ESG

Parceiro institucional:

logo_pacto-global_100x50

Especial Trajetórias: Cristiane Sultani, a nova filantropia pede passagem

Fundadora do Instituto Beja desafia limitações convencionais do investimento social privado ao apostar em colaboração e tecnologia para escalar impacto

Cristiane Sultani: À frente do Instituto Beja, advogada conectou o Brasil ao Sul Global em iniciativas que posicionam experiências nacionais na filantropia estratégica internacional.

Cristiane Sultani: À frente do Instituto Beja, advogada conectou o Brasil ao Sul Global em iniciativas que posicionam experiências nacionais na filantropia estratégica internacional.

Letícia Ozório
Letícia Ozório

Repórter de ESG

Publicado em 18 de março de 2025 às 18h13.

Última atualização em 18 de março de 2025 às 18h34.

Tudo sobreExame Plural
Saiba mais

Do coração do Rio de Janeiro, uma advogada paulistana com larga experiência no mercado financeiro tem redefinido o que significa fazer filantropia no Brasil, trilhando uma trajetória marcada por uma série de transformações pessoais, em que o luto foi convertido em propósito.

Trata-se de Cristiane Sultani, uma das grandes representantes brasileiras de uma nova geração de filantropos, que buscam transformar a forma como o capital privado pode gerar e escalar impacto social sustentável - em uma abordagem que vai além das doações tradicionais, incorporando conceitos como colaboração, inovação tecnológica e um olhar mais sistêmico para mudanças.

Sua carreira teve início aos 19 anos, como estagiária na Bolsa de Valores de São Paulo. De lá, passou por bancos de investimento e family offices. Até chegar ao BBA e posteriormente, ao Itaú, onde permaneceu por 13 anos antes de assumir a liderança do family office de seu então marido, Pedro Fischer, no Rio de Janeiro.

A virada, e uma transformação profunda, vieram há cerca de quatro anos, com o falecimento de Pedro em decorrência de um câncer devastador. Em meio à dor da perda, Cristiane encontrou um novo caminho. Nascia assim, o Instituto Beja, organização filantrópica, que fundou em dezembro de 2021 como uma forma de honrar o marido.

Uma volta ao mundo por salas de aula

“Dali para frente, foi uma jornada intensa. Precisei aprender, conhecer os atores, as necessidades do Brasil, a filantropia como era e como podia ser mais eficiente. E de que modo eu poderia atuar para isso, sem fazer somente mais do mesmo”, explica.

A trilha de aprendizado a fez voltar para salas de aula no mundo todo. Começando por se aprofundar em Zurique e Genebra, onde participou de workshops com especialistas do setor. E incluiu outras formações, como uma específica em storytelling para filantropia, em Nova Iorque.

Ao ser fundado, o Beja tinha como foco,  três causas centrais: geração de renda (com ênfase em mulheres negras), combate à violência doméstica feminina e educação infantil, centrada no Brasil. Com o tempo, a advogada se deparou com a necessidade de fomentar uma colaboração ampla e sistêmica entre no ecossistema do setor.

A percepção foi avalizada por uma consultoria, que atestou que este era o caminho para escalar resultados também em negócios sociais. E fez com que o Instituto assumisse, então, um papel mais amplo, que atualmente une pilares que incluem inovação, fomento a conhecimento e pesquisas e parcerias para atuação conjunta com outras organizações do Sul Global.

Paula Azevedo, a liderança renovada pós recomeço de Inhotim

No início, o Beja investiu cerca de R$ 7 milhões em suas iniciativas, com o objetivo de testar e aprimorar suas abordagens. Em um segundo momento, o orçamento foi ampliado para R$ 13 milhões, e, após ajustes de rota, para R$ 36 milhões, advindos de doações da própria Cristiane e de parceiros que entraram com o chamado policapital - abordagem que integra diferentes fontes e modalidades de recursos para maximizar o impacto socioambiental.

Analisados à luz dos indicadores setoriais do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), os investimentos são bastante significativos para um Instituto jovem. O último mapeamento disponível mostrou que apenas 6% do volume filantrópico nacional ultrapassou a marca de R$ 50 milhões anuais — um patamar alcançado por um restrito grupo de organizações tradicionalmente estabelecidas no país.

O mesmo levantamento revelou que entidades de natureza familiar, categoria na qual o Instituto Beja se enquadra, destinaram em média R$ 17 milhões a iniciativas socioambientais ao longo do período mais recentemente atualizado da análise (2022).

Os investimentos, Cristiane destaca, não são apenas financeiros. Envolvem também um trabalho contínuo de advocacy e colaboração entre diversos setores da sociedade. "Ao longo dessa jornada, fomos além das doações ao participar ativamente de coalizões e outras iniciativas coletivas. E conseguimos vitórias importantes, como o avanço na isenção de impostos para ONGs", explica.

Justiça racial na educação superior

A atuação de Cristiane Sultani também se estende à área de justiça racial, tema cada vez mais importante no contexto brasileiro. Através do Beja, participou da construção do Fundo USP Diversa, que visa apoiar a permanência de estudantes negros e de outras minorias étnicas na Universidade de São Paulo.

Apesar do aumento de pessoas negras no ensino superior nos últimos anos — passando de 10,7% em 2010 para 38,2% em 2019, segundo o Cedra —, a permanência dessa população segue como um desafio. De acordo com levantamento da Fundacred, estudantes negros têm 6% mais chances de evadir o ensino superior do que alunos brancos.

A primeira geração em um mundo igualitário para mulheres?

Cristiane mergulhou fundo para entender alguns dos motivos que levam ao maior abandono da educação por parte de pessoas negras. “A evasão se dá pela falta de condições financeiras para a alimentação, moradia, transporte e toda a dinâmica em torno das aulas”, explica.

Segundo ela, as bolsas hoje fornecidas pela USP ainda não conseguem contemplar toda a população de alunos em vulnerabilidade, gerando uma “escolha de Sofia” entre quais alunos beneficiar. “O objetivo do Fundo USP Diversa é suprir esse gap nos pagamentos de bolsas estudantis, que entendemos que precisa de apoio institucional para ser operacionalizado”, afirma.

A primeira doação do Instituto Beja ao Fundo foi de R$ 5 milhões, em um evento que contou com a participação da Dra. Ludhimila Hajjar, professora da USP, e Marisa Monte, cantora e patrona do Fundo USP Diversa.

"O problema da evasão não é apenas uma frustração individual, de quem entra e vai precisar abandonar o sonho”, afirma. “É um desperdício de recursos públicos e uma injustiça social, fruto de uma política de cotas que nem deveria ter nascido sem um acompanhamento das necessidades do aluno", conta a advogada, que acredita que a educação é a chave para a mobilidade social no Brasil.

A nova filantropia

Além de representar um perfil diferente da grande maioria dos filantropos brasileiros, geralmente herdeiros de grandes fortunas ou empresários bem-sucedidos que, após anos de acúmulo de riqueza, decidem devolver parte de seus ganhos à sociedade, Cristiane é também uma expoente e defensora do protagonismo feminino na filantropia.

Ela observa que, embora o movimento de mulheres filantropas esteja crescendo globalmente, como mostram os movimentos recentes de Mackenzie Scott e Melinda Gates, no Brasil ainda há um espaço considerável para filantropas explorarem e se destacarem. "As mulheres têm uma sensibilidade única para as causas sociais, especialmente em áreas como a justiça racial e a violência de gênero", exemplifica.

A filantropa busca ainda transformar o setor no Brasil, investindo em uma rota mais estratégica e inovadora. E defende uma visão mais holística do setor, que inclua o uso de tecnologias para escalar soluções e alcançar mais pessoas, especialmente em regiões além do Sudeste e Sul do Brasil. "A filantropia precisa ser inovadora e assumir riscos. Não podemos ser estáticos", afirma.

Neste sentido, Cristiane avança agora em uma iniciativa estratégica de escala internacional: o Centro para Mudanças Exponenciais no Brasil, extensão regional de um hub indiano reconhecido por seu pioneirismo no desenvolvimento de projetos inovadores e colaborativos.

A plataforma apoiará projetos inovadores e colaborativos para combate às desigualdades do Sul Global, operando a partir de metodologias validadas em contextos socioeconômicos similares ao do Brasil. A implementação do Centro foi viabilizada junto a alianças com organizações filantrópicas de relevância global, como a Fundação Nilekani e a Waverley Street Foundation. Esta última, presidida por Laurene Powell Jobs — viúva do fundador da Apple, Steve Jobs — mais uma das grandes representantes da filantropia contemporânea.

"O Centro receberá um investimento de US$ 10 milhões nos próximos cinco anos para apoiar projetos que utilizem tecnologia e inteligência artificial para escalar soluções de impacto social", revela. Entre os primeiros selecionados está o MapBiomas, rede que monitora o uso da terra desde 1985, a ONG Serenas, de prevenção à violência contra mulheres, e o Desenrola, Não Me Enrola, projeto de formação cultural em territórios periféricos. "São iniciativas que já demonstraram potencial e agora precisam ganhar escala", justifica.

Acompanhe tudo sobre:Exame PluralFilantropiaDoaçõesMulheresMulheres executivasEquidade racial

Mais de ESG

Investimentos climáticos impulsionam receita de 48% dos CEOs de energia no Brasil

Fundação Banco do Brasil destinará R$ 1 bilhão contra mudanças climáticas até 2030

Bill Gates é mais um a desembarcar dos compromissos climáticos?

Instituto C&A investe R$ 8 milhões para fortalecer diversidade e inclusão na moda