GARRA: seria a garra e a determinação as matérias-prima do sucesso, ou seria o talento? / Dean Mouhtaropoulos/Getty Images
Da Redação
Publicado em 10 de junho de 2016 às 19h29.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h33.
A essa altura, você certamente já ouviu falar do poder da garra, da perseverança, e de como esses traços psicológicos podem ser mais determinantes para o sucesso do que o talento. Afinal, os proponentes da ideia têm sido bem persistentes em divulgá-la. A nova campeã dessa tese é a psicóloga Angela Duckworth, da Universidade da Pensilvânia, que acaba de lançar o livro Grit – The power of passion and perseverance (Garra – o poder da paixão e da perseverança, numa tradução livre).
O livro, um dos mais vendidos nos Estados Unidos de acordo com a lista de best-sellers do jornal The New York Times, até que demorou a ser feito. Angela disseminou o termo “grit” (garra) em 2013 num dos ciclos de palestras do TED, uma organização americana voltada para a transmissão do conhecimento com vídeos na internet. A apresentação de Angela a levou quase instantaneamente à fama mundial. Seu trabalho passou a ser citado, comentado e aplicado. Várias escolas adotaram a escala de garra criada por ela, e a discussão sobre como tornar as crianças mais perseverantes passou a dominar o debate na área de educação.
Não é uma ideia assim tão nova. No século XIX, o sociólogo alemão Max Weber já defendia, no livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, que o senso de trabalho duro era o principal motor para a riqueza das nações. Mas de algum modo, no correr do século passado, essa ideia foi suplantada pela valorização da inteligência, do talento natural. Nos esportes, nas artes, nos negócios, vivemos uma época de estrelismo – elevamos os campeões ao status de heróis, de seres munidos de dons especiais, tocados pelos deuses.
Foi contra essa mística que surgiram os recentes defensores da tese do esforço. A onda começou em 2008, primeiro com um artigo do jornalista Geoff Colvin, na revista Fortune, intitulado Why talent is overrated (“Por que o talento é sobrevalorizado”). Tratava-se de uma resposta à famigerada “guerra pelos talentos”, uma tese lançada pela consultoria McKinsey uma década antes, segundo a qual as empresas mais bem-sucedidas seriam aquelas capazes de atrair e reter os melhores talentos (a tese continua viva e forte).
Talento inato?
A rigor, o artigo de Colvin, que dois anos mais tarde virou um livro, não era tanto uma negação da importância do talento, e sim uma oposição à ideia do talento inato. Sua principal tese era que o talento é adquirido, através do trabalho duro. Em outras palavras, a prática faz a perfeição. Mas não qualquer prática. Colvin apresentava o conceito de prática deliberada: identificar pequenas falhas e constantemente “esticar” suas habilidades; repetir os exercícios muitas e muitas vezes; demandar a opinião de especialistas, treinadores, mentores, porque nem sempre somos capazes de julgar nossos próprios progressos; esforçar-se com foco e concentração; manter o trabalho duro até a exaustão física e mental. Naquele mesmo ano, o jornalista Malcolm Gladwell, da revista New Yorker, lançou o livro Fora de série, em que citava a tese das 10000 horas necessárias para chegar à maestria de alguma atividade.
O trabalho de Angela renova essa linha. Primeiro, no marketing. Grit é uma palavra de muito mais apelo do que as expressões anteriores: esforço, perseverança, senso de dever. Ela recupera uma qualidade arraigada na cultura americana. Em 1969, John Wayne estrelou o filme True Grit (aqui traduzido como “Bravura Indômita”), refilmado em 2010 pelos irmãos Coen, com Jeff Bridges no papel do agente bêbado que vai caçar um assassino nos confins de um território indígena.
Angela também foi mais ousada em sua linha de ataque. Ela não diz apenas que a garra constrói o talento. Ela afirma que a garra é o fator mais importante para prever o sucesso de uma pessoa, em praticamente qualquer campo das atividades humanas. Baseia-se em algumas pesquisas que ela própria fez, quando ainda era estudante, além de indícios que coleta do trabalho de colegas e de histórias de gente bem-sucedida.
A implicância com o valor dado ao talento não é despeito. Angela tem credenciais invejáveis (como ela mesma cita, sem o pecado da modéstia, em várias passagens do livro). Ela é graduada, com distinção, na Universidade Oxford, onde se formou em neurociência. Foi estagiária no setor responsável por discursos na Casa Branca e se tornou consultora da McKinsey – emprego que largou para se tornar professora de ciências. Ela conta que, quando ainda estava estudando na escola, fez um teste de QI e não obteve a pontuação necessária para entrar na classe dos mais talentosos. Mas, no ano seguinte, refez o teste e passou. “Acho que você pode dizer que eu seja um caso limite de alto potencial.” (A essa altura, você imagina que essa informação se traduz em algo como: “repare, eu sou contra prestar muita atenção ao talento, mas não é por falta de talento”.)
A batalha dos cadetes
A principal evidência do poder da garra apresentada por Angela é seu estudo em West Point, uma escola militar dos Estados Unidos que tem uma seleção rigorosa, tanto física quanto intelectual. Cerca de 14000 inscritos passam por um funil e apenas 1200 são admitidos. Mas essa é só a primeira seleção. Depois de aprovados, os cadetes passam por um treinamento de sete semanas identificado pelo sugestivo nome de “a besta”, e é comum que gente que se preparou mais de dois anos para entrar na escola chegue à conclusão de que aquilo não vale a pena.
Há anos a escola tenta prever quais cadetes vão desistir. Ela faz um amálgama de pontuações em habilidades diversas, como aptidão física, testes de lógica e avaliação de especialistas sobre o potencial de liderança. Mas essa “nota total do candidato” nunca teve um índice de acerto muito grande na previsão de quem iria seguir adiante.
Foi assim até que Angela apresentou um teste de apenas 12 perguntas. Metade delas era sobre perseverança, a outra metade sobre paixão. O teste pede para que a pessoa se posicione numa escala de 1 (não tem nada a ver comigo) a 5 (tem tudo a ver comigo) para afirmações como “eu termino tudo que começo”, “meus interesses mudam de ano para ano”, “fracassos não me desencorajam” e “eu atingi uma meta que custou anos de trabalho”.
Angela fez o teste em 2004 e 2005, com turmas de cerca de 1200 cadetes. No primeiro ano, houve 71 desistências. No segundo, 62. Garra, segundo ela, se mostrou um previsor excelente para quem ia ficar ou não.
Um segundo teste foi com uma equipe de vendas em uma empresa de time-sharing (que vende pacotes de hospedagem durante vários anos em hotéis afiliados). Ela afirma que, seis meses depois, seu teste havia previsto com boa dose de acerto quem da equipe iria embora. Também em escolas públicas de Chicago, Angela diz ter conseguido prever quais alunos não conseguiriam se graduar. Em todos os casos, garra se mostrou um fator mais importante para prever o sucesso do que qualquer outro – inteligência, aptidão física, ter um bom professor…
Não há, no livro, nenhuma explicação que permita comprovar tais afirmações. Mas no estudo original, publicado em 2007, ela e seus colegas são um pouco mais detalhistas. Afirmam, por exemplo, que os cadetes que têm um pontinho a mais de garra (um desvio padrão acima da média, em linguagem estatística) têm 60% a mais de chance de se manter no curso. Os que estão um desvio-padrão abaixo da média na escala de garra tinham 50% a mais de probabilidade de ficar. Os autores do estudo reconhecem que a garra não foi o melhor previsor para as notas posteriores, tantos físicas quanto intelectuais, dos que permaneceram no curso (a imensa maioria).
Analisando estes dados, um psicólogo da Universidade de Iowa, Marcus Credé, afirmou que as conclusões do estudo são muito exageradas. Segundo ele, o incremento de probabilidade de permanência no curso para quem tem nível acima da média em garra está mais próximo dos 3% do que dos 99%, como divulgado. “É um erro básico, o estranho é que ninguém tenha reparado”, disse ele em um informe da universidade.
Segundo Credé, é compreensível o crescente interesse no estudo da garra, porque é um conceito simples e presente no dia a dia. “Ninguém quer ouvir que o sucesso na vida é feito de vários pequenos fatores que se somam. É sua educação, seu esforço, seu senso de dever, sua criatividade. Todas essas pequenas peças que juntas formam um todo”, afirma. “Nós queremos acreditar que haja uma grande coisa que explique tudo.”
Segundo ele, sua equipe analisou 88 estudos independentes e concluiu que garra não é um conceito muito diferente de senso de dever. E as pesquisas não indicam que seja possível elevar os níveis dessa qualidade nas pessoas. “Mesmo se isso for possível, talvez não tenha importância”, diz ele.
Talento exige mais esforço, não menos
A ciência por trás da tese pode ser fraca, mas isso não é incomum em livros desse tipo – que apresentam grandes soluções para os problemas modernos. Esses livros são em geral calcados em pesquisas mancas e recheados de narrativas que apontam para as conclusões desejadas. Não é à toa que as empresas excelentes deixem de ser excelentes poucos anos depois de um período de consagração, que as empresas que passaram de boas a excepcionais voltem ao patamar de boas (ou meramente razoáveis) em um par de anos, que as ideias revolucionárias sejam substituídas por ideias que revolucionaram a revolução anterior.
Por incrível que pareça, isso não significa que os livros de auto-ajuda de negócios sejam um zero à esquerda. Eles, em geral, trazem conceitos válidos, insights baseados em vivências e histórias que, se não apresentam a chave do paraíso, podem pelo menos ensinar algo da experiência alheia.
No caso da garra, o problema não é que as pesquisas não provem sua importância. É que sua importância é tão óbvia que as pesquisas soam como raciocínio circular – para medir se a pessoa vai perseverar, pergunta-se se ela é no geral perseverante.
Estudos de neurociência já demonstraram que nosso cérebro é plástico. Isto é, a experiência molda as conexões neurais. Isso por si só já indica que o treino é um componente vital do talento.
Não quer dizer que não existam inclinações naturais. Elas provavelmente existem. O campeão de natação australiano Ian Thorpe tinha pés mais largos que o normal, o que lhe dava mais poder de impulsão. Michael Gross, campeão alemão no estilo borboleta, tinha braços mais compridos que o normal. Sem treino, essas pequenas vantagens jamais seriam descobertas.
O verdadeiro talento não é algo que nos exima do esforço. Ao contrário, ele nos impele à dedicação. É esse o sentido da palavra vocação: um chamado, que você deve seguir. Negar sua vocação é ser preguiçoso e recusar o trabalho que vem associado ao talento. Em sua biografia sobre o filósofo Ludwig Wittgenstein, Ray Monk afirma que ele bem cedo percebeu que tinha um talento fora da curva. E isso o deixou apreensivo – porque com o talento sobrevinha a responsabilidade.
Para Angela, o esforço conta duas vezes. A primeira: é através dele que o talento se transforma em habilidade. A segunda: sem ele, a habilidade não vira resultado.
Ela cita o filósofo Friedrich Nietzsche: ninguém vê no trabalho do artista como a obra se tornou. Essa é a vantagem, porque onde quer que se veja o ato de se tornar, perde-se a mística. Procure, na internet, vídeos sobre as horas e horas de treino de Antônio Menezes para tocar a suíte número 1 de Bach no violoncelo. Não há. Por isso é tão fácil achar que sua maestria veio do nada, de um dom, de vidas passadas, de uma varinha de condão.
Angela poderia ter citado um trecho ainda mais contundente de Nietzsche. Em Humano, demasiado humano, ele diz: “Não me falem de dom, ou de talento inato! Pode-se nomear todo tipo de grandes homens que não eram muito talentosos. Mas eles adquiriram grandeza, se tornaram ‘gênios’ (como se diz)”. No mesmo trecho, mais de cem anos antes das teses das 10.000 horas de trabalho duro necessárias para chegar à maestria, o filósofo afirma que é fácil se tornar um bom escritor. E enumera as atividades que devem ser treinadas, variadamente, durante dez anos, para chegar lá.
A garra está sobrevalorizada?
Em sua palestra no TED, há três anos, Angela dizia que não havia ainda muitos estudos sobre este conceito que ela propunha. No livro, ela própria afirma que os estudos são embrionários. Então se calca em histórias de gente de sucesso, como o editor de cartuns da revista New Yorker, Bob Mankoff, ou o fundador da Amazon, Jeff Bezos.
Apesar de algumas obviedades (“Pesquisas mostram que as pessoas são muito mais satisfeitas com seus trabalhos quando fazem algo que se encaixa com seus interesses pessoais.”), a narrativa que ela constrói faz sentido.
Seu argumento mais importante é que a garra não é um atributo fixo, ela pode aumentar. Há dois modos. O primeiro é de dentro para fora. Basicamente, encontrando interesses. Numa primeira fase, diz Angela, não convém ter muita garra. Tudo começa com brincadeiras e experiências variadas. “Interesses não são descobertos por introspecção”, afirma. “Eles são disparados pelas interações com o mundo. O processo de descobrir interesses pode ser caótico, casual e ineficiente. Porque você não consegue prever o que vai capturar sua atenção e o que não vai.”
No início da jornada, diz ela, nós precisamos de encorajamento e liberdade para descobrir aquilo de que gostamos. “Precisamos de pequenas vitórias. Precisamos de aplauso.” Precisamos praticar. A segunda fase é que envolve o treino, a dedicação. “O que se segue ao interesse inicial é um período muito mais longo e crescentemente proativo de desenvolvimento do interesse. Aquela primeira fagulha deve ser seguida por encontros que alimentem sua atenção – de novo e de novo e de novo.” Ou seja: dedicação e interesse seguem um jogo em que um alimenta o outro. Aqui, ela repete os conselhos de Colvin: o treino deve ser deliberado. “O mais importante não é praticar milhares de horas. É praticar com intenção.”
A etapa final é desenvolver um propósito. Ao contrário de gurus que dizem que o propósito vem antes de tudo, ela afirma que o propósito em geral nasce depois do interesse.
A segunda forma de elevar seu nível de garra é de fora para dentro. Você precisa ter um modelo, alguém que demonstre garra. E você precisa ter um bom time. Equipes que se cobram e incentivam a melhorar sempre, diz ela, constroem garra.
Claro, todos esses conselhos valem a pena se você comprar a ideia de que a garra é um elemento preponderante para o sucesso. As primeiras dúvidas já surgiram. Em críticas na revista The Atlantic e no jornal The Washington Post, o trocadilho foi irresistível. Lembrando o artigo de Colvin sobre talento, ambas deram como título a pergunta: “A garra está sobrevalorizada?”
Talvez o tipo de resultado que se obtém com uma ênfase tão grande em garra não seja o melhor de todos. Na equipe de vendas da empresa de time-sharing, a rotatividade em seis meses foi de 55%. Estarão errados os que saíram? Não há dados para saber se eles conseguiram colocações melhores.
Desistir, muitas vezes, é a melhor estratégia. Especialmente num mundo marcado pela mudança, persistir pode ser suicídio.
Mesmo nos resultados acadêmicos pode-se duvidar da ênfase na garra: alguns estudos apontam que os estudantes com maiores notas tendem a ser mais conformistas que criativos.
Um par de anos atrás, o jornalista americano Saul Singer, autor do livro Startup Nation, sobre o espírito empreendedor de Israel, me contou que os israelenses ficaram preocupados porque seus estudantes estavam perdendo posições no ranking do Pisa, o teste internacional que mede a proficiência em língua, ciência e matemática no ensino médio. Eles então enviaram uma delegação de pesquisadores à Coreia do Sul, país que galgava as primeiras posições do ranking, para entender seus métodos de ensino. Ao chegar lá, a delegação descobriu que os coreanos planejavam enviar uma delegação para Israel, com o mesmo objetivo. Sua queixa era: sim, nossos alunos tiram as melhores notas, mas eles são menos originais e criativos em suas respostas. Aparentemente, ninguém nunca está satisfeito.
(David Cohen)