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Da Redação
Publicado em 18 de março de 2010 às 10h11.
A indústria automobilística está com tudo para bater mais um recorde de produção neste ano -- as estimativas indicam que até dezembro as montadoras vão colocar no mercado entre 3 milhões e 3,5 milhões de unidades. Os investimentos estrangeiros no Brasil tiveram novo recorde em 2007, com 35 bilhões de dólares. Foi o dobro do total obtido em 2006 e também o dobro do que a Índia, a tão falada Índia, recebeu no mesmo período. Este ano também começa forte, e variado, para as apostas do capital externo no Brasil. Só a Anglo American, num único negócio, investiu 5,5 bilhões de dólares na compra de minas; a Symetrix, empresa americana no setor de chips, acaba de anunciar investimentos de 1 bilhão; a Tyson, da área de alimentos e também americana, prepara-se para adquirir frigoríficos em São Paulo. A construção civil, um dos termômetros mais confiáveis para medir a temperatura da economia, vem mostrando taxas de crescimento com teor asiático: após ter aumentado 8% em 2007, deve passar dos 10% em 2008. O emprego industrial, como um todo, teve no ano passado o seu melhor desempenho desde 2001.
Os dois maiores bancos privados do Brasil, o Bradesco e o Itaú, acabam de divulgar seus balanços de 2007. Mais uma vez, tiveram lucros inéditos; no caso do Itaú, o aumento do lucro em relação a 2006 chegou perto dos 100%. A inflação, que acabou o ano com cara de alta, recuou em janeiro -- embora superior às previsões, ficou abaixo da marca de dezembro. É como se estivesse ocorrendo uma inversão. Historicamente, a inflação no Brasil sempre resistiu a cair; hoje resiste a subir. O dólar, com todas as incertezas trazidas pelo nervosismo nos mercados financeiros internacionais, continua parado diante do real. A agricultura, mais uma vez, promete uma performance notável para 2008: os preços da soja e do milho, dois itens essenciais na produção do país, estão em níveis recorde, e a demanda mundial por eles continua muito forte. A economia privada do Brasil, em seu conjunto, está hoje mais vigorosa, mais dinâmica e mais próspera do que estava cinco anos atrás, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o governo. Em suma: o capitalismo brasileiro, de lá para cá, só se fortaleceu, e tem, atualmente, um boletim de saúde melhor do que jamais teve antes.
Não deveria estar acontecendo o contrário disso tudo? Talvez devesse, mas não está. Os economistas e outros especialistas que se dedicam a explicar essas coisas têm diversas hipóteses a respeito, nenhuma delas claramente satisfatória ou completa; têm, também, vários anos pela frente para chegar a uma eventual conclusão. Para o momento presente, em todo caso, o que se pode dizer com razoável segurança é que a economia brasileira, já há algum tempo, tem se mostrado mais forte que o governo -- sua capacidade para fazer o Brasil avançar vem sendo maior, na prática, que a capacidade do governo em fazer com que fique parado ou ande para trás. O dia-a-dia das autoridades públicas, tanto em sua conduta como em sua eficácia, é em geral um desastre contínuo; sempre que se pensa que o grosso já passou, aparece uma novidade para mostrar que não, não passou. A vez, agora, é dos cartões de crédito. Quando saírem de cena, haverá alguma outra coisa para manter o espetáculo em cartaz. Todo esse desempenho de baixa qualidade, obviamente, faz o país perder um tempo enorme, atrasa o seu progresso e diminui oportunidades, mas já não o suficiente para impedir que avance. É como um carro em que estivessem acionados, ao mesmo tempo, o acelerador e o freio; como o acelerador tem tido mais potência que o freio, o carro vai para a frente.
A indústria automobilística não vai produzir mais de 3 milhões de veículos neste ano para dá-los de graça. Os investidores estrangeiros que puseram 35 bilhões de dólares no Brasil em 2007 não fizeram isso para dar uma força ao presidente Lula. Nem eles, nem as empresas nacionais, parecem muito impressionados com a lambança dos cartões do governo, a paralisia das reformas ou o atraso da legislação trabalhista. Estão aí, todos, porque a economia brasileira está viva, seja lá o que o governo faça ou deixe de fazer. Entender isso, no momento, é recomendação básica para quem vive de realidades.
Faltou o CPF
Bem-vindo, respeitável público, ao grande espetáculo de prestidigitação atualmente em cartaz no palco da União Européia, estrelado pelos mais renomados ilusionistas de sua equipe de fiscais do bem, da virtude e da sustentabilidade mundial. Aos olhos de toda a platéia, em mais uma notável exibição de mágica, eles colocam na cartola um coelho feio e mal-afamado, que se chama "protecionismo", e tiram dela outro, bonitão e simpático, chamado "defesa da saúde pública". É, realmente, um fenômeno. Os mágicos de Bruxelas decidiram que a importação de carne do Brasil, há anos um crescente sucesso no mercado europeu tanto por sua qualidade como por seu preço, deveria ser suspensa. Não porque está ferindo os interesses dos produtores locais -- quem poderia pensar numa coisa dessas? --, mas porque seu consumo apresentaria riscos inadmissíveis para a saúde humana. O público, em peso, acredita.
O Brasil produz carne boa, média e ruim, numa escala que vai dos cortes servidos nos melhores restaurantes ao churrasquinho vendido na porta dos estádios de futebol. Mas não é a carne brasileira ruim que os comissários da UE querem impedir de entrar na Europa; o que eles querem impedir é a entrada da carne boa. Essa, sim, é um perigo. No ano passado, as exportações brasileiras de carne para a Europa chegaram perto das 550 000 toneladas, no valor de 1,4 bilhão de dólares. É um sucesso que está acima de discussão. Ainda outro dia, no ano 2000, o total dessas exportações -- e para o mundo inteiro -- era de 340 000 toneladas, e seu valor não chegava a 800 milhões de dólares. Em 2007, a soma total passou de 1,6 milhão de toneladas, ou quase cinco vezes mais, e o valor foi bater nos 4,4 bilhões de dólares. É óbvio que a indústria de carnes do Brasil não chegou a esses números vendendo osso com sebo ou envenenando os consumidores. É óbvio, também, que isso incomoda. Se em sete anos, apenas, a carne brasileira foi capaz de avançar tanto, onde estaremos daqui a mais sete?
O número de mágica dos burocratas da União Européia contou, mais uma vez, com a eficaz assistência das autoridades brasileiras. Os europeus sabem o que fazem. Descobriram, já há muito tempo, que sempre podem confiar na soma de incompetência, ignorância e preguiça em vigor na máquina pública do Brasil para atingir seus objetivos. Combinam regras que, por experiência, sabem perfeitamente que as autoridades brasileiras não vão cumprir; a partir daí é esperar o abraço. No caso, a UE quer que o Brasil garanta a origem saudável de cada cabeça abatida, uma exigência lógica e cujo atendimento é inteiramente viável. Quer, também, que toda a carne exportada para a Europa venha de um total de 300 fazendas, nem uma a mais -- aparentemente, julga que essa é a capacidade máxima do Brasil em termos de oferta de qualidade ou, em todo caso, o máximo de propriedades que tem condições de fiscalizar. Aconteceu o previsto. Vencido o prazo para atender essas condições, enviou-se aos europeus uma lista com um número quase dez vezes maior de fazendas, em relação às quais ninguém põe a mão no fogo. Uma delas não tinha sequer o CPF dos donos -- ou seja, a rigor não se sabe de quem a fazenda é. Em resposta, veio a sanção. O próprio ministro da Agricultura, por sinal, disse alguns dias depois que o Brasil tinha exportado carne fora das normas de controle.
Eventualmente, com o tempo, o veto às exportações de carne será levantado e o Brasil voltará a vender no mercado europeu. Enquanto isso não acontece, o que fica é uma versão oposta aos fatos. A produção brasileira de carne, que nos últimos anos viveu um espetacular avanço tecnológico, ganha a imagem de primitiva, ordinária e perigosa para a saúde. O protecionismo da UE vira um gesto de defesa do consumidor. Quanto ao governo, é a história de sempre. Na hora de fazer discurso sobre relações externas, sobram apelos à "mudança de eixos", à "multipolaridade" e a outras idéias destinadas a mudar o mundo. Na hora de defender interesses concretos do país, fica faltando o CPF.