Redação Exame
Publicado em 7 de abril de 2023 às 08h00.
Última atualização em 7 de abril de 2023 às 14h26.
A agenda tributária nos 100 primeiros dias do governo ganhou lugar privilegiado no debate público. O novo mandato do presidente Lula fez da reforma tributária o carro chefe da sua agenda econômica. Se a regra fiscal é vista mais como uma necessidade do que um desejo, na busca de minimizar as incertezas e percepção de risco elevada com relação às contas públicas, a reforma tributária é o “desejo” do governo. Trata-se do gatilho principal na busca pelo crescimento.
A defesa dessa agenda não é meramente retórica. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, criou uma Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária comandada pelo economista Bernard Appy, um dos líderes da discussão sobre tributação no consumo. Se o governo quer distância da política econômica da era “pós-Dilma”, na questão tributária, a ideia é retomar o esforço do passado.
Essa presença do tema tributário na agenda é abastecida por setores de esquerda e direita, no governo e na sociedade civil. Assim, a questão que se coloca é menos o debate em torno da necessidade e importância e mais qual reforma conseguirá ter viabilidade política. A defesa da reforma é quase consensual, embora exista ampla diversidade de interesses com relação aos objetivos das mudanças institucionais.
O sistema tributário brasileiro enfrenta, grosso modos, três tipos de desafios:
Em linhas gerais, os diagnósticos apontam para um sistema que tributa muito, gera elevado custo de transação para o cumprimento da legislação e é muito focado na tributação da produção e do consumo, quando comparado aos tributos de patrimônio e renda.
A economia política em torno da reforma tributária une, então, o desejo da sociedade em evitar aumento da carga tributária (e aprofundar a agenda de desonerações) e dos entes públicos preocupados com o potencial efeito sobre a arrecadação. Além disso, o tema mexe com jogos de poder entre governadores e prefeitos e organizações dentro da estrutura estatal.
Do ponto de vista estratégico, o governo decidiu encaminhar a agenda tributária em fases. O primeiro passo é a tributação do consumo por meio da criação do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), descartado pelo governo Bolsonaro, expressa na defesa das PEC 45/110. A etapa seguinte seria o debate em torno da tributação da renda com o foco na progressividade e na tributação do “andar de cima”.
A escolha da tributação no consumo tornou imperativo para o governo enfrentar a questão federativa no país. A criação do IVA passa pela unificação de tributos e contribuições pertencentes à União (PIS/Cofins e IPI); Estados (ICMS) e Municípios (ISS). O governo investiu no Conselho da Federação com representantes dos entes federados na busca por essa cooperação.
Os primeiros 100 dias de governo foram marcados pela tentativa de convencimento dos governadores eleitos em 2022. Os primeiros sinais sugerem que a “fatura” da aprovação da reforma pode aumentar. O encontro com estados do Sul e Sudeste por meio do Consórcio de Integração Sul e Sudeste (Cosud) indicou que a dívida dos entes federados com a União pode entrar nas contrapartidas para o apoio à matéria. De todo modo, a presença dos pesos pesados dos Estados em defesa da reforma reforça a janela de oportunidades na aprovação do projeto,
O processo legislativo trouxe boas notícias para a reforma tributária nesses 100 dias de governo, a saber: a mudança de postura do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP). No passado, Lira enterrou o esforço do Legislativo em votar a PEC 45. Nessa legislatura, o pepista criou um Grupo de Trabalho para estudar a reforma sem os ritos demandados nos sistemas de comissões. Assim, o texto que será apreciado no plenário pode ter maior blindagem as tentativas de emendamentos e alterações.
Por outro lado, a discussão do IVA gera conflito entre os grandes setores econômicos por conta do reequilíbrio da carga tributária. Assim, o projeto com viabilidade política pode conter inúmeros regimes de exceção à criação do IVA, diminuindo sua efetividade em termos de impacto em produtividade e PIB potencial. A opção pelo IVA-dual parece ser àquela com maior visibilidade política.
Sob essa ótica, os 100 primeiros dias foram positivos para a reforma tributária. Por ora, o cenário de aprovação no primeiro semestre na Câmara e segundo semestre no Senado está no jogo, ainda que a base política do governo não tenha força nesse momento para o encaminhamento da matéria.
A reforma dos tributos sobre a renda deve aparecer na agenda em segundo momento. Aqui, as chances de mudanças nas regras do jogo são grandes e devem afetar IRPF, IRPJ, lucros e dividendos e tributação do capital. A possibilidade de aumento de carga tributária não é desprezível diante do desejo do governo em expandir despesas obrigatórias no longo prazo, o que demanda incremento nas fontes de financiamento, inclusive para não adicionar maior preocupação com a questão fiscal. A novidade dos 100 dias é que as chances de ampliação da desoneração da folha de pagamentos como contrapartida à tributação na renda aumentaram de forma bastante relevante.
A oportunidade é única para aprovação. O tema é central para a identidade política do governo. A capacidade política é ainda pequena diante do tamanho da tarefa.
Rafael Cortez é Doutor em Ciência Política e sócio da Tendências Consultoria.