Roberto Azevêdo: "Há um risco (de guerra comercial) e é um risco real"
Da Redação
Publicado em 6 de abril de 2018 às 11h41.
Última atualização em 10 de abril de 2018 às 16h03.
A decisão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de aumentar os impostos alfandegários sobre o aço e o alumínio, respectivamente de 10% e 25%, teve o mesmo efeito de uma bomba no comércio internacional, e aumentou o risco de deflagração de uma guerra comercial mundial.
A medida se tornou um dos principais temas discutidos no Fórum Econômico Mundial da América Latina em São Paulo, onde um dos protagonistas foi o diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), o brasileiro Roberto Azevêdo.
Em entrevista exclusiva à EXAME, Azevêdo falou sobre abertura de mercados, protecionismo, o papel da mediação da OMC em conflitos comerciais entre países e também sobre a nova posição dos EUA no comércio internacional.
Conversando pela segunda vez com EXAME – a primeira foi no Fórum Econômico Mundial de Davos em janeiro – o diretor-geral da OMC salientou mais uma vez que a liberalização do comércio internacional é a chave para garantir o crescimento mundial, o progresso e o desenvolvimento, além da paz. E que ainda é possivel evitar uma conflito comercial global apostando nas negociações.
Quando nos encontramos na última vez no Fórum Econômico Mundial de Davos havia um clima econômico, agora há outro completamente diferente. A questão está mudando rapidamente, com os novos impostos alfandegários de Trump, ameaças de guerra comercial, etc. Então, eu lhe pergunto, o Sr. acha que estamos na beira de uma guerra comercial?
Há um risco e é um risco real. Um risco presente. Eu acho que é um risco maior do que da última vez que nos encontramos. Mas há movimentos para tentar evitar que isso aconteça. Acho que essas conversas bilaterais que Washington está mantendo com seus parceiros comerciais para tentar encontrar soluções são uma coisa que pode ajudar a evitar um cenário de confrontação que não seria bom para ninguém.
No entanto, existem analistas que apresentam um cenário trágico. Edward Alden, do Councl for Foreign Relations, disse que “em 8 de março de 2018 a OMC morreu”. A OMC sobreviverá à turbulência gerada pelos novos impostos alfandegários impostos por Trump? E um possível que ocorra um efeito dominó?
Essas frases são um belo marketing. Mas do marketing à realidade, há uma enorme distância. Pelo contrário, acredito que esse tipo de situação mostra como a OMC seja hoje absolutamente fundamental e crítica. Se não existisse a OMC já estaríamos em uma guerra comercial mundial há anos. Pelo menos desde a crise de 2008, quando as pressões protecionistas foram altíssimas. Muito maiores do que hoje, porque estavam se alastravam pelo mundo inteiro. E justamente pela existência do sistema da OMC e de suas regras que não vimos este cenário de guerra comercial se materializar. Então eu acredito que esse tipo de situação que vivemos hoje sò ilustra a importância da Organização. E, diga-se de passagem, nunca recebemos tantas manifestações de apoio para o sistema OMC como hoje. Porque todos os membros, talvez com algumas exceções pontuais, manifestaram a importância do sistema e a necessidade de preserva-lo e fortalecê-lo ainda mais.
Falando do sistema da OMC, esses novos impostos alfandegários de Trump e essa nova onda de protecionismo que está avançando em todo o mundo surgem de um problema real, ou seja, há países que estão fazendo dumping em vários setores econômicos. Muitos países europeus o denunciaram abertamente, e até mesmo o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, acusou a China em termos inequívocos. O Sr. ão acha que a OMC deveria agir com mais força, com maior incisividade, para evitar que essas distorções do comércio internacional levem à respostas extremistas?
Acredito que aqueles que pedem maior ação ou incisividade por parte da OMC não conhecem muito bem as regras e mecanismos da Organização. A OMC não é um xerife que sai por aì ativamente advertindo seus membros, criticando suas ações, ou ingerindo na forma como eles conduzem suas políticas comerciais. A OMC é um foro onde os membros se reúnem para discutir situações. Entre eles. Não é a Organização que sai ativamente questionando ou criticando as medidas dos membros. Ela não faz isso. E no momento que fizer os membros não vão aceitar. Porque eles consideram que a OMC tem dois pilares. Primeiro: ela é uma organização de regras. Ela impõe regras e disciplinas. Zela pela implementação das regras a disciplinas em um sistema que é dirigido pelos membros. Em inglês se chama “member driven”. Portanto, o fato de existir uma disciplina não significa que um membro não possa fazer algo que não esteja 100% dentro das regras. Ele pode desviar um pouco, desde que os outros não reclamem. A Organização não impede ninguém de tomar uma medida. São os outros membros que podem contestar as medidas adotadas por outros. O que a OMC faz é fornecer o mecanismo para que essa conversa acontecer. E no caso não houver entendimento nessa conversa o mecanismo de solução de controvérsias. Uma arbitragem que vai determinar quem tem razão nessas situações conflituosas.
Sim, mas a OMC tem um poder político de sinalizar para o público mundial que há um problema. O Sr. mesmo fez uma declaração falando recentemente sobre riscos para o comércio mundial. Não acha que seria necessária um pouco mais de energia é necessária nesse sentido?
Sim, estamos levando isso adiante. Eu falei muitas vezes sobre esse isso. A situação da sobreoferta de aço mundial não é nova. É um problema que todos sabemos que existe. A demanda mundial de aço hoje é muito inferior a capacidade de produção. Essa é uma realidade que está sendo discutida em um foro especifico sobre isso, como o Fórum Global do Aço da OCDE. Até por uma determinação dos líderes do G20, que querem ter essa conversa e determinaram que fosse analisada nesse foro. Então é uma realidade que não escapa a ninguém.
Voltando ao mecanismo de resolução de controvérsias, segundo alguns estaria paralisado, especialmente porque os americanos não indicaram os juízes e não parecem demonstrar interesse em fazê-lo. O que o Sr. acha?
Não, o sistema não está paralisado. O sistema continua funcionando, até porque os juízes cujos mandatos expiraram continuam a ouvir as reclamações que ouviram antes. Então não é uma coisa da noite para o dia. É claro, poderá desacelerar em breve, porque começamos a perder a capacidade de atuação rápida. E mais para frente se essa situação não for resolvida pode até a vir ser paralisado. Mas não é o caso agora. Não na iminência. Temos um tempo antes da paralelização e esse tempo é usado. Nós não estamos com os braços cruzados esperando que esta situação apareça.
Estão pensando em soluções?
Sim, estamos pensando em soluções de duas naturezas. Soluções que levem ao desbloqueio e, por outro lado, ao que fazer para que o sistema continue funcionando apesar do bloqueio. Estas são dois tipos de conversas que estamos desenvolvendo em paralelo.
Mas um país levasse os americanos frente a um painel de resolução de controvérsias, há então duas opções: o painel decide que os EUA violaram as regras, então surgiria o risco que a Casa Branca deixe a OMC. Por outro lado, se o painel não considerar os americanos culpados, isso abriria o caminho para que muitos outros países os imitem, provocando um efeito dominó protecionista em nível mundial. O Sr. acredita que há um risco de um impasse na OMC em ambos os casos?
Já me expressei publicamente várias vezes dizendo aos membros da OMC que achava muito arriscado e pouco producente se ele levassem ao mecanismo de resoluções de controvérsias da OMC medidas que poderiam ser defendidas ao amparo do art. 21 do estatuto, que é o artigo que trata de exceções por razões de segurança nacional. Eu disse para eles que não vejo bons resultados saindo dali, porque são situações extremamente políticas. Dificilmente será uma decisão dos árbitros da OMC que vão fazer com que um país mude de ideia com relação a sua segurança nacional. Ponto numero dois, seria muito temerário esperar que árbitros de uma organização internacional começassem a decidir quais são os limites da segurança nacional dos países membros. Acredito que o uso da carta de interesse nacional deve ser feito com muita circunspecção e cautela pelos membros, para evitar que esse tipo de ação provoque uma erosão das regras. Mas não acho que o litígio na OMC seja o caminho para resolver esse tipo de coisas. Esta foi a minha posição pública muito antes, diga-se de passagem, de tudo o que está acontecendo agora ter começado. É uma visão sistêmica que já comuniquei aos membros. Agora, se no final das contas, ainda assim eles levarem, a Organização não teria outra alternativa a não ser levar o contencioso adiante e fazer as conclusões e determinações necessárias.
Seu antecessor, Pascal Lamy, declarou publicamente há alguns dias que “a OMC deve se acostumar a viver sem os EUA”. O Sr. concorda com essa frase? Acredita que é um risco real?
Os Estados Unidos são um membro da OMC e, por definição, são e serão parte de tudo que fazemos e faremos por definição. Os americanos participaram de várias coisas que fazemos dentro da OMC. Eles são, por exemplo, signatários da declaração para as discussões sobre comércio eletrônico em Buenos Aires. Eles estão participando das conversações, e demostraram interesse em fortalecer o funcionamento da OMC em várias áreas, incluindo a área de notificações, transparência, etc. Eles são proponentes e continuam a usar o mecanismo de solução de controvérsias da OMC.
Portanto, não há risco de saída iminente dos EUA?
Não. Não há nenhuma indicação no comportamento americano que mostre que eles pretendam deixar a organização. Eu acredito que eles tem manifestado insatisfação com certas áreas de funcionamento da organização que eles acham que deveriam ser atualizadas ou reformadas. Mas isso é algo natural.
A partir de 2001, quando a China ingressou na OMC, as balanças comerciais dos EUA e de outros países desenvolvidos começaram a registrar déficits cada vez maiores, e a China começou a registrar superávits cada vez maiores. E isso causou uma certa rejeição do livre comércio por muitos partidos políticos na Europa e agora nos EUA. O Sr. acredita que existam desequilíbrios no comércio internacional? E que isso tenha implicações políticas que estamos vendo agora nas últimas eleições?
Ter novos atores no comércio internacional que crescem de maneira muito significativa não é novidade. Os próprios Estados Unidos no século 20 cresceram de maneira muito acentuada. Eles aumentaram significativamente a presença no comércio internacional. Se tornaram uma grande potência, a maior potência do mundo. Isso faz parte da história. Na década de 1980 o Japão também foi um fenômeno. Os países asiáticos de mateira geral aumentaram muito sua participação nos frutos do comércio mundial. E tudo isso causou um certo rebuliço até, mas a economia mundial foi se adaptando a essas novas circunstâncias. A China é mais um desses fenômenos. Um país que saiu de uma posição secundária no comércio internacional e se tornou o maior exportador e importador do mundo. Isso é algo natural. Faz parte da história da humanidade. E claro que essas coisas têm repercussões no plano econômico, no plano político e até do ponto de vista da segurança internacional. Mas não vamos imaginar que a história acabou. Amanhã será um outro. Haverá sempre esse tipo de mudança, de emergências, no cenário econômico e político mundial. E, para responder a pergunta, os EUA tiveram um déficit comercial há muito tempo, isso não é novo.
Então o Sr. acha que é apenas um momento transitório e logo o comércio internacional retornará ao equilíbrio?
Eu não sei. O equilíbrio na verdade é a acomodação a uma nova situação. Não acredito que os déficits comerciais sejam necessariamente um elemento cabalístico em determinar o futuro econômico de uma nação. Acredito que há nações superavitárias porque têm uma concentração muito forte em exportações de commodities. E a concentração e dependência de um, dois ou três produtos não é um bom resultado para o futuro do país. Apesar de ter um comércio superavitário. Pelo contrário, pode haver nações que têm uma balança comercial deficitária, mas que têm uma geração de riquezas dentro da economia que se beneficia do custo baixo dos produtos que entram na cadeia produtiva daquele país de maneira mais competitiva. Assim, acabam gerando valor e riqueza, diminuindo o custo de vida para os cidadãos daquele país. A partir do momento em que existam outros elementos econômicos compensem, esse déficit comercial pode ser uma questão positiva para o país. É uma questão de equilíbrio das finanças, uma conta matemática. Um déficit ou um superávit comercial sem analisar o conjunto da economia não diz muita coisa.
No WEF em São Paulo muito se falou sobre o acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Européia e também o fato de que o bloco sul-americano deveria ser mais integrado e mais aberto. O Sr. acha que estamos indo nessa direção? Existe alguma perspectiva positiva?
Acredito que a abertura econômica comercial é um ingrediente absolutamente fundamental para um processo de desenvolvimento sustentável. Seja essa abertura regional, seja desejavelmente global. Este é o caminho. Procurar o caminho do desenvolvimento com o fechamento da economia pode até funcionar no curto prazo, mas se introduz ineficiências, custos e dependências que depois são muito difíceis de reverter. Então a sustentabilidade está em ser aberto competitivamente. Não é algo fácil. Se fosse fácil, todo mundo já teria feito isso. Mas é o caminho que precisa ser perseguido de maneira constante e determinada.
O Sr. não acha que é algo difícil de explicar isso aos eleitores em qualquer país do mundo?
De um modo geral o eleitor olha mais para sua situação específica do que para o conjunto o país. Na sua pergunta anterior você mencionou o fato de haver uma rejeição geral do livre comércio na política contemporânea. É uma leitura errada da realidade econômica. Porque as dificuldades do mercado de trabalho que estão provocando essas consequências eleitorais não vêm do comércio internacional, mas vêm de novas tecnologias. O mundo está mudando. De dez empregos que desaparecem do mercado de trabalho, oito são devidos ao desenvolvimento tecnológico, a automação, novos métodos gerenciais, aumento de produtividade e não do comércio internacional. E o que isso significa? Que vamos parar com o desenvolvimento econômico? Que devemos parar com o desenvolvimento tecnológico? Isso é algo irreversível. As importações criam valor, criam emprego. Na verdade, pode-se até perder algum emprego, mas depois se criam muito mais empregos, aumentando a competitividade e aumentando a riqueza do país. Agora, para o eleitor que perdeu aquele emprego, não é consolo para ele que o país cresceu. Ninguém quer perder o emprego. E este emprego também, de forma geral, ele o perdeu muitas vezes devido à automação, e não, como ele acredita, por causa de um produto importado barato. Então, muitas vezes é uma questão muito pouco influenciada pela racionalidade econômica e muito mais pela emoção do momento.