ESG

O novo problema ético da Austrália: caça de cangurus na mira de ativistas

Um novo projeto de lei no Congresso visa proibir todos os produtos de canguru da Austrália; caça é regulamentada pelo governo

Um trabalhador da Warroo Game Meats com pacotes contendo carne de canguru em Surat, Austrália: um projeto de lei no Congresso visa proibir todos os produtos de canguru da Austrália. (Matthew Abbott/The New York Times)

Um trabalhador da Warroo Game Meats com pacotes contendo carne de canguru em Surat, Austrália: um projeto de lei no Congresso visa proibir todos os produtos de canguru da Austrália. (Matthew Abbott/The New York Times)

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Da Redação

Publicado em 3 de junho de 2021 às 09h00.

Damien Cave e Matthew Abbott, c. 2021 The New York Times Company

Ian White dirigia lentamente ao longo da estrada de terra vermelha, passando pelo restolho de trigo e pela grama alta, quando avistou um tufo de pelo branco movendo-se perto da mata à sua esquerda. Era uma noite quente de outono no outback australiano. Sentado em cima da caminhonete, ele acendeu a lanterna e encontrou um canguru a cerca de 140 metros de distância. "Olhe só para a bolsa. Não quero atirar nela", disse White.

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Aparentemente, a fêmea tinha um filhote na bolsa. Segundo White, ele e outros caçadores são atentos a isso, apesar das afirmações em contrário de muitos ativistas norte-americanos que estão tentando acabar com sua fonte de renda, por considerá-la desumana.

Ele afirmou que os críticos simplesmente não entendem como a vida funciona no interior da Austrália. O canguru é caçado no continente há milhares de anos, "e ainda há mais animais que pessoas", garantiu White.

Ele insistiu que a caça comercial do canguru na Austrália não é como um faroeste de John Wayne, com armas em punho. Trata-se de um negócio regulamentado, organizado pelo governo. O caçador deve passar por um curso de tiro para garantir uma morte sem crueldade, e o número de cangurus é monitorado de perto por funcionários estaduais e federais, que estabelecem cotas para garantir populações sustentáveis.

Para White, de 58 anos, que pertence à terceira geração de caçadores profissionais e é conhecido por todos como "Whitey", o mais importante é que o canguru produz carne saudável, couro forte e gera empregos que mantêm pequenas cidades inteiras. "Não gosto de matar. Só faço isso se quiser comer o animal ou ganhar dinheiro", explicou.

Uma dúzia de cangurus apareceu de repente. White parou e carregou cuidadosamente o rifle Sako .222 que descansava sobre suas pernas, expirou e atirou em um jovem macho parado sob a luz.

Uma campanha global

Na mesma época em que White começou a caçar o canguru, ativistas norte-americanos começaram a lutar para protegê-lo.

Em 1971, a Califórnia proibiu a importação de partes do canguru. Três anos depois, o Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos fez o mesmo com três espécies de canguru abatidas comercialmente. Essas decisões foram tomadas com base na preocupação com o declínio das populações de canguru que muitos australianos não compartilhavam.

George Wilson, professor da Universidade Nacional Australiana que passou 50 anos cuidando da vida selvagem, lembrou-se de ter dito a um preocupado biólogo americano que o visitou na década de 1970 que havia uma razão para tantos caminhões terem a dianteira reforçada com barras de metal na Austrália: "É para o caso de eles atingirem um canguru. Esse animal é muito abundante."

O canguru foi removido da lista americana de animais selvagens ameaçados e em extinção em 1995, e a lei da Califórnia passou despercebida até meados dos anos 2000, quando um grupo de ativistas vegetarianos processou a Adidas por vender chuteiras feitas de couro de canguru.

Em 2006, o jogador inglês David Beckham parou de usar chuteiras Adidas (do modelo Predators) depois de assistir ao vídeo de um grupo de ativistas mostrando uma mãe sendo morta com seu filhote.

Agora, a campanha está sendo reativada por meio de uma colaboração entre grupos de ativistas internacionais, um membro da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos e um político australiano que é o único político eleito do Partido pela Justiça Animal.

Seu objetivo é convencer empresas, consumidores e legisladores a boicotar ou proibir qualquer coisa que venha do que muitos descrevem como a maior matança comercial de animais do mundo. Eles argumentam que, especialmente depois dos incêndios que devastaram a Austrália no ano passado, possivelmente matando vários milhões de cangurus, a caça comercial deve ser encerrada.

"O que percebemos depois dos incêndios foi que não sabemos quantos animais sobreviveram. Se não sabemos quantos estão vivos, ninguém deveria sair por aí atirando neles", ressaltou Mark Pearson, ex-diretor executivo do grupo Animal Liberation, na Austrália, antes de ser eleito para o Parlamento de Nova Gales do Sul, em 2015.

Pearson disse que a iniciativa atual ganhou força como das outras vezes, depois de um empurrão dos Estados Unidos. Embora muitos australianos achem isso irritante, Pearson contou que recebeu há alguns meses uma ligação de Wayne Pacelle, ativista do bem-estar animal de Bethesda, em Maryland, que pediu para ter acesso a uma pesquisa relevante sobre o tema.

Essa conexão acabou levando a uma campanha internacional, "Kangaroos Are Not Shoes" (Cangurus não são sapatos), que inclui uma campanha em vídeo na internet, um site e lobby em todo o mundo.

Pacelle informou que havia apresentado um projeto de lei que proibiria a importação de produtos que usassem partes de cangurus ao deputado Salud Carbajal, democrata da Califórnia, que ele descreveu como um dos diversos legisladores amigos dos animais. Se o projeto de lei, conhecido como Lei de Proteção do Canguru, for aprovado, tanto o couro quanto a carne do marsupial – que muitas vezes é usada na fabricação de ração para animais de estimação – não serão mais comercializados. Isso interromperia grande parte das exportações globais de carne de canguru da Austrália, e outros países poderiam seguir o exemplo, encolhendo o setor ou forçando-o a interromper as atividades. "Achamos que isso reduziria a matança geral. Não existiria tanta gente interessada em matar se não houvesse mercado para isso", observou Pacelle, presidente do Centro para uma Economia Humana.

Uma indústria de cidade pequena

O primeiro tiro de White naquela noite acertou o canguru logo acima do olho. Ele caminhou até a grama e pegou o animal morto, colocando-o sobre os ombros e carregando-o de volta para sua caminhonete, imaginando que pesaria cerca de 18 quilos.

Colocou luvas de borracha amarelas e estripou o canguru com a precisão de um açougueiro. Então, pesou sua presa: 17,94 quilos, o que renderia cerca de US$ 18.

A linha entre crueldade e compaixão pode ser difícil de traçar em um lugar como Surat. A cidade tem uma população de 407 habitantes, o que significa que conta com uma mercearia, um bar e uma escola. Fica no centro de grandes pastos divididos pelo gado e pelos cangurus, centenas de quilômetros a oeste de Brisbane. As pessoas falam em caçar canguru por dinheiro com a nuance de um vilarejo rural, onde amar e matar animais são partes inevitáveis da vida.

Os ritmos de procriação e a população de cangurus são bem conhecidos por aqui. Períodos de fartura levam a uma explosão populacional das quatro espécies de canguru que são legalmente caçadas – entre 2001 e 2011, os números variaram entre 23 milhões e 57 milhões de animais, de acordo com pesquisas do governo.

Quando chega a seca, a população diminui drasticamente. Centenas de cangurus esfomeados aparecem por toda a região, especialmente perto das estradas, onde o orvalho nutre os menores brotos de grama.

Ver os animais morrendo de fome e atropelados por carros – ou pior, ver fazendeiros massacrá-los para preservar a ração de vacas e ovelhas, abate cometido fora da indústria formal de cangurus e, muitas vezes, ilegal – fez com que a maior parte de Surat acreditasse que os atiradores comerciais estão ajudando o canguru ao minimizar o sofrimento dos ciclos de fartura e carestia no outback.

"Quem está longe não vê isso. Se você contrata um atirador, sabe que ele está fazendo isso da maneira certa", disse Megan Nielsen, agricultora de 29 anos que tem três filhos e que, às vezes, mantém cangurus como animais de estimação.

Passando pelo curral de uma fazenda local, White contou que já viu em primeira mão a agonia causada por fazendeiros e pelos caçadores menos escrupulosos que eles costumam contratar, deixando cangurus atingidos por tiros na barriga agonizando nos campos.

Por outro lado, no fim da noite seu processo parecia quase mecânico. Pouco depois das quatro da manhã, ele parou no estacionamento da Warroo Game Meats, processadora de carne com sede em Surat que pertence a uma família com raízes aborígines e a um investidor chinês. White tinha 21 cangurus pendurados em seu caminhão, todos mortos com um único tiro na cabeça, cada um deles marcado com seu nome e o local da caça, para rastreamento de biossegurança. "Se não fizermos isso, os pequenos produtores vão acabar com eles. Não vão parar", comentou White.

Leslie Mickelbourgh, diretora-gerente da Warroo Game Meats, disse que a campanha das chuteiras foi só para aparecer. Embora nem o governo nem a indústria discriminem o total de exportações ou o faturamento por produto, ele afirmou que o canguru de Surat é usado principalmente como fonte de carne. O animal é cada vez mais visto como uma alternativa mais ética à carne de boi e cordeiro, porque o canguru não contribui para o aquecimento global expelindo grandes quantidades de metano e porque é caçado em seu habitat. Para Mickelbourgh, "os críticos do setor não compreendem nosso país". 

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