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Pobreza_desigualdade (FG Trade/Getty Images)
Jornalista e crítica da cultura
Publicado em 29 de junho de 2022 às 03h55.
Última atualização em 31 de maio de 2023 às 15h14.
Marta Porto*
O summit promovido pela Exame para debater a agenda ESG, liderado por Renata Faber, me fez voltar para algumas notas pessoais antigas, sobre autores de formações variadas, na intenção de formar uma linha do tempo sobre o tema. E com foco no S, a agenda social, cuja efetividade é historicamente baixa no Brasil.
Hoje, este pilar do ESG ganha caráter de urgência. Basta olhar para os números de desigualdade e vulnerabilidade social do país.
Em 2005, os economistas Mirela de Carvalho e Ricardo Paes de Barros, em artigo publicado no livro Investimento Privado, balanço e desafios, já apontavam a baixa efetividade das políticas sociais brasileiras — ainda que o cenário dessas políticas, no início dos anos 2000, fosse menos trágico que o atual. Com dados e análises a partir de evidências, os autores identificaram dois elementos que, somados, colaboram para o maior ou menor sucesso das políticas sociais: o grau de acerto na focalização das intervenções sociais — para serem efetivas, as políticas precisam focalizar os verdadeiramente mais pobres — e a eficácia das intervenções na garantia da satisfação das necessidades básicas dos beneficiários.
Além destes dois fatores, os autores dedicam um capítulo para avaliar "a necessidade de colocar o setor privado a serviço de quem mais precisa" e propor um conjunto de iniciativas que agreguem resultados para a melhoria das condições de bem-estar dos brasileiros e brasileiras.
Uma das ideias colocadas na mesa pelos autores é a da contribuição social das empresas, que trata de renúncias voluntárias de lucro "movidas pelo objetivo de melhorar o bem-estar de consumidores, trabalhadores, comunidade local ou mesmo da sociedade em geral". Pagamentos de impostos, financiamento e patrocínio de atividades culturais e esportivas motivadas por autopromoção e investimentos sociais nos colaboradores não se enquadram na ideia de contribuição social das empresas, pois nenhuma delas sacrifica a lucratividade.
Carvalho e Paes de Barros separam as iniciativas classificadas como contribuição social das empresas em dois grupos: aquelas relacionadas às atividades fim, que se comprometem com padrões elevados de bem-estar social para além do que as regulamentações vigentes exigem; e aquelas que se voltam para a comunidade usando uma fatia dos seus lucros, voluntariamente, para contribuir com a elevação do padrão de vida de suas comunidades e da sociedade em geral.
Nos 17 anos entre a publicação desse artigo e os dias de hoje, novos fatores contribuíram para a piora da desigualdade. As mudanças no mundo do trabalho causadas pelas tecnologias, a pandemia do coronavírus, as políticas públicas regressivas, as mudanças climáticas e as instabilidades políticas globais que afetam a qualidade das respostas dos países e a cooperação entre os mercados.
Ainda assim, a desigualdade continua a ser uma escolha e não uma fatalidade, como muitos defendem. E para deixar de ser uma escolha, é preciso abandonar crenças que foram historicamente construídas, em especial as teorias econômicas que dominam o debate desde os anos 80. E trabalhar de forma cooperativa com os vários setores da sociedade para identificar as melhores soluções, aumentar a participação comunitária nas decisões de investimentos e especialmente orientar as políticas públicas e as intervenções privadas para alcançarmos um resultado de prosperidade partilhada aferível.
Analisando os dados sobre investimento social privado no Brasil, é possível concluir que, para acelerarmos mudanças no péssimo padrão de vida que a maioria da população brasileira está submetida, não é suficiente investir em projetos e ações sociais externas à atividade fim da empresa, ainda que isso se mantenha relevante. A escala de mudanças que precisamos exige transformações também no mundo do trabalho formal, começando pelas políticas de recursos humanos, dos critérios de contratação, benefícios e remuneração de funcionários, colaboradores e fornecedores e revendo programas de distribuição de lucros e bonificação de executivos.
A discrepância entre a remuneração de CEOs e o salário médio de um trabalhador comum pode ser medida pelo estudo do centro de pesquisas Economic Policy Institute (EPI) publicado em 2021. Enquanto a remuneração dos primeiros aumentou em 1.322% desde 1978, o salário de um trabalhador comum cresceu apenas 18%. De acordo com o levantamento, em 2020, os diretores-executivos receberam 351 vezes mais do que a média dos trabalhadores.
“O pagamento exorbitante dos CEOs é um dos principais contribuintes para o aumento da desigualdade que poderíamos eliminar com segurança. Essa escalada da remuneração dos CEOs, e da remuneração dos executivos em geral, alimentou o crescimento dos rendimentos do 1% e do 0,1% mais ricos, deixando menos frutos do crescimento econômico para os trabalhadores comuns e ampliando a lacuna entre os que ganham muito e os 90% mais pobres” acrescentam.
Em entrevista ao Diário do Comércio sobre o estudo do EPI, Gedeão Locks, pesquisador do Centre d’Économie de la Sorbonne (CES), em Paris, afirma que a remuneração da alta liderança corporativa atingiu níveis estratosféricos, o que não é justificado por nenhum outro mecanismo ou fator previsto pela teoria econômica.
“Se pegarmos os dados de companhias de capital aberto nos países ricos, [vemos que] esses pagamentos exorbitantes não são de fato compensação financeira, porque eles não se traduzem num desempenho melhor das empresas. Elas não criam mais empregos ou mais valor por pagar R$ 15 milhões em vez de R$ 2 milhões para um CEO.” Na mesma reportagem, Locks mostra que, embora a desigualdade social seja uma questão complexa e multifatorial, a conexão entre os superbônus e a desigualdade social é real.
Concluindo, para enfrentar a desigualdade brasileira, precisamos de ações combinadas. Com políticas públicas focalizadas e de aumento da produtividade, e políticas privadas que ampliem a contribuição social das empresas, olhando para fora, para a comunidade e a sociedade, mas também para dentro. Pagar melhores salários e diminuir a distância entre os que ganham mais e os que ganham menos, definir critérios de contratação que olhem de fato para as desigualdades educacionais, raciais, de gênero e econômicas do país, buscar maior diversidade nas cadeias de fornecedores, com a ampliação de oportunidades para micro e pequenos empreendimentos, melhorar a qualidade no ambiente de trabalho e somar esforços às ações do Estado na busca por maior efetividade e eficácia de suas políticas sociais.
Sem uma mudança de rota consistente na forma de priorizar nossas agendas sociais, tanto por parte do Estado como das empresas, dificilmente os resultados serão diferentes dos que já estamos acostumados a viver.
*Marta Porto é Jornalista, crítica da cultura e fundadora da Marta Porto Consultoria. Foi Secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura, Coordenadora da UNESCO/RJ e Membro do Comitê que redigiu a Agenda 21 de Cultura