Economia

No mundo pós-coronavírus, não podemos dar passos para trás

Não é preciso dizer que o mundo pré-corona não era bom para nós, escreve o economista bengali

Yunus: “Antes de reiniciarmos a economia, devemos ter em mente que tipo de economia queremos” (Divulgação/Divulgação)

Yunus: “Antes de reiniciarmos a economia, devemos ter em mente que tipo de economia queremos” (Divulgação/Divulgação)

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Da Redação

Publicado em 11 de maio de 2020 às 08h08.

Última atualização em 11 de maio de 2020 às 13h42.

Neste momento, o mundo todo precisa lidar com uma grande questão. E não se trata de como fazer a economia crescer novamente. Felizmente sabemos a resposta para isso. As experiências que já tivemos anteriormente nos ajudaram a desenvolver fórmulas para a revitalização da economia. A grande questão à qual me refiro e para a qual devemos achar uma resposta é: Vamos fazer o mundo regredir para onde estava antes do novo coronavírus chegar, ou vamos redesenhá-lo?

Não é preciso dizer que o mundo pré-corona não era bom para nós. Antes da pandemia se tornar notícia, estávamos literalmente contando os dias até que todo planeta se tornasse inadequado para a existência humana através de alguma catástrofe climática; ou desemprego maciço em decorrência da inteligência artificial; sem falar nas consequências depois que a concentração de riquezas atingisse um nível explosivo. Estávamos conscientizando uns ao outros que a década atual seria a década da última chance.

Então, devemos deixar que o mundo volte ao ponto em que estava? A escolha é inteiramente nossa. O coronavírus mudou repentinamente o curso da situação e abriu audaciosas possibilidades que nunca existiram antes. De repente, não estamos mais em uma tábula rasa. Podemos seguir a direção que quisermos. Antes de reiniciarmos a economia, devemos ter em mente que tipo de economia queremos. Primeiro e mais importante: economia é um meio para nos ajudar a alcançar os objetivos estabelecidos por nós. A economia não deve nos fazer sentir desamparados e não deve se comportar como uma armadilha mortal projetada para nos punir. É uma ferramenta criada por nós. Devemos ter isso em mente para que continuemos projetando-a e redesenhando-a até que isso permita que cheguemos à maior felicidade coletiva possível.

Se em algum momento sentirmos que a economia não está nos levando aonde queremos ir, saberemos imediatamente que existe algo errado com os mecanismos que estamos usando. Tudo o que precisamos fazer é consertá-los. Não podemos dar desculpas do tipo: “Não podemos alcançar nossos objetivos porque nossas ferramentas não nos permitem fazer isso”. Se a ideia é criar um mundo com zero emissão líquida de carbono, devemos construir ferramentas para isso. Se queremos um mundo com zero desemprego, fazemos o mesmo. Se queremos um mundo onde não haverá concentração de riqueza, fazemos o mesmo. É tudo sobre a construção das ferramentas certas. O poder está em nós, nada é impossível para os seres humanos.

A notícia mais reconfortante é que a crise do coronavírus nos oferece oportunidades quase ilimitadas para começar de novo. Podemos começar a projetar nosso hardware e nosso software em uma tela quase limpa.

A recuperação pós-coronavírus deve ser uma recuperação da consciência social

Uma simples decisão global unânime nos ajudará extraordinariamente: a instrução clara de que não queremos voltar para onde estávamos.

Os governos devem garantir aos cidadãos que os programas de recuperação que virão sejam diferentes de todos os criados anteriormente. Não deve ser, como de costume, uma medida de recuperação para restabelecer apenas os negócios. Deve ser uma recuperação focada nas pessoas e no planeta; e os negócios passariam a desempenhar um papel fundamental para que isso aconteça.

O ponto de partida para o programa de recuperação pós-corona deve colocar a consciência social e ambiental no centro das tomadas de decisões. Os governos devem garantir que nem um único dólar seja oferecido a ninguém, a menos que o governo tenha a certeza de que trará benefício social e ambiental máximo para a sociedade. Todas as ações de recuperação devem levar à criação de uma consciência econômica social e ambiental para o país, bem como para o mundo.

A hora é agora

Podemos começar por pacotes de resgate econômicos, conforme as recomendações que já conhecemos, mas que serão usados com essa consciência social que vai direcionar os planos e ações. Esses planos devem ser elaborados agora, no auge da crise. Quando a crise acabar, haverá uma enxurrada de velhas ideias e exemplos antigos para apressar as resoluções à sua própria maneira.

É provável que sejam apresentados modelos já comprovados para que as novas iniciativas sejam inviabilizadas. (Quando propusemos que os Jogos Olímpicos poderiam ser projetados como negócios sociais, alguns utilizaram os mesmos argumentos. Agora, os Jogos Olímpicos de Paris 2024 estão sendo projetados dessa forma.) Teremos que nos preparar antes de o tumulto começar. A hora é agora.

Negócio social

Neste artigo, ofereço um conjunto de políticas que eu conheço e me sinto confiante em relação a elas. Isso não tira o direito de muitas outras opções criativas e eficientes. Encorajo outras pessoas a apresentarem suas recomendações políticas, tendo sempre em mente que devem cumprir os requisitos de um programa de recuperação orientado para a consciência social e ambiental. Todos podemos trabalhar juntos para aproveitar a oportunidade que temos.

No Novo Programa de Recuperação (NPR) que proponho, atribuo o papel central a um novo formato de negócio chamado negócio social. É um negócio criado exclusivamente para resolver os problemas das pessoas, sem obtenção de nenhum lucro pessoal pelos investidores, exceto para recuperar o investimento original. Após o retorno do investimento original, todos os lucros subsequentes são devolvidos ao negócio para ampliar seu impacto.

Os governos terão muitas oportunidades para incentivar, priorizar, abrir espaço para as empresas sociais assumirem importantes responsabilidades de recuperação da economia. Ao mesmo tempo, devem continuar com as iniciativas que visem cuidar dos desamparados e desempregados por meio de programas tradicionais de assistência social, reviver programas de assistência médica, reviver todos os serviços essenciais e apoiar todos os tipos de empresas que ainda não atuam como negócio social.

Os governos também podem criar fundos de Venture Capital para negócios sociais, incentivar o setor privado, fundações, instituições financeiras, fundos de investimento, incentivar as empresas tradicionais a se tornarem empresas sociais ou terem como parceiros comerciais empresas de impacto social. Corporações poderiam ser incentivadas a terem seus próprios negócios sociais ou criarem joint venture com parceiros de impacto social.

Sob o NPR, os governos podem financiar negócios sociais, adquirir empresas e estabelecer parcerias com pequenos negócios para transformá-los em negócios sociais. O banco central pode dar prioridade às empresas com impacto social para receberem financiamento de instituições financeiras para que sejam feitos investimentos no mercado de ações, para trazer uma forte presença social no mercado de ações.

Existem tantas oportunidades por toda parte; os governos devem envolver o maior número possível de empresários sociais.

Quem são os investidores em negócios sociais? Onde os encontramos?

Eles estão por todas parte. Não os vemos porque nossos compêndios econômicos não reconhecem sua existência. Como resultado, nossos olhos são treinados para não vê-los. Somente recentemente os cursos de economia estão incluindo algumas discussões sobre tópicos como negócios sociais, empreendedorismo social, investimento de impacto, organizações sem fins lucrativos etc., como questões secundárias inspiradas pela popularidade global do Grameen Bank e do microcrédito.

Enquanto a economia continuar sendo uma ciência para a maximização do lucro, não podemos confiar nela para projetar um programa de recuperação baseado na consciência social e ambiental. Mas, não podemos simplesmente “desligá-la” durante a noite. Enquanto continua ativa, os governos devem abrir espaço para as empresas sociais estabelecerem sua credibilidade e eficácia. O sucesso dos negócios sociais será visível quando observarmos que os ‘maximizadores de lucro pessoal’ não apenas coexistem com empreendedores de ‘lucro zero pessoal’, em amizade e colaboração, mas cada vez mais empreendedores e investidores orientados para o lucro pessoal estão criando negócios sociais próprios ou parcerias com empresas sociais. Esse será o começo de uma economia impulsionada pela consciência socioambiental.

Assim que as autoridades começarem a reconhecer os empreendedores e investidores em negócios sociais, estes se apresentarão com entusiasmo para desempenhar o importante papel social exigido no momento. Os empreendedores sociais não são membros de uma pequena comunidade. Este é um ecossistema global significativo, que inclui empresas multinacionais gigantes, grandes fundos de negócios sociais, muitos CEOs talentosos, órgãos corporativos, fundações e trusts com muitos anos de experiência em financiamento e administração de negócios sociais locais e globais.

Quando o conceito e as experiências das empresas sociais começarem a receber a atenção do governo, muitos criadores de lucros pessoais terão prazer em explorar seu talento para se tornarem empreendedores de negócios sociais bem-sucedidos e desempenhar papéis sociais valiosos em tempos de crises sociais e econômicas como crise climática, crise de desemprego, crise de concentração de riqueza etc.

Todos nascem como empreendedores, não como candidatos a emprego

O Novo Programa de Recuperação deve quebrar a divisão tradicional de trabalho entre os cidadãos e o governo. É dado como certo que o papel dos cidadãos é cuidar de suas famílias e pagar impostos; é responsabilidade do governo (e em uma extensão limitada do setor sem fins lucrativos) cuidar de todos os problemas coletivos, como clima, emprego, saúde, educação, água, etc. O NPR deve derrubar esse muro de separação e incentivar todos os cidadãos a apresentarem seus talentos como solucionadores de problemas, criando negócios sociais. Sua força não está no tamanho de suas iniciativas, mas em seu número. Cada pequena iniciativa multiplicada por um grande número acaba sendo uma ação nacional significativa.

Um problema que os empreendedores de negócios sociais podem resolver imediatamente será o do desemprego criado pelo colapso da economia. Os investidores em negócios sociais podem se ocupar em criar negócios sociais que gerem empregos. Eles também podem transformar os desempregados em empreendedores, e demonstrar que os seres humanos nascem como empreendedores, não como candidatos a emprego. Os negócios sociais também podem se envolver na criação de um sistema de saúde robusto em colaboração com o sistema do governo.

Um investidor em negócios sociais não precisa necessariamente ser um indivíduo. Podem ser instituições, como fundos de investimento, fundações, trusts e empresas de gestão de negócios sociais, por exemplo. Muitas dessas instituições sabem muito bem como trabalhar de maneira amigável com os tradicionais proprietários de empresas.

Fora o desespero e a urgência da situação pós-corona, a decisão acurada de um governo pode criar uma onda de atividades nunca antes conhecidas. Este será o teste de liderança para mostrar como um mundo pode se inspirar a ressurgir de maneiras completamente desconhecidas provenientes de jovens, de pessoas de meia-idade e idosos, homens e mulheres.

Não terá lugar para se esconder

Se não conseguirmos realizar um programa de recuperação pós-corona voltado para a consciência social e ambiental, estaremos caminhando para uma catástrofe muito pior do que a que o coronavírus trouxe. Podemos nos esconder em nossas casas contra a pandemia. Mas, se não conseguirmos resolver as questões que estão levando à deterioração global, será impossível nos abrigarmos das consequências da mãe natureza e das massas enfurecidas em todo o mundo.

*Muhammad Yunus é um economista bengali, fundador do Grameen Bank, banco focado em microcrédito para os pobres, e de outras 50 empresas em Bangladesh. Também é autor do livro  “Banker to the poor” (em português, “O banqueiro dos pobres”). Recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2006.

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