Smartphone e cifrão: setor de serviços teme criação do IVA (Sarinya Pinngam / EyeEm/Getty Images)
Ligia Tuon
Publicado em 10 de outubro de 2019 às 08h00.
Última atualização em 10 de outubro de 2019 às 10h23.
São Paulo - Em meio ao debate sobre reforma tributária, há uma pergunta inescapável, mas sem resposta clara: qual é a melhor forma de mirar a economia digital e tributar serviços como Netflix e Spotify?
Hoje, como essas empresas são caracterizadas como prestadoras de serviços e tem sede no Brasil, arcam com impostos como o municipal ISS, além dos federais PIS e Cofins. No entanto, parlamentares e integrantes da equipe econômica vem sugerindo que elas poderiam pagar mais.
Por enquanto, nenhuma das propostas em tramitação no Congresso Nacional prevê alternativas específicas para a economia digital.
A reforma mais bem aceita, a PEC 45, de autoria do economista Bernard Appy, tramita na Câmara e propõe a criação de um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) nos moldes do IVA, usado na maior parte dos países desenvolvidos. Ele substituiria os impostos federais PIS, Cofins, IPI e os estaduais ICMS e ISS.
Esse tipo de tributação é a ideal para o setor digital, segundo o economista Marcos Lisboa, presidente do Insper. Isso porque ela já define a cobrança no destino, ou seja, onde o bem é consumido, e também porque trata de todos os bens e serviços a serem consumidos da mesma maneira.
"Mesmo que os serviços digitais evoluam com rapidez, um IVA dá conta tranquilamente. É um imposto que você paga ao consumir alguma coisa. Só isso", diz Lisboa.
A importação do modelo IVA resolveria em grande parte as questões da economia digital, diz Breno Ferreira Martins Vasconcelos, pesquisador do Insper e sócio do Mannrich e Vasconcelos Advogados.
“O sistema atual é um gerador de insegurança para o setor digital, que tem como característica a multiplicidade de entes com competência para tributar. São mais de 5 mil municípios com o poder de legislar sobre essa tributação”, diz.
Em 2016, o estão presidente Michel Temer sancionou a Lei Complementar 157, que alterou as regras de cobrança do ISS, o Imposto Sobre Serviços, especificamente para empresas de streaming. Com piso de 2% e teto de 5%, o imposto poderia ser regulamentado por qualquer município.
A medida abriu caminho para que o então prefeito de São Paulo, João Doria, aprovasse uma lei para regulamentar a cobrança às plataformas, que passaram a pagar ISS de 2,9% em 2018. Ele disse que as empresas eram ricas e que não precisariam aumentar o preço; bastava tirar das margens de lucro.
Determinar onde é o local do consumo de serviços é um dos principais desafios da economia digital. Rita de la Feria, professora da Universidade de Leeds, no Reino Unido, e uma das maiores especialistas do mundo em IVA, diz que o desafio é quando a empresa não tem sede no país onde fornece o serviço.
"A economia digital permite que as vendas sejam feitas à distância quando não há presença física no país. Esse é o desafio da economia digital em termos de imposto sobre o consumo", diz.
A reforma de Appy gera resistência entre entes federativos pois ao invés de receber os recursos diretamente, eles teriam que participar de uma comissão para decidir, em conjunto com a União, qual parte lhes cabe do dinheiro de um fundo único.
Essa possível nova dinâmica ataca em cheio a receita crescente que os municípios tem com o Imposto sobre Serviços, e da qual eles não querem abrir mão.
O setor de serviços é o maior crítico à criação de imposto que incida sobre o consumo, justamente porque devem sentir um aumento significativo da carga num primeiro momento.
"Num cenário muito extremo, a companhia pode sair de uma tributação de 2% para uma de 15%, 20%. Não tem uma saída boa para as empresas do setor sendo considerada na proposta em tramitação", diz Fagner Souza, líder da área de tributação da Mazars, auditoria e consultoria empresarial.
Bernard Appy tem dito que a simplificação tributária será tão grande que vai estimular a atividade econômica e beneficiar empresas de todos os setores, já que haverá uma redação no esforço necessário para elas conseguirem se manter em dia com suas obrigações tributárias.
Mas como a reforma propõe uma mudança da base tributária, é esperado que alguns vão sofrer mais do que outros.
Um levantamento recente da consultoria Prospectiva com 196 deputados federais e 21 senadores, com amostra proporcional ao tamanho das bancadas partidárias, mostra que 49% são a favor da criação de uma taxa específica para serviços digitais de grandes empresas de tecnologia enquanto 41% são contra.
Apesar de o Brasil ter um dos sistemas tributários mais complexos do mundo, a discussão sobre como tributar serviços digitais não acontece só aqui.
Lá fora, e especialmente na Europa, o debate vai além do consumo e chega na renda das empresas envolvidas, que muitas vezes, alocam suas sedes em países com regimes fiscais mais brandos, como a Irlanda, por exemplo, e acabam pagando menos impostos nos países onde ficam seus consumidores.
"Essa empresa paga royalties sobre essa patente, registrada muitas vezes em paraísos fiscais, onde não paga quase nenhum imposto. Ou seja, essa renda não está sendo tributada. Por isso, alguns países estão discutindo fazer um imposto sobre a venda desse serviço para poder compensar o fato de essa renda estar em outro país e não onde o consumidor está", explica Lisboa.
"Se o consumidor dá os dados de seu cartão para comprar um produto diretamente na Apple americana, por exemplo, o país onde ele mora não recebe nenhuma tributação e nem identifica essa relação jurídica. Foi esse ponto que causou barulho na Europa. A França estava vendo um volume gigantesco de produtos sendo consumidor por residentes franceses e o país não via nada disso", diz Rodrigo Brunelli, sócio do escritório Ulhôa Canto Advogados.
Um caminho possível é tentar atrair o registro da patente para o seu próprio país, já que é ali que está o maior valor da empresa de tecnologia.
"Para elas não é a produção do bem em si que gera valor, é a patente. Montar um iPhone tem muito pouco valor. O grande valor das peças desse aparelho é a marca", diz Marcos Lisboa.
Mesmo reconhecendo que é uma solução imperfeita, o Reino Unido anunciou no ano passado que começaria a taxar a receita de plataformas online como Google, Facebook e Amazon.
Mais recentemente, a França anunciou que vai tributar em 3% as receitas geradas de fontes francesas por empresas com mais de € 750 milhões (R$ 3,2 bilhões) em receita anual mundial, como é o caso do Google ou da Amazon.
Nesta quarta-feira (09), a Organização Para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgou uma proposta para que os países possam taxar os lucros mundiais das gigantes da tecnologia, mesmo que as patentes estejam registradas em outro lugar.
A reforma é necessária pois “as regras atuais datam dos anos 20 e não são mais suficientes para garantir uma alocação justa dos direitos de tributação em um mundo cada vez mais globalizado”, diz o texto.
Ele ainda precisa ser discutido no fim do ano e será adotado apenas se houver consenso entre os membros, de forma a evitar que os países imponham esse tipo de tributação de forma unilateral.