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Da Redação
Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h11.
Está cada vez mais na moda, para as melhores cabeças do Primeiro Mundo, discutir hoje em dia se o Brasil é ou não capaz de se governar com um mínimo de responsabilidade. A impressão geral que deixam transparecer, com maior ou menor delicadeza, é que não muito, ou que não mesmo. Não somos, no veredicto freqüente que se dá ao Brasil lá fora, maduros ou competentes para cuidar das florestas da Amazônia, assegurar a boa preservação do cerrado ou conservar a mata Atlântica. Não tratamos bem do mar, dos rios e dos lagos - nem da terra, da flora e da fauna. Produzimos cana, ou biocombustíveis, de maneira excessiva e irresponsável. Há sérias distorções no uso de fertilizantes e na produção de transgênicos. Permite-se o trabalho escravo e infantil. Não há segurança jurídica. A concentração de renda é um espanto, bem como a miséria, a violência e o turismo sexual. As populações indígenas estão à beira da extinção. É verdade que duas agências internacionais de avaliação de risco deram as notas mínimas para o Brasil atingir o grau de investimento - mas, fora isso, quase tudo o mais encontra-se em situação francamente lamentável, como garantem os rankings feitos para medir quem é bom, médio ou ruim neste mundo.
Uma parte disso tudo é exagero ou mera tolice. Outra parte é isso mesmo. Em ambos os casos, o problema deveria ser nosso - mas vai se formando pouco a pouco a incômoda sensação de que não é. Com uma freqüência progressivamente maior, o Brasil se vê colocado no meio de conversas sobre sua responsabilidade perante o planeta e sobre o que seria o "dever" do mundo civilizado de fazer "alguma coisa" a respeito dos danos que estaríamos causando a nós mesmos e ao resto da humanidade. Ultimamente, o foco desse tipo de considerações tem sido a Amazônia: coloca-se em dúvida se o Brasil e os brasileiros têm mesmo condições de geri-la por si próprios, e se já não estaria na hora de pensar em algum tipo de "internacionalização" da área ou numa "partilha de autoridade" sobre ela. O risco real nessa história toda, para o Brasil, não parece estar na possibilidade efetiva de que 60% do seu território seja transformado em protetorado da ONU ou de um consórcio de ONGs. Não faltam propostas, mas não está claro como se poderia fazer alguma coisa prática a esse respeito. Uma invasão armada, com bombardeio aéreo de Manaus e desembarque de tropas em Belém do Pará? A captura do general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia, como os americanos vêm tentando fazer desde 2001 com Bin Laden? Tirar a nota BBB- que a Standard & Poor's acabou de dar ao país? Boicote internacional às exportações brasileiras de frango? Nada disso está na esfera das coisas reais. O risco verdadeiro poderia estar, isso sim, na criação de um duplo problema. De um lado, o aumento na quantidade já bem grande, aqui dentro, de gente que pensa de modo não muito diferente dos que, lá fora, sustentam que o Brasil não tem jeito. De outro, a emergência de um espírito "nós contra o mundo" - que resulta na convicção de que está tudo bem e que não é preciso modificar nada.
Em qualquer das hipóteses, o país estará malservido - e na segunda delas estará mais malservido ainda. A lista de tarefas urgentes a realizar, e a resistência a realizá-las, já é grande o suficiente, do jeito que as coisas estão, para dar força às idéias segundo as quais o Brasil não poderia aceitar nenhuma mudança "sob pressão". Com pressão ou sem pressão, o fato é que não interessa ao país continuar considerando normal a vida como ela é no momento - a começar pelo entendimento que se tem da política. A Folha de S.Paulo, recentemente, informou que o número de inquéritos e ações penais contra deputados federais e senadores acaba de chegar a 281, num universo que reúne menos de 600 pessoas - 513 deputados e 81 senadores. Não dá para ver, realmente, como uma coisa dessas pode levar a algo de positivo, no presente ou futuro. Mas é música pura, certamente, para todos os que consideram o Brasil incapaz de cuidar de si próprio.
Boi no pasto
À primeira vista, parece ser uma espécie pouco conhecida de fixação ou algum outro distúrbio neurológico de origem ainda obscura, coisa que talvez receba no futuro a atenção dos mestres da psiquiatria. O fato é que, de tempos em tempos, sempre acaba aparecendo no governo brasileiro um ministro que se propõe a "caçar boi no pasto". A idéia já foi utilizada, em outras ocasiões, para combater a inflação, dar um ar de seriedade a tabelamentos ignorados nos preços da carne, enfrentar a prática de ágio, ou para propósitos dos quais ninguém se lembra mais hoje em dia. Em sua última manifestação, esse tipo de idéia fixa acaba de ser apresentado pelo novo ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc - também ele anunciou que vai "caçar boi no pasto", agora como arma para combater o desmatamento da Amazônia. À segunda vista, entretanto, parece haver um certo método dentro desses súbitos acessos de agressividade do poder público em relação ao rebanho nacional. Não se consegue, é claro, um mínimo de resultado prático, nem para baixar o preço da carne, nem para nada. Em compensação, a autoridade que faz esse número acha que está passando à platéia uma impressão de operosidade, espírito de combate e vergonha na cara para encarar paradas duras - duela a quién duela, como diria o ex-presidente Fernando Collor.
Não se sabe exatamente a quantas anda, neste momento, o nível geral de credulidade da população; costuma ser alto, para sorte dos governos, mas não o suficiente, talvez, para levar muita gente a acreditar que a mata Amazônica começa, enfim, a ser salva. Na dúvida, o ministro Minc tenta de novo aplicar a fórmula da caça ao boi; mal não faz. Afinal, "caçar boi no pasto" sempre parece coisa de macho. Acaba rendendo comentários do tipo "o homem não tem medo de cara feia" ou "com esse Minc não tem conversa". A imprensa, como é do gosto já bem conhecido do ministro, faz barulho. Fica criada uma expressão nova, "boi pirata", no lombo de quem o Ministério do Meio Ambiente vai jogar muito pecado. Enfim, há a vantagem de fazer toda essa marola a custo zero - com mais algum tempo a história vai cansando, cai em exercício findo e não se fala mais nisso, nem se cobra resultado algum da operação antiboi ora colocada em cartaz pelo ministro. E que resultado prático poderia mesmo haver no mundo das realidades? A área da Amazônia Legal tem hoje um rebanho superior a 70 milhões de cabeças de gado, o dobro do que tinha dez anos atrás. Quantas delas, precisamente, o ministro vai "caçar no pasto"? Menos 10 milhões, digamos, não iria fazer diferença nenhuma no desmatamento - e como é que se vai sumir com 10 milhões de bois, ou mesmo com um mero milhão, assim de uma hora para outra? Seria coisa nunca vista antes neste país ou mesmo neste mundo.
Talvez se possa alegar, com muita boa vontade, que a expropriação de um certo número de reses poderia servir a um propósito pedagógico, desestimulando os pecuaristas a manter ou aumentar os rebanhos da região. É pouco provável que venha a acontecer algo parecido. O aumento de 100% na quantidade de gado da Amazônia ocorreu, como dito acima, nos últimos dez anos; desse período, cinco anos e meio foram de governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante os quais ocorreram aumentos espetaculares, também, na produção de outros itens do agronegócio. Estaria, então, tudo errado até agora? É óbvio que não, como é óbvio que a utilização da Amazônia para a criação de gado em larga escala precisa ser reformulada a fundo, a sério e com urgência. Para isso, porém, é preciso trabalho fundo, sério e urgente - o que não dá cartaz, nem popularidade, nem resultado de um dia para o outro. É o oposto, exatamente, de "caçar boi no pasto"