Roberto Gianetti da Fonseca. (Alexandre Battibugli/Exame)
Estadão Conteúdo
Publicado em 15 de janeiro de 2023 às 12h09.
Eleitor de Lula em 2022, o economista Eduardo Giannetti alerta o novo governo para o fato de que as expectativas dos consumidores investidores, trabalhadores e empresários definem o resultado da economia. “A economia é uma espécie de meteorologia em que a previsão do tempo afeta o próprio tempo. O que as pessoas acreditam que vai acontecer acaba se materializando porque as pessoas passaram a acreditar nisso”, diz.
Portanto, acrescenta, é preciso ter cuidado para não frustrar as expectativas dos agentes, pois isso pode resultar em crise econômica. “Não se pode enfrentar essas crenças muito enraizadas no mercado, especialmente no mercado financeiro. (Essas crenças) não podem ser afrontadas de maneira grosseira. Elas têm de ser respeitadas”, afirma.
Conselheiro econômico da hoje ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, quando ela era candidata à Presidência, Giannetti diz que os sinais que o governo vem dando na área econômica, até agora, são em geral positivos. Ele pondera, porém, que o anúncio de um pacote para reduzir o déficit fiscal, feito na última quinta-feira, 12, pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não é suficiente para firmar as expectativas de que o problema fiscal será resolvido. “O corte de despesa é vago. As medidas também estão longe de ser um novo regime fiscal para o Brasil, que é o mais importante.”
A seguir, leia os principais trechos da entrevista.
Como o sr. analisa os ataques à democracia do domingo passado?
Foi uma uma coisa desarticulada perpetrada por pessoas muito despreparadas e desnorteadas em relação ao que se poderia esperar de uma ação desse tipo. Olhando para frente, acho que tem dois vetores. Reforça o capital político do Lula, e isso é algo de que ele pode, pelo menos no curto prazo, se beneficiar. Ao mesmo tempo, tem um risco de desviar o foco do início do mandato das questões que são realmente relevantes, especialmente na economia. Mas tenho a impressão de que o governo está atento a essa ameaça.
Do que o governo não pode perder o foco?
A primeira coisa é o novo regime fiscal, e não apenas adotar medidas pontuais de contenção de gastos ou aumento de receitas. É preciso uma visão clara de como se vai garantir que a dívida pública entre em uma trajetória sustentável. A segunda é fazer andar a reforma tributária. A PEC 45 já está no Congresso em um estágio razoavelmente amadurecido de debate, e a ida do Bernard Appy para a Secretaria Especial da Reforma Tributária ajuda muito na implementação dessa medida.
A tentativa de golpe terá impactos econômicos?
Não vejo um impacto duradouro. Mas o ambiente internacional vai acompanhar atentamente como as instituições brasileiras reagem e se essa ocorrência é isolada ou se é parte de alguma coisa que terá continuidade. Se começarem a se repetir manifestações com esse grau de destrutividade, é lógico que vai pesar.
Em entrevista ao ‘Estadão’ depois do primeiro turno, o sr. disse que ajudaria muito se o novo governo tivesse uma ‘excelente equipe econômica que despertasse credibilidade e atraísse capital externo’. Como avalia a equipe econômica?
É uma boa equipe. O secretariado é de perfil técnico, o que acho positivo. Agora, quanto mais se estuda economia, mais se entende a centralidade das expectativas nos resultados e no comportamento da economia. Tanto as expectativas do mercado financeiro, que são mais nervosas e de curto prazo, quanto as expectativas dos agentes da economia real - empresários, consumidores e profissionais - são importantes.
A economia é uma espécie de meteorologia em que a previsão do tempo afeta o próprio tempo. O que as pessoas acreditam que vai acontecer acaba se materializando porque as pessoas passaram a acreditar nisso. Se todo mundo acha que vai ser um tempo maravilhoso, as pessoas agem de acordo. Os agentes financeiros compram papéis brasileiros, o real se aprecia, isso faz a inflação diminuir. Com a inflação diminuindo, o Banco Central pode baixar o juro. Você entra em um círculo virtuoso.
Com os agentes da chamada economia real, é a mesma coisa. Os consumidores se sentem confiantes para tomar crédito. Se, ao contrário, as pessoas passam a acreditar que virá uma tempestade elas passam a agir de acordo com essa expectativa. No mercado financeiro, acontece venda dos ativos em real, depreciação da moeda brasileira, o que provoca mais inflação, aí o Banco Central eleva o juro. Os investidores se retraem.
Os consumidores também não vão tomar crédito nem adquirir bens. Então é fundamental que seja feita uma boa administração das expectativas. Não tem muito problema se a nossa dívida pública crescer um pouco. Agora, tem de ser feito um trabalho muito cuidadoso de não deflagrar um movimento de desconfiança em relação ao futuro do controle das contas públicas.
Esse jogo da confiança é delicado. Os agentes econômicos não formam expectativas de maneira arbitrária. Há exageros para um lado ou para o outro, mas eles formam expectativas tentando ler a realidade, tentando ver se as palavras correspondem às ações. O que está sendo dito? As pessoas que estão lá tem uma reputação que inspira credibilidade?
As pessoas que estão na equipe econômica inspiram credibilidade e os sinais que deram até agora geraram expectativas positivas?
No campo das declarações, os sinais são bons. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem reiterado seu compromisso com a responsabilidade fiscal. Você vê o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, dizendo que não vai usar o Tesouro para financiar o banco. Você vê o Lula dizendo para o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que a ideia de privatizar o Porto de Santos vai ser examinada com seriedade.
Tem muito ruído também. Já se falou em rever a reforma trabalhista, por exemplo.
Acho que isso houve mais no início da transição. Da posse para cá, tem havido aparentemente um compromisso maior com declarações apontando na direção daquilo que ajuda a formar expectativas positivas. Agora, se o enunciado não for corroborado por ações, não é suficiente. Tem de mandar os sinais certos e tem de mostrar que esses sinais estão consistentes com as ações. Imagine um médico que chega em uma tribo pré-científica com uma vacina. Se ele chegar e disser: ‘Tudo que vocês acreditam é feitiçaria e eu tenho uma picadinha que vai resolver o problema’, é capaz da tribo ficar enfurecida e expulsar o médico. Se esse médico chega na tribo com a mesma vacina e fala: ‘Tudo que vocês acreditam é consistente com essa vacina que eu quero dar para vocês. Ela é complementar’, ele não hostiliza as crenças vigentes. Deixa as pessoas acreditarem e até dá um alento: ‘Vocês acreditam nisso, é importante...’ E dá a vacina. Não se pode enfrentar essas crenças muito enraizadas no mercado, especialmente no mercado financeiro. (Essas crenças) não podem ser afrontadas de maneira grosseira. Elas têm de ser respeitadas.
Não houve sinais que afrontaram as crenças?
Teve alguns momentos em que o Lula, depois de eleito, falou coisas que levaram a muita volatilidade. O nervo sensível brasileiro é o câmbio hoje. Se tiver desconfiança grave, vai haver fuga de capitais, o real vai desvalorizar, a inflação vai aumentar e aí vai ter de manter por mais tempo os juros elevados. Para mim, onde está realmente o jogo em 2023 é saber se vamos ter espaço para baixar o juro e liberar recursos do orçamento para atividade fim ou se vamos ter de manter juros reais extremamente elevados, como agora. Se mantiver, isso vai comprometer o orçamento e vai levar a dívida pública brasileira a virar uma bola de neve.
Acha que, nas últimas semanas, o presidente Lula mudou então esse tom de embate com o mercado? No discurso da posse também?
O discurso da posse, ele tinha de fazer como um político recém-eleito, voltado para uma multidão que tem expectativas legítimas em relação ao governo. Não acho que o discurso teve problema. Agora, um ruído foi a desoneração dos combustíveis. Mas o que queria dizer é que, em economia, o mundo objetivo é apenas uma parte da realidade e essa parte responde, em grande medida, ao mundo subjetivo, aquilo que as pessoas estão acreditando sobre o que virá, as expectativas.
O anúncio do Haddad de medidas para reduzir o déficit é suficiente para os agentes formarem expectativas positivas?
Vejo com um gesto na direção certa, mas não suficiente para firmar as expectativas de que o problema fiscal foi efetivamente endereçado. É positivo o reconhecimento de que boa parte do (volume de receita) anunciado possivelmente se frustrará. O reconhecimento disso reforça credibilidade. Por outro lado, acho que não foi adequado o balanceamento de aumento de receita e corte de despesas. O corte de despesa é vago. As medidas também estão longe de ser um novo regime fiscal para o Brasil, que é o mais importante.
O sr. ainda acredita que esse governo será mais semelhante ao Lula 1, como disse no início de outubro?
Sim, mas não será uma repetição. Mas é claramente um governo em que líderes reconhecidos da sociedade civil têm um papel marcante no primeiro escalão. Figuras como Marina Silva (ministra do Meio Ambiente), Simone Tebet (ministra do Planejamento), Nísia Trindade (ministra da Saúde). É um governo que não é petista como o governo Dilma ou o segundo mandato do Lula. O próprio Fernando Haddad, embora seja petista, é aquele que tem mais afinidade com os membros do núcleo não petista.
Acha que pode funcionar um governo com ministros com visões tão diferentes em relação à economia?
Até agora, não vi nenhuma proposta vinda do Ministério da Fazenda que afronte o que uma certa ortodoxia econômica recomendaria como necessária e desejável para o Brasil.
Nem o aumento de gastos garantido pela PEC da Transição?
Não tinha como o governo renegar as promessas de campanha. Seria configurar um estelionato eleitoral. O que não se pode imaginar é que isso tenha permanência indefinida. Aliás, esse é um outro ponto que não mencionei quando falei dos bons sinais que estão vindo. A ideia de passar o pente-fino no Cadastro Único é fundamental. Temos uma explosão inacreditável de famílias recebendo Bolsa Família. Acho que é um outro sinal de compromisso com a boa utilização dos recursos públicos.
Como analisa o cenário econômico que o novo governo recebe e o que pode ser feito para 2023?
O governo Bolsonaro não entregou sequer o que anunciou na campanha. Não fez reforma tributária. As privatizações não deslancharam. O lado fiscal foi tratado de maneira casuística. Os economistas sempre trabalharam com a ideia do ciclo econômico eleitoral. Numa democracia, o ano final do governo é marcado por um aumento do gasto público visando a reeleição ou a manutenção de um certo partido no poder. Isso é parte natural de qualquer democracia, mas o governo Bolsonaro levou o ciclo econômico eleitoral no Brasil ao paroxismo. Gastou dezenas de bilhões de reais de maneira casuística buscando a sua reeleição. Foi uma criatividade oportunista como eu não me lembro de ter presenciado. Isso deixa um péssimo legado. (A situação econômica) foi favorecida na foto das contas públicas pela inflação, por receitas não recorrentes, pelo boom das commodities durante a guerra da Ucrânia. Mas essa foto não representa o filme das contas públicas brasileiras, que é preocupante.
Diante disso, o que se pode esperar para 2023?
O crescimento de 2022 foi a base de anabolizantes. Em grande medida foi resultado desse ciclo econômico eleitoral exacerbado. Para 2023, pode-se esperar um crescimento menor, inflação ainda um pouco acima do teto da meta. Se tudo correr bem, imagino que possa acontecer o início de um processo de redução do juro primário no Brasil, que é fundamental. Manter por muito tempo o juro real primário entre 7% e 8% ao ano não é sustentável. É uma coisa muito forte e comprometedora das expectativas. Como é que se abre espaço para baixar o juro? Tem de ter confiança. É isso que o governo Lula tem de saber trabalhar.
Não é possível conseguir isso com o investimento gerando crescimento, que, por sua vez, aumenta a receita do governo?
Não. Vai ter de trabalhar do lado do gasto e do lado da receita. Isso (aumento de investimento) não vai nem de longe restabelecer a confiança.