ESG

Apoio:

Logo TIM__313x500
logo_unipar_500x313
logo_espro_500x313
ONU_500X313 CBA
ONU_500X313 Afya
ONU_500X313 Pepsico
Logo Lwart

Parceiro institucional:

logo_pacto-global_100x50

Ondjango: o que uma prática ancestral angolana nos ensina sobre colaboração e senso de comunidade

Mais do que uma palavra, ondjango é uma tecnologia ancestral, um espaço físico e simbólico onde as pessoas se encontram para tratar de assuntos comuns a uma comunidade, escreve Clayton Melo

Musel Nacional da Escravidão, em Angola: o resgate do saber ancestral pode ser um contraponto ao estilo de vida hedonista e individualista da sociedade ocidental (John Seaton Callahan/Getty Images)

Musel Nacional da Escravidão, em Angola: o resgate do saber ancestral pode ser um contraponto ao estilo de vida hedonista e individualista da sociedade ocidental (John Seaton Callahan/Getty Images)

Clayton Melo
Clayton Melo

Colunista

Publicado em 12 de abril de 2024 às 14h02.

Última atualização em 12 de abril de 2024 às 14h10.

Viver no continente africano tem sido, para mim, uma oportunidade fantástica para descobertas e aprendizados. Aprendo de tudo aqui: da organização social e política aos costumes contemporâneos e ancestrais, passando pela culinária, música, cinema, literatura, filosofia, teatro e vida social, assim como os códigos que regem as relações pessoais, dentro e fora do trabalho.  

E também a língua. Embora o português seja o idioma oficial em Angola — onde moro há cerca de um ano e meio, trabalhando como consultor em um projeto de conteúdo multiplaforma —, cada povo imprime sua história e sua cultura por meio de sotaques, ritmo, cadência da fala e expressões.

Só para dar um exemplo, o professor José Luís Mendonça, escritor angolano premiado e com quem tenho a honra de conversar e aprender sempre, diz que o angolano fala o “português batucado”, em função das sonoridades rítmicas das línguas locais, enquanto o português do brasileiro seria, relembrando o escritor Eça de Queiroz, “açucarado”, por ser mais musical e doce, com vogais abertas e gerúndios melódicos.

Poderíamos incluir nessa receita linguística brasileira umas boas pitadas de azeite de dendê, o símbolo de uma vasta herança africana na fala e em nossa culinária (com muitos pratos salgados e apimentados). E assim teríamos no Brasil o “Camões com dendê”, como já analisou a pesquisadora baiana Yeda Pessoa de Castro, doutora em línguas africanas e cujo trabalho procura mostrar a importância dessas línguas no português falado no país. 

No caso angolano, um ponto que me fascina são as línguas regionais dos diferentes grupos etnolinguísticos (povos) que habitam o território há séculos, muito antes de Angola ser Angola, quando o que havia nesta região eram os reinos do Dongo e Matamba e, mais ao norte, o do Congo, dentre outros.

Diversos povos convivem atualmente no país, o que compõe um mosaico linguístico muito rico. Entre as línguas regionais faladas em Angola estão o umbundu, kimbundu, kikongo, tchokwe, kwanyama, nhaneca, fiote, nganguela e oshiwambo.

A cidade onde eu vivo, Luanda, tem um bocadinho de todas elas (os angolanos adoram falar “bocadinho” e eu já peguei essa palavrinha para mim!). Isso porque, como capital, Luanda atraiu nas últimas décadas milhares (milhões) de pessoas de várias províncias que vieram para cá em busca de emprego e uma vida melhor – um fenômeno parecido com o de São Paulo na segunda metade do século passado, ainda que com diferenças e particularidades, como a Guerra Civil que consumiu Angola entre 1975 e 2002 e acelerou o êxodo rumo à capital.  

Tecnologia ancestral

Uma das palavras que aprendi com meus amigos angolanos é, no fundo, muito mais que uma palavra, é uma espécie de tecnologia ancestral: ondjango.

Na cultura e na língua umbundu do Centro-Sul de Angola, ondjango é o resultado da aglutinação de “ondjo (casa) + ohango (conversa), segundo o livro Descer Antes de Subir: Contos e Provérbios no Ondjango Umbundu, do pesquisador e escritor angolano Fausto Kakumba.

Essa casa da conversa ancestral era (e continua a ser) o espaço físico e simbólico onde as pessoas se encontram para tratar de assuntos comuns a uma comunidade. É o local de reunião, hospedagem, refeição, educação e sociabilização.

Do ponto de vista físico, o ondjango tradicional é uma construção circular de pau a pique, aberta nas laterais, coberta com capim e que pode ficar embaixo de uma árvore frondosa. “É o parlamento africano e também um tribunal. É um local onde as populações se reúnem, sob a tutela do soba, para resolver assuntos importantes da comunidade”, diz o professor Mendonça — soba é o chefe das aldeias. 

O conhecimento ancestral africano tem muito a nos ensinar, e o ondjango é apenas um exemplo. O princípio de organização coletiva que ele representa remete a questões como senso de comunidade, pertencimento e colaboração, ideias que deveriam ser resgatadas e valorizadas entre nós nos dias de hoje. O conceito de hiperlocal, que abarca do jornalismo ao varejo, entre outas áreas, dialoga com o universo comunitário de um ondjango.

Resgate do saber ancestral

O estilo de vida hedonista e individualista que marca a sociedade ocidental — movida pelo consumismo desenfreado e uma lógica econômica que nos deu de presente a crise climática — precisa ser repensado. Nessa reflexão, recuperar os saberes ancestrais, sejam os africanos, sejam os ameríndios, é um caminho importante, como já comentei em outro artigo aqui mesmo na EXAME.

Na bioeconomia, por exemplo, o saber dos povos originários da Amazônia ocupa papel central, pois acumula séculos de conhecimentos aplicáveis em diversos campos, entre eles o farmacêutico e o dos cosméticos, que já utilizam muito da sabedoria indígena no desenvolvimento de produtos. “Muito do que a gente precisa fazer é se voltar para as práticas ancestrais que foram desenvolvidas por povos originários e que vêm sendo validadas pela ciência. Como a alimentação fermentada, por exemplo, que é altamente saudável e desinflama o corpo”, disse numa entrevista o neurocientista e escritor Sidarta Ribeiro.

Isso me faz lembrar de outro conceito ancestral, desta vez não angolano, mas dos povos de língua Akan, que vivem na atual Gana e em regiões da Costa do Marfim e Togo, na África Ocidental: sankofa.

Resultado da junção de sanko ("voltar") e fa ("trazer, buscar"), sankofa é um adinkra africano (ideograma) representado por um pássaro que voa para a frente enquanto mantém, ao mesmo tempo, a cabeça para trás, carregando no bico um ovo, que simboliza o futuro. Numa possível interpretação, essa imagem representaria um retorno ao passado para ressignificar o presente e, assim, construirmos o futuro. Um futuro que, tomara, seja mais solidário, sustentável e em harmonia com o planeta.

Acompanhe tudo sobre:AngolaIndígenas

Mais de ESG

"Apenas 1% do que é anunciado nas Cúpulas do Clima chega nos povos indígenas", diz Sonia Guajajara

Indique Uma Preta: consultoria que nasceu no Facebook já impactou 27 mil profissionais negros

A COP29 está no limite e o fracasso não é uma opção, diz Guterres

O chamado de Gaia: o impacto da crise climática sobre as mulheres