Economia

Ex-ministros em carta: Descuido com clima pode sair mais caro que pandemia

Ex-ministros da Fazenda e um ex-chefe do BC pedem que medidas para retomada levem em conta aspectos ambientais e sociais para evitar apagão no investimento

Amazônia: área de floresta é queimada no Pará, em agosto de 2019, dias após Bolsonaro decretar a proibição das queimadas intencionais (Gustavo Basso/Bloomberg)

Amazônia: área de floresta é queimada no Pará, em agosto de 2019, dias após Bolsonaro decretar a proibição das queimadas intencionais (Gustavo Basso/Bloomberg)

Ligia Tuon

Ligia Tuon

Publicado em 14 de julho de 2020 às 10h00.

Última atualização em 14 de julho de 2020 às 12h59.

O descuido com o meio ambiente pode sair mais caro do que a pandemia de covid-19, alertam ex-ministros da Fazenda e um ex-presidente do Banco Central em carta divulgada nesta terça-feira, 14.

Eles fazem um apelo para que as diretrizes para retomada econômica levem em consideração aspectos ambientais e sociais, sob a pena de um possível apagão dos investimentos estrangeiros no Brasil.

Entre os signatários estão Armínio Fraga, Eduardo Guardia, Henrique Meirelles, Ilan Goldfajn, Joaquim Levy, Maílson da Nóbrega, Persio Arida e Rubens Ricupero:

"Convergirmos em torno de uma agenda que nos possibilite retomar as atividades econômicas e, simultaneamente, construir uma economia mais resiliente ao lidar com os riscos climáticos e suas implicações para o Brasil. Dependendo do cenário climático que iremos encontrar, os custos de descuidar de eventos climáticos com repercussões sistêmicas poderão ser bem maiores do que os da atual pandemia", escreveram.

Diante desse cenário, as autoridades listaram quatro pontos essenciais para que o país insira o meio ambiente na sua política econômica: alcançar a economia de baixo carbono, zerar o desmatamento na Amazônia e no Cerrado, aumentar a resiliência climática, Impulsionar a pesquisa e o desenvolvimento de novas tecnologias (veja a carta na íntegra no fim do texto).

O governo tem um papel essencial em alinhar incentivos e expectativas, criando um ambiente favorável à ação sustentável do setor privado e do mercado

escrevem 17 autoridades, entre ex-ministros da Fazenda e ex-chefe do BC

Os potenciais efeitos calamitosos que a mudança do clima pode causar à estabilidade financeira, ressaltam, já têm levado bancos centrais e mercados financeiros a internalizar os riscos climáticos em suas análises macroeconômicas. A tendência está cada vez mais enraigada no funcionamento dos mercados de capitais.

Pressão internacional

O apelo se soma ao de empresários e investidores que pediram recentemente ações para barrar o desmatamento na Amazônia.

Há duas semanas, 29 instituições financeiras que gerenciam mais de 3,7 trilhões de dólares em ativos enviaram uma carta a nove embaixadas brasileiras dizendo que o Brasil precisa frear as queimadas, sob risco de alimentar “uma incerteza generalizada sobre as condições para investir ou fornecer serviços financeiros ao Brasil.”

“Nós precisamos desse capital estrangeiro e ele tem ido embora”, afirma Gustavo Pimentel, diretor da Sitawi, especializada em investimentos de impacto. “No momento em que o governo fala sobre um plano de investimentos em infraestrutura em parceria com a iniciativa privada, não pode enviar mensagens trocadas.”

Em reação aos apelos, nesta segunda-feira, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse durante evento da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que o Brasil deve avançar em iniciativas para preservar o meio ambiente, mas voltou a criticar "falsas narrativas":

"Se há excessos e há erros, corrigiremos. Não aceitaremos o desmatamento ilegal, a exploração ilegal de recursos”. Até então, Guedes vinha evitando admitir que há melhorias a serem feitas na área ambiental, culpando críticas internas e interesses protecionistas.

Em junho, o desmatamento na Amazônia bateu recorde, segundo números do sistema Deter do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Sensação de Déjà vu

Desde o seu início, o governo Bolsonaro recebe críticas da comunidade internacional pela forma que trata a questão do meio ambiente. Outro dado que depõe contra o país lá fora é relacionado a saneamento básico, já que metade dos brasileiros não tem água potável e esgoto em casa.

Além de afastar investidores, o cenário aumenta o risco de represálias de países importadores, diz o diplomata Marcílio Moreira, ex-ministro da Fazenda durante o governo Collor, a Exame:

"De modo que não basta mudar a narrativa, precisa mudar a maneira desleixada como esse tema é transmitido, tanto em termos de desmatamento como de tratamento de esgoto", diz.

No início dos anos 90, num momento em que um dos grandes ativos do Brasil era sua recente democratização, Moreira ajudou a convencer a comunidade internacional de que o país seria a melhor opção para sediar a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, ainda em gestação pelas Nações Unidas.

O Brasil foi escolhido e recebeu os principais líderes globais no que ficou conhecido como Rio-92. Era a primeira vez que meio ambiente e desenvolvimento eram discutidos juntos pelas autoridades locais.

"Até então, esses dois assuntos eram um pouco contraditórios na prática, porque para fazer o desenvolvimento acontecer, era preciso desmatar, pensava-se. Um exemplo é a zona franca de Manaus, cujo entorno passou por um processo de degradação", diz Moreira.

O Rio-92 só foi possível, segundo ele, depois de um trabalho de anos de convencimento do qual ele passara a participar em 1986, como embaixador nos Estados Unidos:

"Quando cheguei em Washington, éramos considerados caloteiros, porque não pagamos a dívida externa, genocidas, pois matávamos índios, incendiários, por queimar florestas e ainda por cima machistas, porque, na década de 80 houve vários casos de homens que mataram suas companheiras (o que hoje é chamado de feminicídio), eram julgados e absolvidos com o argumento de que haviam usado defesa legítima da honra", conta.

Não era fácil mudar essa imagem, porque, nessa época os embaixadores ainda tinham de respeitar regras criadas pelos militares durante a ditadura, como a proibição de falar sobre meio ambiente ou direitos humanos com ONGs e outras entidades, pois o assunto era considerado de soberania nacional: "Só podíamos falar da dívida externa", diz.

Alguns anos antes, em 1972, durante a Conferência de Estocolmo - a primeira grande reunião de chefes de estado organizada pela ONU para tratar da degradação do meio ambiente -, o Brasil foi bastante mal falado. Em pleno período que ficou conhecido como "milagre econômico", o governo militar da época fez vários anúncios com a imagem de chaminés em torno de fábricas em meio à rica vegetação amazônica e a frase: "mandem suas chaminés para nós", lembra o diplomata:

"Pegou muito mal. E foi necessária uma verdadeira conversão de uma crença que os chefes de governo tinham na época sobre o assunto para que a preservação do meio ambiente e dos índios começasse a ser entendida como importante nos governos Collor e Sarney".

Já como ministro, Moreira conta que levou ao então presidente Sarney o exemplo recente da Colômbia, que havia conseguido, após o desenvolvimento de um programa, substituir sua imagem no mundo de um país que se beneficiava da venda de drogas, pela imagem de vítima das gangues donas do tráfico.

"Queríamos nos transformar diante da comunidade internacional de grandes agressores do ambiente em grandes vítimas de grupos brasileiros e estrangeiros que queriam explorar a natureza para fazer mineração e uma série de outras atividades".

O diplomata conta que soube da iniciativa da carta dos ex-ministros há uns dois ou três meses, "exatamente nesse momento em que parece que precisamos convencer novamente os líderes da importância de olhar para o meio ambiente". Nos resta esperar que, desta vez, o convencimento funcione e que não dure só 30 anos.

Veja carta completa na íntegra:

Uma convergência necessária: por uma economia de baixo carbono

14 de julho de 2020

A atual pandemia da COVID-19 evidenciou a importância de tornar economias globalmente  interligadas mais resilientes a choques com impacto sistêmico. Desde a Segunda Guerra Mundial, o mundo não vivia uma crise tão profunda, seja pela quantidade de vidas perdidas, seja pelos seus catastróficos efeitos sociais e econômicos. Esse aprendizado se aplica com grande propriedade à mudança do clima, um risco ainda maior para todo o planeta.

O momento é de sofrimento e angústia para muitos. A perda de emprego e renda é uma realidade que aprofundará a desigualdade social. Os efeitos de longo-prazo da pandemia serão severos, inclusive devido ao contexto fiscal ainda mais desafiador. Superar a crise exige convergirmos em torno de uma agenda que nos possibilite retomar as atividades econômicas, endereçar os problemas sociais e, simultaneamente, construir uma economia mais resiliente ao lidar com os riscos climáticos e suas implicações para o Brasil.

Dependendo do cenário climático que iremos encontrar, os custos de descuidar de eventos climáticos com repercussões sistêmicas poderão ser bem maiores do que os da atual pandemia. Além disso, os potenciais efeitos calamitosos que a mudança do clima pode causar à estabilidade financeira já têm levado bancos centrais a internalizar os riscos climáticos em suas análises macroeconômicas, de acordo com o próprio Bank for International Settlements (BIS), e os mercados financeiros a reconhecer e precificar, de forma transparente, tais riscos de longo prazo. Mais especificamente, a reprecificação dos ativos mais expostos à mudança climática e outros custos de transição, como o financiamento da transformação de setores da economia, terão crescente impacto na poupança privada e no funcionamento dos mercados de capital.

Os cientistas do clima e o Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas (IPCC) vêm há muito alertando para os riscos associados ao aquecimento global e às mudanças climáticas. Nos últimos cem anos, a temperatura global média subiu aproximadamente 1,1oC, aumentando mais recentemente a frequência e a intensidade de tempestades, ondas de calor, enchentes, secas e elevando o nível dos oceanos. Baseada nas evidências e em modelos cada vez mais precisos, a comunidade científica vem advertindo que a continuidade da tendência de aquecimento global poderá trazer mudanças irreversíveis a muitas formas de vida e sérios impactos à produção agrícola e condições de vida, especialmente nas regiões tropicais.

A seriedade dos riscos físicos das mudanças climáticas e a complexidade dos riscos de transição  demandam que os governos, o setor privado, a sociedade civil e a comunidade internacional se antecipem aos previsíveis impactos negativos de longo prazo, construindo desde já uma economia de baixo carbono e, ao mesmo tempo, mais resiliente e adaptada aos desafios futuros. O governo tem um papel essencial em alinhar incentivos e expectativas, criando um ambiente favorável à ação sustentável do setor privado e do mercado. No setor privado, a crescente disciplina da precificação dos riscos ambientais, inclusive sistêmicos, deverá fortalecer o compromisso com os objetivos de governança, sociais e ambientais.

A recuperação da economia pós-COVID-19 oferece oportunidades importantes para promover a economia de baixo carbono e sustentável, em um momento em que o mundo atravessa importantes e rápidas transformações nos mercados de capital e de trabalho.  Mais do que o volume do gasto público, o impacto de longo prazo da ação fiscal se dará pela escolha de como esse gasto será efetuado, estimulando ações que alavanquem as vantagens comparativas do país e contribuam para a produtividade de longo prazo da economia e a criação de empregos.

O Brasil tem evidentes vantagens como economia de baixo carbono, dada a composição de sua matriz energética, a abundante radiação solar, agricultura pujante produtora de vultosas quantidades de biomassa, recursos hídricos e florestas extensas e biodiversas. Em função de tais vantagens comparativas, é do interesse do país estar entre os líderes da transição para uma economia mundial carbono-neutra.

Por isso, nós, ex-Ministros da Fazenda e ex-Presidentes do Banco Central do Brasil, subscrevemos este documento e defendemos que critérios de redução das emissões e do estoque de gases de efeito estufa na atmosfera, e de resiliência aos impactos da mudança do clima sejam integrados à gestão da política econômica. Esses critérios já são, e serão cada vez mais, baseados em tecnologias compatíveis com o aumento da produtividade da nossa economia, a geração de empregos e a redução da desigualdade no Brasil. Além disso, a descarbonização significa a valorização da nossa economia no longo prazo, uma consideração cada vez mais importante para investidores internacionais.

Gostaríamos, com esse propósito, de indicar alguns princípios para descarbonizar a economia brasileira e, simultaneamente, aumentar a sua produtividade. Os desafios não são triviais, mas temos um caminho por onde seguir.

1.    Alcançar a economia de baixo carbono. Investimentos públicos e privados devem apoiar a transição da economia brasileira para um padrão de emissões líquidas de carbono zero, indispensável para estabilizar a temperatura média global.

Soluções e tecnologias com baixa emissão de carbono já se mostraram de alto retorno sobre investimento, como demonstrado com as energias renováveis, os investimentos em eficiência energética, as construções eficientes em uso de energia, e os modais de transportes de baixa emissão.

A energia elétrica de origem eólica produzida no Nordeste, por exemplo, além de barata já equivale a quase 90% da energia consumida na região. Quase 20% da nossa produção de soja já é transformada em biodiesel, contribuindo para a prosperidade do produtor rural e redução das emissões de carbono. Há inúmeras outras oportunidades no setor de energia e em novos modelos de negócio de alto retorno e baixo impacto ambiental como os promovidos pela digitalização da economia.

Um passo crucial para a transição para uma economia de baixo carbono é eliminar subsídios a combustíveis fósseis, seguido da promoção de mudanças regulatórias voltadas à sustentabilidade, sem prejuízo da eficiência.

Estimular a criteriosa emissão de ativos financeiros verdes, e incluir requisitos ambientais em licitações e nas práticas orçamentárias podem ser instrumentos de indução de uma economia mais descarbonizada.

Ampliar a cooperação internacional em relação ao clima contribuirá para alinhar as políticas e ações públicas, conjuntamente apoiadas pela iniciativa privada e pela sociedade civil, aos compromissos assumidos no Acordo de Paris.

É fundamental mobilizar fontes de financiamento privadas para iniciativas ligadas à mitigação e adaptação vis-à-vis a mudança do clima, assim como deveríamos ampliar a nossa ambição em relação à ação climática e implementar as Contribuições Nacionalmente Determinadas.

2.    Zerar o desmatamento na Amazônia e no Cerrado. O desmatamento no Brasil responde hoje por emissões de CO2 substancialmente maiores do que as de todo nosso setor industrial ou do setor de transporte — não obstante a grande dependência brasileira do transporte rodoviário movido a óleo diesel. Além disso, o risco de mudanças dos ciclos de chuvas originadas na Amazônia causadas pelo desmatamento tende a afetar negativamente a nossa agricultura e a produção de energia hidrelétrica notadamente no Centro-Oeste.

O retorno financeiro do desmatamento — especialmente na Amazônia — é, assim, baixo e certamente negativo quando se considera, além da biodiversidade e os serviços ambientais e climáticos, o impacto reputacional sobre o país. O prejuízo do desmatamento tem levado diversos parceiros comerciais importantes e investidores estrangeiros no Brasil a expressarem veementemente seu descontentamento e preocupação, que certamente se traduzirão em menores fluxos de comércio e investimentos no país.

O controle para o cumprimento das leis de proteção ambiental é uma maneira efetiva de mitigar emissões e evitar o mau uso do patrimônio público constituído pelas florestas em áreas da União, tanto as sem destinação específica, como as que formam Unidades de Conservação, assim como o desrespeito ao direito representado pelas Terras Indígenas estabelecidas por lei.  A intensificação da pecuária e a expansão da agricultura sobre áreas de pastagens, inclusive degradadas, permitem responder à crescente demanda pelos nossos produtos sem prejuízo das áreas naturais. Como parte de uma estratégia de desenvolvimento da Amazônia que reflita as vantagens e desafios da região e incorpore áreas urbanas, rurais e de floresta, urge apoiar um aproveitamento não destrutivo e de base científica da biodiversidade, com maiores retornos econômicos e sociais para todo o País.

3.    Aumentar a resiliência climática. O Brasil já sofre com extremos climáticos do presente, como enchentes e secas. Aumentar nossa resiliência climática também traz um grande dividendo social, já que os extremos climáticos tendem a atingir desproporcionalmente as populações mais pobres. A maioria das ações que buscam o aumento da resiliência climática são medidas de desenvolvimento com altos retornos econômicos e sociais.

Se nada for feito, as mudanças climáticas simplesmente vão agravar os impactos. Portanto, é necessário investir em capacidade técnica para podermos aumentar a resiliência climática do país, identificando nossas maiores vulnerabilidades, avaliando os riscos, e adaptando nossa infraestrutura, inclusive urbana, de acordo.

A expansão de investimentos sustentáveis, como no saneamento, por exemplo, tem um impacto social tão ou mais imediato e importante que suas implicações ambientais. As chamadas soluções baseadas na natureza, que incluem a adaptação baseada em ecossistemas, são também promissores mecanismos para a expansão da infraestrutura necessária para melhorar a qualidade de vida do nosso povo e gerir os riscos climáticos.

4.    Impulsionar a pesquisa e o desenvolvimento de novas tecnologias. A pesquisa científica e a aplicação de novas tecnologias que propiciem soluções e promovam modelos de negócio de baixo carbono são ingredientes importantes para aumentar a produtividade e competitividade de nossa economia, sobretudo num contexto de crescente digitalização da economia global.

Frente a todos esses desafios e também oportunidades, nós estamos dispostos a contribuir para a construção de uma agenda concreta para tornar a economia de baixo carbono realidade e mitigar os enormes riscos associados à mudança do clima global.  O momento exige convergência para que seja possível construirmos um futuro mais sustentável, inclusivo e próspero para a atual e as futuras gerações.

Alexandre Antônio Tombini

Armínio Fraga

Eduardo Guardia

Fernando Henrique Cardoso

Gustavo Krause

Gustavo Loyola

Henrique Meirelles

Ilan Goldfajn

Joaquim Levy

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Maílson da Nóbrega

Marcílio Moreira

Nelson Henrique Barbosa Filho

Pedro Malan

Persio Arida

Rubens Ricupero

Zélia Cardoso de Mello

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