Economia

O trunfo da era digital

Numa obra abrangente, o historiador Niall Ferguson analisa a influência da formação de redes nos principais acontecimentos mundiais

 (Dado Ruvic/Reuters)

(Dado Ruvic/Reuters)

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Da Redação

Publicado em 10 de março de 2018 às 12h19.

Última atualização em 10 de março de 2018 às 12h19.

The Square and the Tower: Networks and Power, from the Freemasons to Facebook (“A praça e o torre: as redes e o poder, da maçonaria ao Facebook”, numa tradução livre)

Niall Ferguson

493 páginas

Editora Penguin Press

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As rápidas transformações ocorridas na era digital representam um desafio para o mundo acadêmico, em especial na formulação de estudos sobre seu impacto na política, nos negócios e na forma de as pessoas se relacionarem. Um exemplo a ser explorado é a influência desproporcional que empresas inexistentes há 20 anos, como o Google e o Facebook, passaram a exercer em nossa rotina. Elas surgiram e cresceram usando a internet, a rede mundial que conecta as pessoas de forma horizontal, sem a intermediação direta de um país ou de outro tipo de hierarquia institucional, revolucionando a economia global. Passado o impacto gerado pela incorporação dessa tecnologia no dia a dia, estudiosos começam a se debruçar numa reflexão mais profunda de como se deu essa transição a jato do mundo analógico para o digital, analisando as transformações mundiais que desembocaram no modelo atual, e o futuro que nos espera.

É disso que se ocupa o historiador escocês Niall Ferguson em The Square and the Tower: Networks and Power, from the Freemasons to Facebook (“A praça e o torre: as redes e o poder, da maçonaria ao Facebook”, numa tradução livre), livro recém-lançado com uma proposta ambiciosa de mostrar, sob uma perspectiva histórica ampla e detalhista, como se deu esse processo.

Para isso, Ferguson utiliza como parâmetro a análise da formação de redes – modelo de relacionamento sempre existente e característica central da era digital que vivemos – e sua interação com as tradicionais estruturas hierárquicas, como os Estados-nação e organizações corporativas. Na prática, o autor relembra os principais acontecimentos históricos a partir do século 15 sob a lente da expansão das redes de relacionamentos – segundo ele, tradicionalmente subestimadas pela historiografia oficial pelo caráter informal com que costumam se estruturar. Os exemplos vão da maçonaria ao Iluminismo, passando pelas rotas de comércio da era dos descobrimentos, a disseminação da peste negra, a estrutura da Máfia e dos grupos Alcoólicos Anônimos e a forma de atuação do sistema financeiro internacional, chegando às conexões dos terroristas dos atentados de 11 de Setembro e o fenômeno de crescimento das redes sociais na era digital, entre outros exemplos.

O tema é complexo, mas Ferguson recorre à sua notável capacidade de pinçar acontecimentos marcantes ao longo da história e contextualizá-los de forma precisa, numa narrativa leve e recheada de revelações saborosas. Considerado um dos historiadores mais renomados da atualidade, com passagens pela Universidade Harvard e a London School of Economics, Ferguson hoje atua como pesquisador na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos – onde vive há mais de dez anos com a segunda mulher, a ativista holandesa de origem somali Ayaan Hirsi Ali, mãe de dois dos seus cinco filhos. Seu currículo inclui 14 livros, abordando temas como economia, mercado financeiro e história econômica, muitos deles publicados no Brasil (como Civilização – Ocidente x Oriente, relançado em 2016 pela Editora Planeta). Atualmente, está preparando o segundo volume da biografia do ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger.

Em sua obra, Ferguson evita armadilhas, como simplificar fatos históricos, e se esmera no didatismo ao abordar conceitos de difícil compreensão para leigos, recorrendo a gráficos para que o leitor visualize os diferentes tipos de conexões em rede e as condições pelas quais elas podem crescer até viralizar ou terem sua expansão neutralizada por uma estrutura hierárquica. Segundo o autor, o mundo das redes (a praça citada no título, numa referência ao caráter horizontal com que atuam) e o das hierarquias (a torre, com sua estrutura vertical) sempre estiveram interligados, cada um ocupando mais espaço que o outro, de acordo com a época.

As redes, por exemplo, prevaleceram entre o final do século 15 até o final do século 18, e mais recentemente a partir dos anos 1970. As hierarquias foram hegemônicas entre os anos 1790 e o final dos anos 1960, marcados pela ascensão de impérios e consolidação dos Estados-Nação como forma dominante de organização geopolítica mundial. Mas há nuances a serem levadas em conta. Ferguson observa, por exemplo, que as inovações tendem a surgir e a se disseminar por meio de redes – o que explica seu avanço na atual era digital. Já as hierarquias viveram sua época de ouro no século 20, marcado por duas guerras mundiais e grande número de regimes totalitários, como o nazismo e o regime comunista soviético, que tinham como estratégia de poder dizimar as redes de relacionamento pessoais. Mas, em termos históricos, mesmo quando as redes prevaleceram, acabaram invariavelmente cooptadas por hierarquias reconstituídas, fazendo que o processo recomeçasse novamente.

"Efeito Gutenberg"

Ferguson admite que o estudo das redes informais de relacionamento não chega a ser novidade no mundo acadêmico. Vários pesquisadores exploraram o tema, embora na maioria das vezes de forma pontual, sempre relacionando a influência das redes a algum evento específico. Ele cita como exemplo o historiador americano Alan Kors, que publicou em 1975 um livro considerado clássico que avalia o papel das redes no Iluminismo. Em D’Holbach’s Coterie: An Enlightenment in Paris (“O círculo social de D’Holbach: uma iluminação em Paris”, numa tradução livre), Kors mostra a teia de relacionamentos do filósofo franco-alemão Paul-Henri Thiry, o Barão D’Holbach, no século 18.

A obra de Ferguson é mais abrangente por analisar o impacto das redes em vários momentos da história, sendo que o autor teve o cuidado de separar cada episódio em capítulos curtos e muito bem contextualizados. Um dos trechos mais interessantes é quando ele aborda o efeito causado pela invenção da prensa móvel por Johannes Gutenberg, em meados do século 15, em eventos importantes do século 16, como a Reforma Religiosa e a Revolução Científica, além do Iluminismo. De acordo com autor, isso foi possível porque a prensa móvel causou uma ruptura social e econômica semelhante à do computador pessoal no século 20. Entre os anos 1450 e 1500, o preço dos livros caiu 75% em média. O impacto em custo médio para um cidadão foi equivalente a 4% da renda nos anos 1540 e 10% da renda nos anos 1600 – mais do que o do computador pessoal na nossa era, estimado em 3% da renda média em 2004.

Graças à invenção de Gutenberg, o conhecimento pôde ser reproduzido e se espalhar rapidamente em forma de rede por toda a Europa. O primeiro grande beneficiado foi o movimento protestante liderado por Martinho Lutero. Suas 95 teses contestando dogmas da Igreja Católica foram enviadas originalmente como carta para o arcebispo de Mainz, em 31 de outubro de 1517. Quando Lutero foi oficialmente condenado por heresia em 1521, suas teses já haviam sido espalhadas por todo o território europeu. Segundo Ferguson, além do cristianismo ocidental, Lutero revolucionou a comunicação. As prensas móveis produziram mais de 5 000 cópias das suas teses, incluindo 3 000 exemplares que levavam junto outros produtos, como a Bíblia de Lutero – e em alemão, em oposição ao latim, idioma exigido pela Igreja Católica para a reprodução do livro sagrado.

O mundo de Lutero, em 1517, de explorações marítimas e reforma religiosa, era de uma estrutura hierárquica – espalhada por cerca de 30 impérios, reinos e ducados. As guerras religiosas que se seguiram ao movimento protestante causaram destruição entre os reinos no período entre 1524 e 1648. Quando outras ondas de inovação ocorreram no período, como a Revolução Científica e o Iluminismo, Ferguson destaca um detalhe interessante envolvendo esses movimentos: a propagação de seus ideais por meio de trocas de cartas pessoais. A correspondência entre acadêmicos e intelectuais – um movimento típico de redes de relacionamento – era muito comum na época. Pesquisas indicam que as cartas trocadas na época do Iluminismo envolviam uma rede de 6 000 autores – apenas o filósofo francês Voltaire se correspondia com 1 400 intelectuais, 30% deles do exterior.

As redes de relacionamentos também foram fundamentais para outro momento decisivo da história, a independência dos Estados Unidos, por conta da atuação da maçonaria. O tema é polêmico, pois nem todos os principais ativistas eram maçons. Dos 241 “pais fundadores” dos Estados Unidos, 68 eram maçons. Apenas 8 dos 56 signatários da Declaração de Independência pertenciam a lojas maçônicas – Benjamin Franklin foi grande mestre de uma loja na Filadélfia e George Washington, da loja de Alexandria. Ao tomar posse na presidência, em 1789, Washington prestou juramento sob a Bíblia da loja maçônica Saint John, de Nova York.

Se a participação maçom no processo de independência americana é inegável, até hoje historiadores se debatem em que medida a maçonaria foi de fato decisiva. Ferguson direciona o debate em outra direção: a Constituição americana criada nos anos 1780 tinha o objetivo claro de institucionalizar uma ordem política anti-hierárquica – o que foi notado pelo filósofo francês Alexis de Tocqueville, ao fazer suas observações sobre o caráter descentralizado e associativo do sistema federal americano. Para Tocqueville, foi o peculiar caráter igualitário de uma sociedade colonial que tornou possível a sofisticada rede de associações civis que, segundo ele, possibilitaram o sucesso da experiência americana. A maçonaria, assim, seria uma delas.

Impacto histórico

O livro ganha fôlego quando Ferguson passa a analisar como a expansão das redes enfraqueceu estruturas hierárquicas no processo recente de transformações políticas – entre eles, o fim da Guerra Fria –, abrindo caminho na sequência para a revolução tecnológica da era digital. Um exemplo é o impacto causado pela formação de redes no colapso do comunismo. Ferguson cita o caso da Polônia do início dos anos 1980. Foi nessa época, ainda sob o governo comandado pelo general Wojciech Jaruzelski, que a dissidência ao regime comunista começou a ser organizada por associações independentes – o que permitiu liberais seculares de universidades juntar forças com a Igreja Católica e sindicatos de trabalhadores. O processo de expansão por meio de redes informais de relacionamento, que avançaram e ganharam notoriedade internacional com a criação do sindicato independente Solidariedade, comandado por Lech Walesa – algo inédito num regime comunista –, é citado como fundamental para a série de mobilizações no Leste Europeu que desembocariam na queda do Muro de Berlim, no fim do comunismo e da União Soviética.

O poder das redes ficou ainda mais evidente na era digital. Ferguson faz uma reflexão detalhista sobre essa ligação com todos os acontecimentos recentes. Um deles é a forma de atuação da Al Qaeda – uma organização terrorista internacional criada em formato de rede – nos atentados de 11 de Setembro. Ele observa que, em termos de visibilidade, os 19 terroristas islâmicos que participaram dos ataques estavam mais conectados à ampla rede política do Islã, que inclui muçulmanos de vários países e organizações que não estavam ligados a grupos armados, do que à própria Al Qaeda, o que explica a dificuldade de serem rastreados ao entrar nos Estados Unidos. Na prática, os 19 formavam uma rede antissocial – invisível, como deve ser uma rede secreta.

Outra particularidade foi o erro de avaliação da cúpula da Al Qaeda sobre as consequências dos atentados em solo americano. Segundo Ferguson, o objetivo de Osama bin Laden ao preparar um ataque coordenado contra os principais símbolos de poder dos Estados Unidos era criar um efeito cascata nos sistemas de transporte (aéreo), político e financeiro do país, mergulhando o país numa recessão. Embora os estragos materiais dos atentados tenham sido elevadíssimos — estimados entre 33 bilhões e 36 bilhões de dólares, entre prejuízos de propriedades, custos de limpeza, indenizações, etc. –, Ferguson observa que a economia dos Estados Unidos não foi afetada como um todo. Ou seja, a rede capitalista americana foi mais resiliente que os jihadistas esperavam.

Para o autor, essa constatação reforça o peso de algumas consequências visíveis da era digital – como o avanço do processo de globalização e, por tabela, a consolidação da rede financeira internacional que a sustenta. Depois de analisar passo a passo o desenvolvimento da crise de 2008, o autor conclui que as análises macroeconômicas não levaram em conta o tamanho e o alcance da estrutura em rede do sistema financeiro mundial – ou seja, poucos perceberam que essa rede global tinha se tornado conectada o suficiente para sofrer, de forma rápida e em sequência, os efeitos de um acontecimento imprevisível. Segundo ele, o que evitou uma repetição da Crise de 1929 foi a iniciativa do Tesouro dos Estados Unidos de prevenir outras falências financeiras em cascata, após a quebra do Lehman Brothers. A seguradora AIG e outros bancos, por exemplo, receberam aportes de mais de 400 bilhões de dólares por meio de um programa de recuperação.

O longo espaço dedicado no livro a discutir a economia na era digital contempla os efeitos da globalização e principalmente o papel das grandes empresas de tecnologia na economia mundial. Ferguson faz um paralelo entre as tradicionais corporações de perfil hierárquico, com seus custos fixos elevados que ajudam a erguer barreiras à entrada competitiva, e as empresas de tecnologia da era digital – que atuam como “novas redes” disruptivas, construídas em plataformas digitais tornadas possíveis pela internet. Esses novos negócios, argumenta, alimentam os chamados “efeitos de rede”, que levam inevitavelmente à grande concentração de mercados. O Google, criado há apenas 20 anos, detém um valor de mercado de 665 bilhões de dólares e 88% da fatia de publicidade online.

Neste aspecto, Ferguson acerta em cheio ao apontar o que de fato está em jogo atualmente: como o mundo deve reagir ao amplo domínio do Vale do Silício. Segundo ele, só há duas alternativas para combater a hegemonia de empresas americanas de tecnologia como Google, Amazon e Facebook: capitular (e impor restrições) ou competir. Os europeus escolheram a primeira opção. A única empresa de tecnologia baseada na Europa é o Spotify, serviço de streaming de música, podcast e vídeo criado na Suécia em 2006. De resto, a União Europeia busca regular a forma de atuação das empresas americanas para evitar um oligopólio digital made in USA. A China, por sua vez, optou pela competição. Gigantes chinesas como Baidu (buscador), Alibaba (versão local da Amazon) e Tencent (app de mensagem instantânea) já dominam o mercado chinês, com receitas e participação no mercado local proporcionais às das empresas americanas nos Estados Unidos.

Entre as lições deixadas pela obra de Ferguson destaca-se a de que a existência de redes, seu impacto na economia e na forma de as pessoas se relacionaram devem servir de premissa, e não como um fim em si, para uma discussão mais ampla sobre os caminhos da era digital. O pensador indiano Parag Khanna reforça essa certeza ao propor uma nova disciplina – Conectografia – para mapear a revolução global das redes. Já o cientista político americano Francis Fukuyama é uma voz dissonante, ao argumentar que a hierarquia deve prevalecer. Segundo ele, as redes por si só não podem prover uma estrutura institucional estável para a ordem política e o desenvolvimento econômico. Na verdade, argumenta ele, “a organização hierárquica pode ser o único caminho pelo qual uma sociedade com baixa confiança pode ser organizada”.

Uma conclusão óbvia da obra de Ferguson é a de que a influência da internet, até agora, foi maior nos negócios do que na política. A última eleição presidencial americana serve de exemplo. Numa disputa em que os dois candidatos buscaram os votos até a última hora, a televisão ainda foi o meio pelo qual a maioria dos eleitores se informou. Mas, como lembra Ferguson, a influência das redes sociais foi decisiva para alavancar a candidatura de Donald Trump. O candidato republicano tinha 32% mais seguidores do que a opositora Hillary Clinton no Twitter e 87% mais amigos do que ela no Facebook. Na reta final, em meio à crescente polarização do eleitorado, as notícias falsas anti-Trump foram compartilhadas no Facebook 8 milhões de vezes; as anti-Hillary, 30 milhões de vezes.

Revertendo um sentimento de orgulho misturado ao de fascínio que vigorava até há pouco tempo pelo rápido avanço tecnológico da era digital, fica cada vez mais evidente a desconfiança com o que vemos na internet. As redes sociais, com seu discurso de ódio, intolerância e grosseria, são o melhor exemplo – ao mesmo tempo que conectam as pessoas, polarizam o debate. O livro de Ferguson, essencial para alimentar o debate, aponta alguns caminhos para o futuro. Mas a sensação é a de que ainda não temos respostas para a maioria das perguntas.

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