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Como nos lembra a jornalista filipina ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, Maria Ressa, as “mentiras podem matar” (foto/Getty Images)
Diretora Executiva do Instituto Natura
Publicado em 19 de janeiro de 2025 às 08h00.
Semana passada testemunhamos um episódio pedagógico, icônico e preocupante de mais um embate entre a ética socrática e a sofística, ou em outras palavras, da responsabilidade moral na busca da verdade vs. o pragmatismo. Vale lembrar que este embate filosófico recorrente iniciou-se na Grécia Antiga e perdura há aproximadamente 2.400 anos com a mudança apenas dos personagens e porta-vozes, mas trazendo a tensão entre duas propostas contrastantes que levam a caminhos e resultados absolutamente distintos.
Sócrates trabalhava com a busca de verdades éticas objetivas e universais, que poderiam ser descobertas por meio da razão e do diálogo, sendo a linguagem, em seus diálogos, uma ferramenta para comunicar tais verdades compartilháveis na promoção da justiça e da virtude.
Já os sofistas consideravam a linguagem uma ferramenta adaptável, cujo valor depende do contexto e da capacidade de produzir resultados práticos. Frequentemente, os sofistas ensinavam os alunos a vencer argumentos ou obter poder, independentemente de considerações éticas. Para eles, a eficácia de um argumento importava mais do que sua verdade moral.
A ética socrática lançou as bases para o pensamento ético ocidental, em contraste com a visão de mundo mais cética e utilitária dos sofistas. Mas o debate está mais vivo do que nunca e os sofismos podem ser lucrativos e oportunistas, como temos acompanhado nos anúncios recentes de organizações diversas, entre elas a Meta, que destaco aqui por seu poder singular de influenciar o debate público.
Como tal, nenhuma decisão tomada sobre a mediação dos diálogos na Ágora moderna é inconsequente ou deveria nos passar despercebida. Afinal, ela implica em escolhas morais para nós, como consumidores, produtores de conteúdo, investidores e cidadãos.
Mediação = Censura?
A mediação refere-se ao processo de checar a veracidade dos fatos, filtrar ou moderar conteúdos e interações com o propósito de proteger a qualificação da interação, manter a conformidade com normas legais ou éticas, com base em regras claras, de forma transparente e justificada.
Já a censura refere-se à restrição prévia, deliberada e arbitrária de informações, opiniões ou expressões, de forma autoritária, para controlar o fluxo de ideias ou impedir que certos conteúdos sejam conhecidos ou debatidos, frequentemente resultando em perseguição aos seus autores. Esta sim, é contrária à liberdade de expressão, criando um ambiente de medo e autocensura, refratário ao debate livre e democrático.
É verdade que em alguns casos, a mediação pode ser percebida como censura, se não aplicada de maneira justa, transparente, consistente, segundo regras pré-pactuadas. Mas equiparar toda mediação a um ato de censura tem o efeito de eliminar uma distinção necessária ao debate salutar, edificante e múltiplo, que nos aproxime de verdades compartilháveis.
Responsabilidade corporativa = Perseguição?
Confrontar uma empresa com suas externalidades, ou seja, com as consequências indiretas, não intencionais, potencialmente nocivas de sua atividade é uma prática consagrada no mundo dos negócios e levou empresas e setores inteiros, ao longo do tempo, à alcançar melhores patamares de atuação responsável, ativando a inovação a favor da mitigação e reparação de riscos. Por que, apenas no caso das gigantes tecnológicas americanas, a responsabilização corporativa equivale a uma perseguição dos interesses nacionais?
Liberdade de expressão vs. regras de mediação
Desafio a ideia de que cabe aos mandarins das redes sociais optar entre apenas dois caminhos excludentes: a liberdade de expressão ou a adoção de regras de moderação. Ora, a moderação, pautada por regras transparentes, justificadas (não arbitrárias) alinhadas às normas legais e sociais de forma alguma é incompatível com a liberdade de expressão, como a censura é. Pelo contrário, ao habilitar um espaço dialógico, civilizado e democrático, torna-se um vetor da liberdade de expressão e não um ofensor.
Responsabilidade corporativa vs. patriotismo
Outra falsa dicotomia implícita nos discursos de justificação das guinadas éticas tem sido a noção de que as corporações encontram-se diante de uma encruzilhada: ou acolhem a parte que lhes cabe de sua responsabilidade como cidadãos corporativos ou heroicamente lutam contra a perseguição contra os interesses americanos. A Meta anuncia que trabalhará junto ao Governo Trump para defender os direitos das empresas americanas “perseguidas”. Creio que a perseguição a que ele se refere sejam regulamentações como a da União Europeia, introduzida em 2022, com o objetivo de garantir maior transparência e responsabilidade das plataformas digitais, combater a desinformação, o discurso de ódio e os conteúdos ilegais. Como esta responsabilidade esperada de qualquer cidadão, indivíduo ou corporação é contrária aos interesses americanos, me escapa. Talvez haja uma confusão entre os interesses da grande maioria dos cidadãos americanos e globais, que justamente esperam exercer seus direitos como usuários em um ambiente salutar, civilizado e mediado por regras pré-acordadas e o interesse das corporações em esquivar-se da responsabilidade pelos efeitos do que fazem como agentes econômicos. Aliás, frequentemente os interesses e direitos dos usuários já são preteridos por meio de uma arquitetura legal sofisticada, projetada para suprimi-los, sob a ilusão de escolha.
A quem interessa a desresponsabilização corporativa e a desregulamentação das plataformas? A quem prejudica? A alguns poucos cidadãos corporativos ou aos milhões de cidadãos globais que tornam sua atividade possível e lucrativa? Cada um faça a sua própria reflexão.
Para me concentrar em apenas um efeito potencial destas novas diretrizes anunciadas, aponto para os efeitos deletérios da misoginia e da violência cibernética contra mulheres e crianças. O Instituto Natura -- que recém incorporou o Instituto Avon e suas causas em seu pilar de Direitos e Saúde da Mulher -- através do compromisso com os direitos das Mulheres, têm alertado, por meio de estudos e pesquisas, em especial o "Misoginia e Violência contra mulheres na internet: um levantamento sobre fóruns anônimos”, para o aumento vertiginoso de crimes de misoginia, violência contra as mulheres e pornografia infantil, habilitados digitalmente.
Este estudo é convergente com os dados da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos da Safernet e com investigações recentes como a ocorrida na Alemanha, que descobriu grupos diversos no Telegram que ensinavam a dopar, estuprar e agredir mulheres, contando com 70 mil usuários relatando, orgulhosamente, suas violências contra as próprias parceiras, irmãs e mães. O Ministério das Mulheres, divulgou no fim de 2024, um levantamento que mostra que 80% dos canais misóginos utilizam estratégias de monetização, como anúncios, Super Chat, doações e vendas de produtos.
Como nos lembra a jornalista filipina ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, Maria Ressa, as “mentiras podem matar”. Talvez ela seja hoje a melhor representante da ética socrática ao interpelar as gigantes da internet que lucram disseminando o ódio e a mentira, incitando a violência e se esquivam à responsabilidade, compartilhada por todos nós, de enfrentar toda esta violência nos mesmos ecossistemas de informação que os propagam. Talvez não seja uma tarefa tão lucrativa, mas precisamos escolher entre a virtude e o pragmatismo, em um verdadeiro exercício inescapável de livre arbítrio e responsabilidade moral.