadas.
O cientista climático Carlos Nobre, que participou do primeiro relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) em 1990 e testemunhou quatro décadas de evolução da situação climática no Brasil, ocupa posição singular para analisar o contexto de agora.
Atualmente titular da Cátedra de Clima e Sustentabilidade da USP, Nobre destaca o que considera o maior dos paradoxos.
Enquanto observa maior consciência pública e empresarial sobre a emergência climática, vê justamente nos setores produtivos mais afetados pelas alterações do clima a persistente resistência às políticas de mitigação.
Nesta entrevista à EXAME, o cientista explica como viu na tragédia do Rio Grande do Sul em 2024 o momento catalisador da percepção nacional sobre o impacto das mudanças climáticas.
E analisa de forma mais aprofundada o que está por trás da estratégia de fragilização do licenciamento ambiental e avalia os desafios para posicionar o Brasil como protagonista na COP30.
Para Nobre, a articulação sistemática para afrouxamento do PL 2.159/2021 transcende governos específicos e está relacionada principalmente à bancada ruralista, que tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado brasileiro representa 60% da composição.
Essa influência política materializa-se numa agenda expansionista que, segundo ele, fundamenta-se em comparações históricas inadequadas.
"Geralmente, utilizam exemplos de países desenvolvidos – Estados Unidos, China, Japão –, alegando que essas nações já utilizaram dois terços dos seus biomas para agricultura. Porém, esse argumento é falacioso, pois nesses países o grande desmatamento ocorreu séculos atrás."
Para ilustrar a inadequação temporal dessas comparações, Nobre cita alguns marcos históricos precisos: "O ano de maior desmatamento da Alemanha foi 1863, enquanto nos Estados Unidos foi em 1911", explica.
Após esses períodos, ambas as nações diminuíram a área desmatada e iniciaram processos de restauração. "E a China, hoje, tem o maior programa de restauração de biomas do mundo", complementa.
A resistência da agropecuária às medidas climáticas constitui, para o climatologista, um dos paradoxos mais desconcertantes da atual conjuntura ambiental.
"Esta é uma realidade global e até difícil de entender, porque a agropecuária tem sido muito prejudicada pelos eventos climáticos extremos", pondera. "E no lugar de responder à situação com adaptação tecnológica, a resposta do setor tem sido a busca por compensações governamentais."
São muitas as alternativas já disponíveis para equalizar os problemas.
De acordo com Nobre, tanto a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) quanto universidades especializadas em ciências agrárias desenvolveram e demonstraram tecnologias avançadas, com fazendas pecuárias que alcançam praticamente emissão zero.
O cientista ressalta ainda que a agricultura e a pecuária regenerativas apresentam maior resistência aos extremos climáticos, oferece maior lucratividade e eficiência, além de utilizar área significativamente menor.
Com a proximidade da Conferência do Clima em Belém, Nobre revela preocupações sobre possíveis tentativas de interferência por parte do agronegócio internacional - em sua visão, os mais prováveis antagonistas da Cúpula.
Entre ambientalistas, circulam informações de uma suposta reunião que vem sendo planejada para reunir a agropecuária brasileira e de várias partes do mundo em Marabá, também no Pará, no final de outubro. A escolha da região não é casualidade:
"É o lugar mais desmatado da Amazônia", lembra o cientista. O objetivo do fórum, quase simultâneo à COP30, seria conferir à cúpula brasileira a alcunha de "COP do Agro".
"Como já aconteceu nas anteriores, em que as COPs 27, 28, 29 foram COPs do petróleo. Mas aqui não estaríamos falando da COP do agro sustentável."
Embora ressalte não ter confirmação desses planos, o climatologista considera que, caso essas iniciativas se concretizem, será necessária uma resposta contundente e organizada.
Há cerca de um mês, o Brasil anunciou um time de 30 enviados especiais que, divididos por setores, terão a missão de engajar segmentos econômicos e regiões sobre suas responsabilidades na conferência.
Semanas depois, André Corrêa do Lago, presidente da COP, destacou em entrevista à EXAME o trabalho que já vinha sendo feito por Roberto Rodrigues, designado como enviado especial na agricultura.
Para Carlos Nobre, a exemplo do que tem acontecido em outras nomeações do governo atual, a escolha revela uma estratégia de conciliação que pode limitar avanços em sustentabilidade.
A lógica política por trás dessas escolhas, complementa, busca legitimidade junto ao campo, contudo tende a comprometer objetivos ambientais mais amplos.
"Este é um padrão que se repete em outras áreas estratégicas, como energia, pois não temos um representante que possa efetivamente acelerar a transição dos combustíveis ", opina.
Sobre o campo dos combustíveis fósseis, tradicionalmente visto como inimigos das medidas climáticas, a avaliação do cientista traz um um parecer surpreendente.
"Existem pouquíssimos negacionistas na indústria petrolífera. E setores de petróleo, gás natural e carvão têm consciência de seu impacto no aquecimento global", pontua.
A diferença, segundo ele, está na estratégia temporal: "Todos concordam com a transição. O que querem é uma transição mais lenta", explica.
Questionado sobre se identifica maior sensibilidade de outros setores da iniciativa privada às questões climáticas - fenômeno observado em encontros empresariais globais como o Fórum Econômico Mundial de Davos, onde o tema assumiu centralidade em janeiro deste ano e o próprio Nobre dividiu o palco com bancos e empresas - o climatologista confirma essa percepção.
Para explicá-la, aponta elementos inéditos da tragédia que há pouco mais de um ano atingiu o Sul do Brasil, apesar de outras catástrofes climáticas anteriores terem registrado números de mortes similares ou superiores.
"Uma das hipóteses que discuti com colegas é que essa transformação pode ter resultado da duração excepcional do evento e da presença midiática sem precedentes", reflete.
"Não me recordo de outra ocasião em que o Jornal Nacional tenha permanecido tantos dias consecutivos transmitindo diretamente de uma área inundada", analisa o cientista.
A presença simultânea de autoridades federais, incluindo o presidente Lula e a ministra Marina Silva, reforçou a percepção de urgência nacional, culminando também em uma maior receptividade empresarial ao assunto.
A realização da COP30 em Belém configura, na análise de Carlos Nobre, oportunidade única para redefinir prioridades globais climáticas através da abordagem de vetores de emissão tradicionalmente negligenciados.
"Essa COP precisa levar em consideração que aproximadamente 23% das emissões globais derivam do uso da terra - 10 a 11% do desmatamento e o restante da agropecuária", contextualiza o climatologista.
Numa convergência estratégica inédita, a localização amazônica permite convergência entre duas agendas tradicionalmente fragmentadas: clima e biodiversidade.
"É a primeira vez que conseguimos realizar uma COP praticamente idêntica à COP da biodiversidade, demonstrando que a Amazônia está na iminência do ponto de não retorno", observa.
Para o cientista, a conferência brasileira pode estabelecer novos parâmetros para governança climática global, demonstrando que desenvolvimento sustentável na Amazônia representa não apenas viabilidade ambiental, mas economicamente superior ao modelo predatório.
Uma perspectiva que posiciona o Brasil não apenas como anfitrião, mas como protagonista de uma mudança de paradigma que integra conservação, desenvolvimento econômico e estabilidade climática global.