Maílson da Nóbrega: (Waldemir Barreto/Agência Senado)
Repórter de Brasil e Economia
Publicado em 18 de dezembro de 2023 às 13h29.
Última atualização em 18 de dezembro de 2023 às 18h23.
Para o economista Maílson da Nóbrega, sócio da Tendências Consultoria e ex-ministro da Fazenda, a reforma tributária aprovada pela Câmara dos Deputados na última sexta-feira, 15, tem a cara do Brasil, por trazer um imenso avanço do ponto de vista econômico, mas manter privilégios — que em sua avaliação reafirmam, e até pioram, a desigualdade social do país.
"Eu tenho dois destaques sobre essa reforma. O primeiro é qualidade das regras sobre os tributos no Brasil. Do lado econômico, essa é a meu ver a maior reforma estrutural já feita no Brasil, desde o regime militar, e por isso tem que ser louvada", afirma em entrevista exclusiva à EXAME. "O segundo é a incrível torra de privilégios, benefícios, prorrogação de incentivos fiscais, revelando que, do ponto de vista da desigualdade social, a reforma mantém e até amplia muitas distorções."
O chefe da Fazenda durante o governo José Sarney (1988 - 1990) definiu ainda como pilares da proposta que deve ser promulgada até o fim da próxima semana o fim da guerra fiscal entre os estados e a não cumulatividade da tributação, o que na sua visão deve aumentar a produtividade do país. "Isso vai diminuir os custos de produção e aumentar a capacidade de competição das empresas brasileiras nos mercados globais", diz.
Nóbrega detalha ainda o que acredita que é positivo e negativo no texto aprovado, desenha o potencial ganho do PIB do Brasil nos próximos anos e "chuta" qual será o IVA do novo imposto sobre consumo do Brasil.
Qual é a avaliação do senhor sobre a reforma aprovada na última sexta-feira?
Essa reforma é a cara do Brasil, porque, mesmo em mudanças institucionais que introduzem um elevado grau de racionalidade às instituições públicas, estão sempre presentes as figuras dos privilégios. Tenho dois destaques. O primeiro é a qualidade das regras sobre os tributos no Brasil. Do lado econômico, essa é a maior reforma estrutural desde o regime militar, e por isso tem que ser louvada. O segundo é a incrível torra de privilégios, benefícios, prorrogação de incentivos fiscais, revelando que, do ponto de vista da desigualdade social, a reforma mantém e até amplia muitos benefícios.
Então, o senhor enxerga avanço sistêmico?
As regras tributárias da reforma aprovada superam de longe o sistema atual. O Brasil exibia o galardão de ter construído o pior sistema tributário de consumo do planeta, um verdadeiro manicômio tributário, com uma série de esquisitices que pioravam a qualidade da locação dos recursos, e ainda pioram, porque essa reforma vai levar 10 anos para transição. Essas regras atuais conspiram contra a produtividade. Se considerarmos que o principal fator de crescimento de um país é a produtividade, os futuros ganhos com a boa alocação dos recursos será extremamente relevante para o país. A mediocridade que caracterizou o Brasil a partir dos anos 1980 tem relação com o sistema tributário de consumo. Essa reforma é o oposto de todas essas irracionalidades. Embora tenha inaceitáveis tratamentos favorecidos a segmentos privilegiados da sociedade, especialmente os mais ricos, do lado econômico, seus pilares básicos foram preservados.
E quais são esses pilares básicos da reforma tributária?
Os pilares são a tributação no destino, que inviabiliza a guerra fiscal, e a não cumulatividade plena da tributação na maioria dos casos, que melhora a produtividade e diminui os custos de produção — além de aumentar a capacidade de competição das empresas nos mercados globais. Além disso, tem uma novidade favorável, que é a desoneração integral das exportações. Atualmente não é possível esse tipo de operação, porque o ISS cobrado em cascata e o PIS/Cofins geram uma confusão geral que tira a competitividade das empresas.
Tem mais alguma novidade positiva?
Tem, a desoneração dos investimentos, que não existia no sistema atual. A oneração dos investimentos era em si uma contradição, porque se o imposto é sobre o consumo não deveria tributar investimentos. Tem ainda um avanço considerável, dos mais relevantes, que é a devolução dos créditos tributários de certas atividades e nas exportações com mais velocidade. Hoje, as empresas que acumulam crédito podem levar anos para ter isso de volta, porque precisavam praticamente mendigar aos estados pelo seu direito. Isso vai desaparecer, pois o novo sistema será totalmente digitalizado. Quando uma empresa exportar um produto, o sistema vai reconhecê-la como exportadora e aquele valor vai acumular crédito. O sistema vai separar esse valor em uma conta à parte e não distribuir em forma de arrecadação para a União, os estados e municípios. Então, não dependerá mais da vontade do secretário ou ministro da Fazenda a devolução. Ela será automática em até 20 dias, segundo o projeto. Poderia ser até antes, entre três e cinco dias.
Uma das apostas da reforma é a diminuição do contencioso tributário...
Outra coisa fundamental que destaco nessa reforma será a existência de normas tributárias uniformes em todo o território nacional. União, estados e municípios não terão o poder de alterar alíquotas, hipóteses de incidência e bases de cálculos. Isso vai produzir um efeito gigantesco. O resultado disso será a redução drástica do contencioso tributário.
Como se dará isso?
Hoje, vivemos essa bagunça em que 5.700 municípios, 27 estados e a União fazem suas próprias regras. Por isso, o mesmo fato tributário pode ser interpretado de forma diferente pela empresa e pelo Fisco. Tem muitos casos de empresas assessoradas por bons advogados, que estão crentes que estão cumprindo a regra e chega um fiscal e diz que não está. Então, o advogado tem que recorrer ao Carf ou para a Justiça. Quando você considera o contencioso administrativo e tributário, os valores equivalem a 75% do PIB. Para ter uma ideia de comparação, na Europa é menos do 0,5% do PIB. Todo o valor e tempo gasto ao contratar um escritório de advocacia se incorpora ao custo da produção. E isso vai acabar.
E quando falamos de exceções e benefícios para determinados setores?
Quando falamos de benefícios, é uma reforma vergonhosa. Por exemplo, os ricos pagarão pelo consumo de serviços 40% a menos do que os pobres pagam pelo consumo de bens. Porque na reforma tributária de 1965, por um acidente, os serviços tiveram uma alíquota super reduzida. Ao invés de se criar um IVA novo na época, que era possível porque o regime militar estava presente, optou-se por três incidências da tributação do consumo. Então, quando o rico brasileiro coloca o seu filho nas melhores escolas privadas, nas melhores universidades, tira férias nos melhores destinos do Brasil ou do exterior, ele paga uma alíquota 30% menor do que o pobre paga quando consome arroz, feijão, café, açúcar e outros itens básicos. Observando pelo lado dos benefícios e vantagens, essa reforma é um escândalo, mostrando a força dos lobbies no país, que provam porque o Brasil é uma das sociedades mais desiguais do planeta.
Nesse ponto, a reforma é aprovada com um gosto de oportunidade perdida?
Sempre me posicionei de forma favorável è reforma e acompanho isso de perto. Por isso, afirmo que o Brasil perdeu a oportunidade de ter o melhor IVA do mundo. Operacionalmente vai ser o melhor, porque causa da sua natureza digital, mas do ponto de vista do uso do sistema tributária para preservar ou ampliar benefícios, vai ser um dos piores do mundo. Ela reafirma e, em alguns casos, vai piorar a desigualdade. Vários estudos mostram que a desigualdade social conspira contra o crescimento. O Brasil desigual tem nessa característica uma das fontes de sua mediocridade.
Tem algum ponto que poderia aliviar essa questão dos privilégios? A previsão do cashback, que devolveria parte dos impostos pagos pelos mais pobres, não cumpriria esse papel, por exemplo?
O cashback pode aliviar essa desigualdade se for o único mecanismo para desonerar a cesta básica. Porque a ideia da cesta básica permaneceu. Então, pode ter cashback para roupa, por exemplo. Mas a própria definição da cesta básica pode incluir tratamentos diferenciados. Hoje, para você ter uma noção, tem capacete de moto na lista. Na tributação do serviço, para tentar eliminar os privilégios, poderia ter a sugestão de uma transição. Ou seja, passar de menos 30% para 100% da alíquota para os mais ricos em 10 anos. Infelizmente não se pensou nisso. Não retira a qualidade do trabalho, mas nem tudo é perfeito.
Ou seja, os benefícios tributários seguirão como parte relevante do PIB...
Pesquisas acadêmicas mostram que a melhor forma de dar tratamento favorecido justificado para certos setores da sociedade é fazer isso através do orçamento, e não do tributo. Por exemplo, se os pobres merecem pagar uma conta de luz mais baixa, coloca no orçamento a verba para isso. Mas, infelizmente, o Brasil não entrou nessa onda ainda e fica aterrado nessa visão dos anos 70, 80, de que a política pública é mais eficaz e produtiva se é feita com desoneração tributária. E vemos que o Brasil é um dos países que mais tem desoneração. O valor chega a 4% do PIB. Isso equivale a quatro vezes o custo do Bolsa Família.
Mas a revisão das exceções de 5 em 5 anos não pode solucionar esse ponto?
Não. É uma boa intenção, mas tem pouca chance de produzir algum efeito. Porque as forças dos lobbies e dos grupos privilegiados se mostraram tão poderosas que é improvável que esses mesmos grupos não se mobilizem de novo para preservar seus privilégios. O exemplo da Europa é inequívoco sobre isso, pois nem lá, que é uma sociedade menos desigual e com consciência para questões importantes como a tributação e os privilégios, se conseguiu retirar os benefícios. E a comissão da União Europeia tentou, mas perdeu no Judiciário.
É possível definir qual será a alíquota com base no texto aprovado?
Praticamente ninguém tem condições de fazer esse cálculo, porque ele está muito restrito à Fazenda. O meu palpite é que não vai ficar muito pior do que se previa com a proposta do Senado, que era 27,5%.
Como o senhor e a Tendências observa os ganhos da reforma no potencial do PIB?
A Tendências, com base em alguns estudos produzidos por acadêmicos, chegou à conclusão de que a reforma tem o potencial de aumentar em 0,4 ponto percentual o crescimento da economia do Brasil. Outros estudos mostram que o PIB pode aumentar 20% no período de 10 anos. Para fazer uma comparação, a Índia fez uma reforma semelhante alguns anos atrás, que tinha um caos tributária, não na dimensão do Brasil, mas era bem ruim. E vejo que a proposta respondeu por uma boa parte do êxito recente da economia indiana, que hoje cresce percentualmente mais que a China. Isso pode acontecer com o Brasil.
Como o senhor vê esse período de transição. Os estados afirmam que vão perder arrecadação. Isso realmente vai acontecer?
Não faz sentido essa afirmação, porque existe um princípio na reforma que nenhum estado e município vai perder arrecadação. E isso será possível por causa do comitê gestor, que fará as vezes de um banco. Hoje, quando você paga um imposto no banco, ele remente aquele valor para quem de direito. O comitê é isso, com uma diferença: ele vai distribuir não em função da arrecadação naquele momento, mas do que cada ente da Federação tem hoje de arrecadação. Por isso, surpreende alguns economistas terem feito duras críticas a esse comitê gestor, que é essencial para o processo. Ele não vai ter o poder discricionário de dar mais para Paraíba do que para São Paulo. O comitê perdeu o poder de fazer normas, que foi um ponto que saiu do texto da reforma. Ele é apenas uma instância operacional que viabiliza a proposta.
Ainda assim, muitas autoridades de entes subnacionais seguem suas críticas...
O prefeito de São Paulo dizer que o município vai perder 15 bilhões em arrecadação por conta da proposta é uma declaração de quem não leu o mínimo da reforma. E alguns estados também podem estar cometendo esse erro. Porque o grosso já está definido, não vai ser muito diferente do que é agora. O que terá de diferente são as regras para alguns segmentos. E isso não altera de forma significante a participação de cada unidade na arrecadação total. Tem muita gente que diz o seguinte: não li e não gostei. Digo que 100% das pessoas que falaram sobre a reforma, inclusive os lobistas, declararam apoio — desde que não mexesse em seu quintal para não ameaçar os seus privilégios.