Maria Nancy trabalha em sua pequena loja de conveniência no Recife (Reuters/Bruno Domingos)
Da Redação
Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h10.
Recife - O carrinho amarelo parece só mais um pedaço de sucata em meio à bagunça dos barracos, mas todos os dias ele enche Maria Jacinta da Silva de orgulho.
Comprada com um empréstimo de 300 reais, dos quais sobrou o suficiente para comprar algumas garrafas de cerveja e cachaça para revender aos vizinhos, essa caixa sobre rodas gerou a renda que estabilizou a caótica vida dessa mãe de família de 53 anos, moradora de uma favela na periferia do Recife.
Um ano depois, o adorado carrinho foi aposentado para dar lugar a um quiosque permanente, onde Maria Jacinta vende churrasco e bebidas, e que foi bancado por outro empréstimo do programa de microcrédito do estatal Banco do Nordeste.
"Minha casa era uma bagunça; meus filhos eram uma bagunça", disse ela. "Agora sou uma pessoa feliz. Posso dormir à noite sabendo o que vou fazer no dia seguinte."
O carrinho é parte da revolução financeira que deu a centenas de milhares de famílias pobres acesso a crédito pela primeira vez, e que foi determinante para transformar o Nordeste, tradicionalmente associado à pobreza, na região que mais cresce no Brasil.
O programa surgiu há 12 anos, com uma ideia simples, mas radical no Brasil, onde a enorme economia informal sempre esteve privada do acesso ao crédito.
O banco avalia as possíveis necessidades financeiras do cliente e concede empréstimos de 100 a 15 mil reais, com juros baixos. Num país famoso por sua burocracia, os clientes só precisam mostrar RG, CPF, endereço e uma prova da sua atividade econômica, além de participar de um pequeno grupo de codevedores.
O negócio pode ser um mercadinho, um pequeno salão de beleza, ou simplesmente um carrinho para vender bebidas aos vizinhos. Apesar do status humilde dos seus clientes, o programa tem uma taxa de inadimplência de apenas 1 por cento.
O programa já tem uma carteira de 560 mil clientes, e espera chegar a 1 milhão até o fim de 2011, com um total de 1 bilhão de reais em empréstimos. Contrariando o fluxo habitual do capital no Brasil, o Banco do Nordeste está ampliando seu programa para o próspero Sudeste --recentemente, ele abriu uma agência na favela carioca da Rocinha.
O microcrédito cresce tanto "porque conseguimos alcançar a parcela mais necessitada da população, que historicamente não tinha acesso ao crédito", disse o diretor de microfinanças do governo de Pernambuco, Manuel Gusmão. "É um programa que é totalmente autossustentável, sem uso dos recursos governamentais."
Essas taxas de crescimento estão atraindo também instituições privadas, como o Santander, que registrou em 2009 uma alta de 28 por cento na sua carteira de microcrédito, chegando a 220 milhões de reais.
Devedores confiáveis
O Nordeste foi o maior beneficiário do programa Bolsa Família, do governo federal, que está vinculado a contrapartidas como escolarização dos filhos, e é responsável por tirar milhões de pessoas da pobreza, mas que críticos dizem perpetuar a dependência econômica das famílias pobres.
O programa alcança a mesma classe econômica --cerca de 51 por cento dos seus clientes também recebem o Bolsa Família--, mas dá ênfase inteiramente na autossuficiência.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva neste mês elogiou especificamente os programas de microcrédito do Banco do Nordeste. Além do Crediamigo, há um outro que já concedeu 1,2 bilhão de reais a quase 900 mil famílias rurais.
"Às vezes você empresta 1 bilhão de reais a um empresário e ele só gera 200 ou 300 empregos. Isso mostra que emprestar mais dinheiro a empresas menores é ótimo para o país", disse Lula.
Um estudo da Fundação Getúlio Vargas do Rio mostrou que 55 por cento dos clientes do Crediamigo entre as classes mais baixas conseguiram ascender a outra classe.
Numa rua movimentada da zona sul do Recife, onde cavalos e carroças ainda disputam espaço com carros, Maria Nancy de Santana, de 49 anos, construiu nos últimos 12 anos a mercearia Bela Vista, com ajuda do Crediamigo. Em maio, o estabelecimento recebeu uma demão de tinta e um novo toldo, graças a um novo empréstimo que ela pagará em 36 meses.
"Minha loja antiga era pequena, e eu não teria como ter crescido sem os empréstimos", disse ela, acrescentando que ninguém no seu grupo deixou de pagar. Dois terços dos clientes do Crediamigo são mulheres, que costumam ser mais cuidadosas com as finanças familiares.
Apesar de seus clientes serem modestos e eventualmente parecem estar em situação precária, o programa é lucrativo, graças à inadimplência baixa, o que Gusmão atribui em parte à pressão social e à ajuda mútua dentro dos grupos para manter as prestações em dia.
Para Maria Jacinta, a dona do quiosque de bebidas, uma fé quase religiosa no programa de microcrédito do banco sugere que dificilmente ela entrará para o pequeno grupo dos caloteiros.
"Minha vida mudou e vai continuar mudando. O banco não foi só amigo de alguém, foi meu, foi a minha luz."