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Da Redação
Publicado em 18 de março de 2010 às 11h15.
De tempos em tempos os brasileiros que lêem sobre economia e negócios são lembrados da existência, num quadrinho remoto que pode ser encontrado no meio do organograma do governo federal, de uma repartição pública chamada Ipea, sigla do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Esse Ipea, tanto quanto se saiba, é pago pelos contribuintes para fazer pesquisas econômicas - ou, na torturada sintaxe que ele próprio utiliza, "articular conhecimento para o planejamento do desenvolvimento" do Brasil. Um cidadão comum poderia ter a curiosidade de perguntar por que motivo o governo federal, que conta com pelo menos dois ministérios inteirinhos para fazer exatamente isso - o da Fazenda e o do Planejamento, sem citar o Banco Central -, precisaria ainda de mais gente pesquisando dados econômicos. Precisar, mesmo, não precisa. Mas o Ipea já está aí há muito tempo, vai continuar existindo e alguma coisa seus diretores e funcionários têm de fazer. Em circunstâncias normais, o instituto dá a impressão geral de ser inofensivo - é possível, inclusive, que tenha feito contribuições positivas, no passado, para um melhor entendimento das realidades da economia brasileira. Mas em circunstâncias anormais, como as de agora, pode revelar-se um belo gerador de prejuízos para a reputação do governo.
Essa situação de anormalidade foi criada, passo a passo, pelo presidente atual do Ipea, Márcio Pochmann, e seus companheiros de direção. No fim do ano passado, quatro economistas que faziam parte do escalão superior do instituto foram afastados; aparentemente, não se enquadravam no molde ideológico que se requer hoje para trabalhar ali. Mais recentemente, o Ipea divulgou números mostrando melhorias na distribuição de renda a partir do início do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva; nenhuma menção foi feita aos dados dos anos anteriores, pelos quais se pode constatar que esse processo começou e ganhou impulso no governo anterior. Por fim, justo na hora em que os preços começam a emitir sinais negativos, o órgão resolveu suspender a publicação das estimativas que fazia sobre a inflação a cada três meses - a partir de agora, elas serão divulgadas uma vez por ano. Para cada episódio, a direção do Ipea tem suas explicações. A saída dos economistas foi um fato da rotina natural da vida. A omissão dos dados sobre renda se deve a mudanças técnicas nos critérios de pesquisa. As previsões sobre inflação passam a ser anuais porque não é necessário ficar falando do assunto a cada três meses. Mais alguma dúvida? Nenhuma, a não ser o fato de que toda essa ladainha só reforça a suspeita de que o Ipea passou a ser utilizado como uma clínica de modelagem para estatísticas, de onde os números saem do jeito que o governo quer - ou do jeito que sua diretoria supõe que o governo queira.
Já é difícil, por tudo o que mostra a experiência, acreditar em números oficiais; o instituto, com sua conduta atual, está fazendo o possível para tornar isso mais difícil ainda. Quem leva o prejuízo, no fim das contas, é a credibilidade do governo. O Ipea, legalmente, é um órgão técnico, e não um escritório para divulgar as idéias, crenças e desejos de seus diretores em relação à economia; destina-se a dizer, na medida do possível, o que acontece, e não o que Pochmann acha que deveria acontecer. Ele e todos os que dão expediente ali são pagos pelo conjunto dos contribuintes brasileiros, não apenas pelos que votam no PT. Têm obrigação, assim, de agir com isenção nas tarefas que fazem - como se espera que aja, por exemplo, o Instituto de Pesos e Medidas, que também faz parte do governo Lula e até mudou de nome, mas não está autorizado a ter um quilo de esquerda, um metro de direita ou um litro neoliberal. Pochmann não gosta do que chama de "mercado", do capitalismo em geral e dos lucros financeiros em particular. Vai passar o resto da vida se aborrecendo com essas coisas, pois todas elas continuarão a existir no Brasil do presidente Lula e dos seus sucessores, indiferentes às previsões trimestrais, anuais ou diárias do Ipea. Mas o lugar de onde tem direito a manifestar suas insatisfações não é, certamente, a direção de um órgão do serviço público.
Saltando do barco
Nada como o sucesso, principalmente o grande sucesso, para fazer amigos, influenciar pessoas e levar governos a esquecer o que diziam, trocar de lado e descobrir virtudes nos vencedores. O governo da Colômbia, seu presidente Álvaro Uribe e suas Forças Armadas conseguiram obter um sucesso desses na semana passada. Há tempos, claramente, já vinham ganhando sua luta contra os grupos militarizados de criminosos que há anos vivem em guerra com a Colômbia e os colombianos, e que têm desfrutado de uma espécie de habeas corpus internacional e ideológico por descreverem a si próprios como revolucionários, guerrilheiros ou combatentes políticos, sob a proteção da grife "Farc". Mas agora o governo Uribe conquistou contra eles a maior de todas as suas vitórias - com a operação não apenas espetacular mas extremamente profissional e competente, na qual os militares colombianos resgataram 15 reféns seqüestrados há anos pelas Farc, a começar por Ingrid Betancourt, a maior celebridade entre todos. Foi o que faltava para mudar, abertamente, a "percepção" da coisa.
O primeiro a saltar do barco foi o comandante Hugo Chávez, presidente da Venezuela - até bem pouco tempo atrás o amigo número 1 das Farc. Chávez, que ainda no mês de março ameaçava entrar "em guerra" contra a Colômbia, armou todo um show com tropas na fronteira e chegou a chamar de "assassino" o presidente Uribe, já vinha tirando o corpo fora nas últimas semanas, ao ver o progressivo desmanche dos aliados; mas virou um outro homem, de vez, com o êxito da operação de resgate. Disse que receberá Uribe como "um irmão", reprovou a "guerrilha" na Colômbia e pediu que as Farc libertem os seqüestrados que continuam mantendo em seus cativeiros. O presidente da Bolívia, Evo Morales, que imitava em tudo a linha de Chávez, também foi rápido na corrida para trocar de lado. Para ele, agora, a "luta armada" não tem mais lugar no mundo de hoje; deu parabéns à Colômbia e um adeus aos amigos de ontem. O Brasil, enfim, foi atrás da mesma procissão. O presidente Lula disse que a libertação dos reféns foi uma vitória do governo colombiano e de todos os que defendem a paz. Chamou de "abominável" a atitude de manter seqüestrados em cativeiro e afirmou, com clareza, que a ação das Farc deve ter "um fim". Não existe nenhuma razão, concluiu Lula, para se querer chegar ao poder "pela via armada" - não num regime de liberdade e num continente onde se exerce a democracia.
Melhor assim, com certeza. Até há pouco, a política externa brasileira sustentava a ficção de que havia na Colômbia uma disputa praticamente legítima entre adversários políticos, cada um com suas boas razões - algo assim como uma desavença entre o Partido Conservador e o Partido Trabalhista no Parlamento de Sua Majestade britânica. Não parecia causar maior impressão, no Itamaraty e na assessoria internacional do Palácio do Planalto, o fato de que um dos lados, no conflito colombiano, era um governo eleito pelo voto popular, democrático e constitucional; o outro, um consórcio de indivíduos armados que se dedicava regularmente à prática de crimes como tráfico de drogas, roubo, seqüestros, extorsão, tortura e homicídio. A posição brasileira era a de que "as partes" deveriam negociar. Os autores dos crimes deveriam ser considerados como "combatentes". E ainda em março, quando a Colômbia mandou para o espaço uma base das Farc no Equador, o Itamaraty mostrou-se preocupadíssimo, deplorando severamente a ação militar colombiana; lamentava-se, em surdina, a "intransigência" de Uribe. Por pouco não se disse que o culpado de tudo, no fundo, era ele.
De lá para cá, as Farc entraram numa rápida descida ladeira abaixo, somando derrota em cima de derrota. Nos últimos meses, além disso, a atenção constante dos meios de comunicação deixou cada vez mais visíveis para o mundo inteiro a crueldade, a insensatez e a injustiça, pura e simples, praticadas contra os reféns. Agora, com a libertação de Ingrid, a casa parece ter caído de vez. Hora, também, de descolar-se do lado que perde, esquecer a neutralidade e felicitar o lado que ganha. A decisão do Brasil de alinhar-se com a razão pode ter vindo mais tarde do que deveria. Mas o importante, mesmo, é que veio.