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Operários, obra de Tarsila do Amaral (//Reprodução)
Colunista
Publicado em 1 de maio de 2024 às 08h07.
Por Luiza Alvernaz*
Quase que imediatamente, quando penso na população brasileira, lembro-me da obra “Operários”, de Tarsila do Amaral. Aqueles rostos diversos — que, amontoados, encaram o espectador —, tão semelhantes, mas diferentes em igual medida.
Somos enriquecidos pela variedade de tonalidades de pele, de tipos de cabelos; pelas vestimentas, coloridas ou neutras, que preenchem os espaços entre cabeças; pelas bocas, pelos olhos, pelos narizes. Cada feição pintada pela artista reflete uma distinta história deixada para trás, mas resgatada através dos traços físicos que formam cada indivíduo ali.
A modernista, além de representar o processo de industrialização de São Paulo e a classe operária, foi capaz de reproduzir, com êxito, a diversidade étnica característica da nossa população. O rosto do brasileiro não pode ser determinado ou limitado por um estereótipo — e Tarsila sabia disso.
Assim, indiretamente, ela retrata sobre a tela uma das características mais valiosas que se esconde nas células de todos nós: o DNA brasileiro e o seu mosaico de genomas de diferentes partes do mundo. Por comportar fragmentos de DNAs indígenas, africanos, europeus e asiáticos, investigar o código genético do povo do Brasil também é, parcialmente, analisar vários outros que, em conjunto, explicitam uma história marcada por movimentos migratórios.
Em entrevista, a Dra. Lygia da Veiga Pereira, chefe do Laboratório Nacional de Células Embrionárias (LaNCE) e CEO da Gen-t, empresa que busca criar um banco genético latino-americano, comenta a grande interdisciplinaridade do sequenciamento do DNA brasileiro.
Segundo ela, se um indivíduo que não soubesse nada da história da formação do povo brasileiro analisasse esse genoma isoladamente, ele entenderia que há um encontro de populações ancestrais que, ao longo do tempo, miscigenaram-se. Grande parte dos brasileiros do Sul, por exemplo, tende a apresentar frações maiores de ancestralidade europeia, enquanto grande parte dos brasileiros do Nordeste tende a apresentar traços maiores de genomas africanos, consequências da colonização europeia e do tráfico negreiro.
Além disso, a análise do genoma indígena, que está presente em frações muito menores do que as outras, gera o seguinte questionamento: o número de pessoas dessa população sempre foi pequeno ou ela sofreu alguma barreira no processo de miscigenação? São os documentos históricos, que narram a formação do povo brasileiro desde o primeiro contato entre indígenas e europeus, que contextualizam as informações encontradas e sugerem respostas a dúvidas como essa.
Ainda que registros e declarações marquem a miscigenação entre povos e esclareçam o motivo de tamanha diversidade, ela representa, percentualmente, um valor mínimo, uma vez que o genoma humano é cerca de 99% igual em todos os indivíduos da espécie.
Nessa maior porção, encontram-se genes que expressam aspectos biológicos adquiridos durante a evolução, como os polegares opositores, a codificação de proteínas especiais para cada célula do corpo, a formação do embrião no útero materno, entre outros.
Portanto, em sua maioria, o genoma da espécie humana narra uma história comum a todos nós, mas que tem seu final modificado de acordo com cada individualidade. Essa relação é, de certa forma, similar às reescritas de clássicos, como Chapeuzinho Vermelho, que apresentam um final inesperado: o conto sempre começa com a menina indo visitar sua avó doente, prossegue com sua passagem pelo bosque e se intensifica na perseguição do lobo.
O desfecho, no entanto, muda de acordo com a versão: em uma, o caçador captura o lobo antes deste sequer entrar na casa da vovó; em outra, o lobo devora-os e sai vitorioso; em uma terceira, por exemplo, ele é surpreendido pela própria chapeuzinho disfarçada de sua avó.
Da mesma forma que os diferentes finais particularizam cada versão de Chapeuzinho, menos de 1% do genoma é responsável por nossas diferenças. Desta forma, a maior parte dele nos torna humanos, seres de uma mesma espécie, mas é sua minoria que nos diversifica em múltiplos aspectos. À primeira vista, assim como o representado por Tarsila em “Operários”, a variedade de aparências expõe que somos diferentes e até sugere de onde nossos ancestrais vieram.
Essa particularização, porém, não se limita a aspectos físicos, mas também se relaciona a predisposições para doenças, como Alzheimer ou tipos específicos de câncer. Indivíduos de uma mesma etnia podem, assim, apresentar uma predisposição genética em comum para certa condição: é o caso, por exemplo, de algumas populações indígenas da Amazônia que, de acordo com um estudo realizado pela Dra. Lygia em parceria com a Prof. Tabita Hünemeier, também geneticista e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), apresentam maior incidência de variações genéticas protetivas contra a doença de Chagas.
O reconhecimento de tais características e variações é fundamental para o âmbito da saúde pública. A partir dessa análise, é possível definir, dividir e distribuir, de maneira mais eficiente, verbas monetárias para serviços de pesquisa, tratamento e prevenção, contribuindo para o fomento de uma medicina cada vez mais precisa. Assim, uma nação conhecer as características genéticas de sua população não é apenas um ato científico, mas também de alcance político e econômico, sobretudo num país tão populoso.
Segundo o novo censo do IBGE (2022), a população do Brasil é constituída por mais de 203,1 milhões de pessoas. Dado tamanho volume, perguntei à especialista Dra. Lygia quantos genomas precisam ser sequenciados, em valores percentuais ou concretos, para a formação de uma base sólida e confiável que represente a variedade do genoma brasileiro.
Ela responde: “Essa é uma pergunta muito difícil. Pra você ter uma ideia, a Inglaterra já sequenciou quinhentas mil pessoas; estamos falando de um país que tem uma população, do ponto de vista genético, muito mais homogênea e menor do que a nossa. Os Estados Unidos estão sequenciando um bilhão, por exemplo. Então depende do tipo de pergunta [em relação à genética brasileira] que você quer responder, mas se eu fosse te dar uma ordem de grandeza seria essa: centenas de milhares, e talvez até milhões, de pessoas para conseguirmos aprender tudo o que a gente pode a partir dos genomas brasileiros”.
Para os geneticistas do Brasil, portanto, o trabalho pela frente é longo e árduo. No entanto, ainda que estejamos longe de finalizar um projeto como esse, a ideia de mergulhar a fundo na variedade imensurável dos pares de base de múltiplos 1% de DNA, sem dúvidas, excita os amantes da ciência e da saúde. Ainda que seja apenas uma fração mínima do código genético que nos diferencie, a infinidade de combinações possíveis engloba, em si, vestígios de nosso passado humano.
Desta forma, não seriam apenas os rostos pintados por Tarsila a marcar uma pluralidade de histórias em interseção, mas todas as microscópicas células que os formam. A resposta para um futuro no qual as particularidades do povo brasileiro são melhor compreendidas, portanto, está dentro de nós mesmos, escondida entre as fitas que formam cada um de nossos cromossomos.