Economia

Remanejamento do Bolsa Família pode caracterizar drible nas regras fiscais

Créditos abertos para bancar gastos da crise provocada pelo novo coronavírus estão servindo para custear despesas previsíveis e não urgentes

Paulo Guedes, ministro da Economia: governo já abriu até agora três créditos extraordinários para o auxílio emergencial, o primeiro de R$ 98,2 bilhões, o segundo de R$ 25,7 bilhões e o terceiro de R$ 28,7 bilhões (Andre Borges/Bloomberg/Getty Images)

Paulo Guedes, ministro da Economia: governo já abriu até agora três créditos extraordinários para o auxílio emergencial, o primeiro de R$ 98,2 bilhões, o segundo de R$ 25,7 bilhões e o terceiro de R$ 28,7 bilhões (Andre Borges/Bloomberg/Getty Images)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 9 de junho de 2020 às 12h27.

Última atualização em 9 de junho de 2020 às 12h45.

O remanejamento de recursos do programa Bolsa Família para ampliar a verba publicitária do governo federal acendeu o alerta entre especialistas para o risco de "manobra" para burlar regras fiscais e usar exceções previstas na lei para os gastos da pandemia a favor de um aumento em despesas que não são emergenciais e nada têm a ver com o combate à doença.

Uma dessas exceções é o crédito extraordinário, instrumento a que o governo pode recorrer para despesas imprevisíveis e urgentes e que fica livre do alcance do teto de gastos, mecanismo que limita o avanço das despesas à inflação.

A avaliação é de que, na prática, os créditos extraordinários abertos para bancar gastos da crise provocada pelo novo coronavírus estão servindo para custear despesas previsíveis e não urgentes, como é o caso da verba para a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência (Secom) fazer propaganda do governo.

A "triangulação", como vem sendo chamada a estratégia, envolve a abertura de um crédito extraordinário no valor total previsto para o auxílio emergencial de R$ 600 para trabalhadores informais, iniciativa que tem entre seus beneficiários praticamente 95% dos atendidos pelo Bolsa Família. Com a migração das famílias, o espaço reservado ao Bolsa no Orçamento e no teto fica quase todo “livre” para ser remanejado a outras ações que não poderiam, pelo que diz a Constituição, ser contempladas por crédito extraordinário e para as quais não havia dinheiro antes da crise.

O governo já abriu até agora três créditos extraordinários para o auxílio emergencial, o primeiro de R$ 98,2 bilhões, o segundo de R$ 25,7 bilhões e o terceiro de R$ 28,7 bilhões. Enquanto isso, o gasto mensal do Bolsa Família caiu cerca de R$ 2,4 bilhões com a migração dos beneficiários para o programa temporário. Uma parte do "espaço" que ficou no Orçamento, R$ 83 9 milhões, foi direcionada à Secom.

Uso social

Para o economista Marcos Lisboa, presidente do Insper, o governo deveria ter descontado dos créditos extraordinários o valor que sobraria na dotação do Bolsa Família. Ou seja, usar a exceção legal apenas para os gastos adicionais com proteção social, o que resultaria em créditos de valor menor.

"Para preservar o teto, não tinha dinheiro para vários gastos. Você fez o ajuste, vários gastos eram essenciais, você preservou o Bolsa Família. Veio o crédito extraordinário para substituir o Bolsa Família e você usou aquela verba, que agora poderia ter outros usos sociais ou evitar o aumento da dívida, para gastos que nada têm a ver com a emergência. É preocupante", afirma Lisboa. Ele vê risco de outros gastos não essenciais acabarem passando sob a mesma estratégia.

Após a decretação de calamidade pública pela covid-19, o Congresso aprovou um regime fiscal extraordinário conhecido como "Orçamento de Guerra", que na prática livra os gastos de combate à pandemia das amarras fiscais impostas pela legislação brasileira.

Para um ex-integrante do Banco Central ouvido sob a condição de anonimato, o remanejamento de recursos do Bolsa Família para a Secom "parece transferir despesas não emergenciais para o orçamento de guerra".

O uso indevido de créditos extraordinários pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) foi alvo de questionamentos no Tribunal de Contas da União (TCU).

Na semana passada, a equipe econômica convocou uma entrevista coletiva para defender a legalidade da ação. O principal argumento foi o de que os beneficiários do Bolsa Família não deixaram de receber os pagamentos. O programa, porém, acumula uma fila de 433 mil elegíveis e que ainda não tiveram a concessão do benefício.

Controversa

A discussão sobre a triangulação é controversa. O diretor da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira (Conof) da Câmara, Ricardo Volpe, disse não ver drible ao teto ou às regras fiscais, embora tenha classificado o remanejamento de "barbeiragem orçamentária" por tirar dinheiro da área social para dar a uma área que não tem relação com o combate à pandemia.

Volpe também reconhece que a flexibilização de regras fiscais para viabilizar os gastos da pandemia pode ter efeitos colaterais. "Quando se tira a necessidade de cumprir regras pode nessa carona, entrar despesas que não tinham caráter tão emergencial", afirma.

Na área econômica, a avaliação é de que a sobra na dotação do Bolsa Família "cumpre tecnicamente" a possibilidade de remanejar recursos para outra área. Mesmo assim, já se fala internamente em não atender a outras demandas dos órgãos ou até reduzir o valor de um novo crédito extraordinário numa efetiva prorrogação do auxílio emergencial para absorver a "folga" deixada pelo Bolsa.

Procurado, o Ministério da Economia não se manifestou.

Acompanhe tudo sobre:Bolsa famíliaCoronavíruseconomia-brasileiraGoverno BolsonaroPolítica fiscal

Mais de Economia

Governo anuncia bloqueio orçamentário de R$ 6 bilhões para cumprir meta fiscal

Black Friday: é melhor comprar pessoalmente ou online?

Taxa de desemprego recua em 7 estados no terceiro trimestre, diz IBGE

China e Brasil: Destaques da cooperação econômica que transformam mercados