Economia

Livro retrata Lênin entre a admiração e o desprezo

Livro do jornalista Victor Sebestyen traça a história e faz uma crítica áspera do líder revolucionário russo

PARADA MILITAR RUSSA: exaltação ao passado faz país rediscutir imagem de líderes históricos como Lênin e Stálin  / Tatyana Maleyeva/ Reuters

PARADA MILITAR RUSSA: exaltação ao passado faz país rediscutir imagem de líderes históricos como Lênin e Stálin / Tatyana Maleyeva/ Reuters

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Da Redação

Publicado em 3 de fevereiro de 2018 às 07h46.

Última atualização em 3 de fevereiro de 2018 às 10h12.

Lenin: The Man, the Dictator, and the Master of Terror (“Lênin: o Homem, o Ditador, o Mestre do Terror”, numa tradução livre)

Autor: Victor Sebestyen

Editora Pantheon

592 páginas

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No ano passado, a Revolução Russa completou 100 anos e deu motivos para eventos, encontros, notícias e reflexões em geral sobre o fato que marcou profundamente o século 20. Foi momento em que se fez um balanço das qualidades e defeitos da revolução e, também, dos personagens que protagonizaram os eventos ocorridos em 25 de outubro de 1917.

O mais proeminente e importante protagonista foi sem dúvida Vladimir Ilyich Ulyanov, mais conhecido como Lênin, o líder do movimento que o levou a governar a Rússia até a sua morte em 1924.

O saldo, nessas reflexões motivadas pelo centenário, parece não ter sido muito bom para o revolucionário. Hoje, cem anos depois, o personagem histórico de Lênin sofre um grande volume de críticas. Sua aura de herói, de condutor da maior revolução do planeta e pleno de ideologia humanitária passa a ser cada vez mais a de um vilão capaz de cometer atrocidades em nome de sua sede de poder e de construir um sistema atroz de governo, repressor e sanguinário, que se manteve por quase trinta anos nas mãos de outro emérito ditador, Josef Stálin.

Essa é a conclusão que se tem da leitura do livro Lenin: The Man, the Dictator, and the Master of Terror (“Lênin: o Homem, o Ditador, o Mestre do Terror”, numa tradução livre), de Victor Sebestyen, lançado em novembro do ano passado, mas ainda não disponível no Brasil. O livro, construído numa linguagem próxima à de um romance, é interessante e estimulante. Mas é francamente mal-humorado em relação a seu personagem principal.

Victor Sebestyen é um jornalista político, colunista do New York Times e da Newsweek, especializado em escrever sobre o mundo socialista pelo qual tem mais críticas do que elogios. Nesse livro, Sebestyen praticamente destrói os poucos argumentos favoráveis que ainda permanecem em relação a Lênin.

“Era um populista que mentia descadamente, prometendo soluções muito simples para problemas complexos. Hoje, seria um fenômeno da pós-verdade. Vendeu sua mensagem de maneira curta e simples: paz, terra e pão. Isso é bem menos do que 140 caracteres. Ele teria sido um sucesso no Twiter”, disse Sebestyen em entrevista durante o lançamento do livro.

A cultura de Lênin sobrevive na Rússia. O presidente Vladimir Putin nâo chegou a ter intenção de retirar os monumentos memoriais que homenageiam o revolucionário (até porque o avô de Putin, Spiridon, foi cozinheiro de Lênin após a revolução), mas hoje ele é visto pela população mais jovem apenas como uma figura notável, apesar dos “estragos que causou”.

E surpreendentemente, Stálin, cujo despotismo é insuperável, vem ganhando popularidade entre os russos, enquanto Lênin perde. Em março de 2017, o Levada, instituto russo de opinião pública, apurou que Lênin foi considerado o líder da revolução por 26% dos entrevistados — em 1990 era 67%. Enquanto Stálin subiu de 8% para 24%.

Ainda que esteja ocorrendo uma revelação da verdadeira identidade de Lênin, não dá para negar o seu papel fundamental no mais importante evento do século 20, segundo Sebestyen. “Muito do século 20 foi vivido como resposta ao que aconteceu em 1917. Hitler não aconteceria, assim como a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria. O legado sobrevive”, escreve ele.

Convém lembrar que a Rússia no começo do século 20 era um país em frangalhos, com uma população faminta e um czar incompetente, desonesto e odiado. Nicolau II era, assumidamente, incapaz de governar um país e durante o seu reinado transformou a Rússia, então potência mundial, num desastre econômico e militar. Era chamado de “Sanguinário” pelos métodos com os quais abafou algumas das revoltas que enfrentou em seu governo. E

m 1914, com o começo da Primeira Guerra Mundial, a situação piorou ainda mais — a fome assolou o país devido a uma grave crise de abastecimento alimentar, enquanto 1,2 milhão de soldados morriam no front. A situação desencadeou uma série de greves e revoltas populares estabelecendo uma tensão que, inevitavelmente, desembocaria na revolução. Primeiro a de março de 1917, quando Nicolau foi deposto, e depois a de outubro, em que o fraco governo provisório foi tomado por Lênin e seus bolcheviques.

Assim Lênin encontrou uma condição exemplar para promover a sua revolução. Era um intelectual aristocrata, movido por uma imensa energia, uma sede de poder inigualável e uma ideologia nobre, de justiça social numa Rússia devastada pela iniquidade do governo. Criou sua própria versão de marxismo, o “leninismo”, com os quais conquistou não apenas o poder mas também a consolidação de uma potência mundial que dividiu o planeta. “Ele queria duas coisas: o poder e mudar o mundo e seria capaz de fazer tudo para realizar seus desejos”, escreve Sebestyen.

Para o autor, Lênin era um homem de poucas palavras, frio e calculista, que sofria de insônia e dores de cabeça lancinantes, e tinha surtos intensos de ira, verdadeiras explosões temperamentais que o tornavam irascível. Não era um apreciador da violência como Hitler ou Stálin, mas também não hesitava em dar ordens cruéis, ainda que não procurasse saber detalhes da execução.

“Foi um estranho líder popular, cuja única qualidade eram suas virtudes intelectuais. No mais, não tinha humor, não tinha carisma e nem mesmo idiossincrasias interessantes. Mas tinha o poder de explicar ideias profundas de maneira simples, combinando astúcia e grande audácia intelectual”, define Sebestyen.

Mas naquela circunstância era inevitável não admirá-lo. Foi o que aconteceu com o jornalista norte-americano John Reed, que cobriu os momentos finais da revolução de outubro, acompanhando Lênin e Trotsky nas assembleias tomadas por grande exaltação popular. O seu livro Dez Dias Que Abalaram o Mundo é um respeitado clássico da literatura e do jornalismo, ainda que reconhecidamente temperado por ideias românticas.

Uma opinião menos parcial sobre Lênin é a do intelectual inglês Bertrand Russel que visitou o líder russo logo após a revolução e escreveu o livro Lênin, Trotsky e Gorky. Russel transitou por todas as ideologias, crenças e ideias e nunca se aprofundou em nenhuma. Foi liberal, pacifista, socialista, além de ser matemático e filósofo — e acabou ganhando o Prêmio Nobel de Literatura em 1950.

No livro, ele escreve: “Encontrei um sujeito amigável, muito simples, completamente destituído de um sentimento de importância. Ditatorial, mas calmo, destemido, convencido de suas teorias e extremamente bem preparado”, escreve Russel. Mas logo adiante revela o seu desapontamento: “Fui à Rússia como um comunista e voltei de lá com as minhas dúvidas milhares de vezes multiplicadas”.

Sebestyen é convincente no seu livro ao expor argumentos, fatos e detalhes muito bem pesquisados para mostrar a face pouco nobre de Lênin e sua revolução, apesar de não dar muito espaço para aqueles que defendem o líder russo, o guru das esquerdas de todo o mundo.

Também passa ao largo de algumas manifestações culturais importantes que surgiram após a revolução. Por exemplo, a indiscutível qualidade cinematográfica da obra de Serguei Einsenstein, cujos filmes, ainda que subordinados às ideias soviéticas, são referências estéticas até hoje.

Ou a grandiosidade literária do poeta Maiakóvski — revolucionário nas ideias e na forma. Ou ainda os escritores Máximo Gorki, grande amigo e companheiro de Lênin, e Anton Tchekhov. Na verdade, os anos que se seguiram à revolução fizeram florescer os maiores tesouros da cultura russa, ainda que vozes da oposição, como o escritor Vladimir Nabokov, autor de Lolita, e de família de aristocratas que fugiu da revolução, e do famoso dissidente Alexander Soljenítsin, autor de Arquipélago Gulag.

E o próprio Lênin é um autor respeitado por suas qualidades conceituais e estratégicas independentemente de seus ideais leninistas — principalmente pela obra O Estado e a Revolução, de 1917.

Inegável, também, é a maneira com que valorizava a atuação das mulheres tanto antes quanto depois da revolução. Lênin, na verdade, não tinha amigos homens — rompeu com todos os que estavam no seu caminho, normalmente por motivos políticos — mas esteve rodeado de mulheres a vida toda.

Na infância e adolescência, com sua mãe e irmãs e, depois, casado com Nadia — com quem estabeleceu uma relação muito solidária, inclusive quando passou a se relacionar com a amante e revolucionária Inessa Armand, estabelecendo, segundo Sebestyen, uma “menage a trois com o consentimento explícito de todas as partes”.

É possível encontrar argumentos que defendam a revolução e seu líder, ainda que cada vez em menor número. Mas de dois fatos Lênin não escapa — que mostram o quanto ele foi capaz de tudo para conquistar e se manter o poder.

Um deles foi quando ocorre a primeira revolução de 1917. Lênin estava em Zurique, na Suíça, exilado há dez anos e negociou com os alemães que, em guerra contra a Rússia, estavam interessados em promover a revolução soviética para desestabilizar o inimigo. Foi num trem alemão que ele chegou à Estação Finlândia, em São Peterburgo, aclamado pelo povo para liderar a revolução de outubro — e segundo as pesquisas de Sebestyen, ele teria recebido uma grande quantia em dinheiro para financiar os seus planos, o que é visto hoje como uma grande traição.

O outro fato é o assassinato sangrento do czar russo, em 1918, pelas forças revolucionárias. Foi uma execução grotesca, sem julgamento, sem público e sem caráter oficial. Exilado nos Urais, a família imperial foi conduzida a um porão da casa em que viviam e lá todos — Nicolau II, a mulher, o filho, suas quatro filhas (inclusive uma ainda de colo), o médico da família, duas empregadas e o cozinheiro — foram executados com tiros e facadas por um bando de soldados bêbados que durante 20 minutos promoveram um banho de sangue desnecessário. Estavam cumprindo ordens de Lênin.

Um líder excepcional, cujas ideias e feitos influenciaram o destino do mundo durante o século 20, e que se tornou um símbolo intocável da transformação social, caminha hoje para uma obscuridade impiedosa. Mas o próprio Sebestyen, que não faz concessões em suas críticas, lança uma fagulha desconfortável em suas reflexões: “O mundo ficou diferente após a crise financeira de 2008. Ocorreu uma perda de confiança em muitos dos processos democráticos do Ocidente. Para milhões de pessoas, as certezas que duas gerações adotaram como fundamentos básicos, ficaram menos certas. Lênin provavelmente enxergaria o mundo de 2017 como sendo a cúspide de um momento revolucionário”.

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