Economia

A economia perdeu: estratégia de 'conviver com o vírus' foi um erro

Bary Pradelski, co-autor de novo estudo sobre como países lidaram com a pandemia, avalia que tentativa de somente amenizar os estragos se provou pouco eficiente — punindo a economia e as liberdades civis

Pradelski, do CNRS e de Oxford: "não dá para ficar como está até que o mundo todo se vacine" (Arquivo pessoal/Divulgação)

Pradelski, do CNRS e de Oxford: "não dá para ficar como está até que o mundo todo se vacine" (Arquivo pessoal/Divulgação)

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Carolina Riveira

Publicado em 4 de julho de 2021 às 08h00.

Última atualização em 4 de julho de 2021 às 09h12.

Conviver com o coronavírus ou tentar eliminá-lo? Para a maior parte dos países, a busca foi pela primeira opção.

Mas mais de um ano depois de a covid-19 ser decretada pandemia, os números mostram que países que foram mais ambiciosos e tentaram eliminar o vírus, em vez de só apagar incêndios, preservaram mais suas economias — e até mesmo a liberdade dos cidadãos.

A conclusão é do estudo SARS-CoV-2 elimination, not mitigation, creates best outcomes for health, the economy, and civil liberties, publicado na revista científica The Lancet.

O trabalho analisou o desempenho de membros da OCDE, organização de países de economia avançada, entre os que tentaram eliminar o vírus e manter o nível de casos muito baixo (como Nova Zelândia, Austrália, Japão e Coreia do Sul) e os que tentaram mitigar os impactos (países europeus, EUA, e alguns latino-americanos).

"Na maioria dos países ocidentais, a estratégia tem sido deixar o problema crescer primeiro, e só combatê-lo quando já está insustentável. Mas aí fica muito mais difícil, e economia e saúde perdem", diz o pesquisador Bary Pradelski, um dos autores do estudo, que atua no centro de pesquisa francês CNRS e no Instituto de Finanças Quantitativas da Universidade de Oxford.

E a vacina não encerra o problema, diz. "Não dá para ficar como está até que o mundo todo se vacine, ou teremos variantes ainda piores, e o impacto para alguns setores será catastrófico." Leia abaixo os principais trechos da entrevista concedida à EXAME.


Como os países que optaram pela “eliminação” tiveram maior índice de liberdade civil se fizeram quarentenas mais rigorosas?

O ponto das liberdades civis foi um dos mais surpreendentes para nós. O principal motivo parece ser que, ao buscar a eliminação do vírus, esses países agem rápido. Por exemplo: agora mesmo Melbourne [na Austrália] está entrando de novo em lockdown, mas só por uma semana. A estratégia é "vamos parar o problema agora antes que fique muito grande". Na maioria dos países ocidentais, a estratégia tem sido deixar o problema crescer primeiro, e só combatê-lo quando já está insustentável. Mas aí fica muito mais difícil.

E esses dados só mostram uma parte, que são as quarentenas oficiais. Tem ainda outra coisa: as pessoas estão assustadas. Em países com taxas de transmissão muito alta, elas mesmas decidem não sair, não ficar em lugares fechados, com ou sem lockdown. Então, na prática, as restrições às liberdades civis nesses lugares tendem a ser ainda piores.

Fonte: OCDE e Oxford COVID-19 government response tracker (Arte)

O estudo diferencia as estratégias em "eliminação" e "mitigação". Mas o objetivo de ambos é evitar mortes, não? Qual é a diferença?

Na maior parte da Europa e nos EUA, o foco foi: só não queremos sobrecarregar os hospitais, mas fora isso, vamos tentar viver com o vírus. E o problema disso é que não é uma estratégia sustentável no longo prazo. A situação nunca está boa, só seguimos levando, mas a um custo econômico e de vidas muito alto. Agora, na eliminação, o objetivo é chegar a um número baixo ou zero de casos: pode ser mais difícil no começo, mas uma vez que você consegue isso, reduz a transmissão comunitária e pode relaxar as medidas.

Muitos países têm usado sobretudo a ocupação de UTIs como métrica para tomar medidas — incluindo o Brasil. Quais são os impactos dessa lógica na economia e na saúde?

Do ponto de vista de saúde, olhando para o último ano, fica claro que os países que fizeram o contrário, buscando a eliminação do vírus, se saíram melhor não só em combate à covid mas a outras patologias, porque não precisaram cancelar exames e tratamentos. E na economia, há muita incerteza com essa estratégia de ter sempre um número alto de casos. O que vemos agora na Europa, por exemplo: com a ameaça da variante delta, de uma hora para outra alguns países europeus estão barrando viajantes do Reino Unido [que tem tido aumento de casos da variante]. Isso afeta especialmente indústrias como o turismo, que já sofreram muito por mais de um ano.

Mas muitos países que buscaram a "eliminação" agora estão atrás na vacinação e correm risco de surtos, como o Japão. Eles ainda são modelos?

É verdade que alguns países que controlaram o vírus agora estão atrás na vacinação, enquanto outros que foram mal no ano passado estão conseguindo melhorar por causa das vacinas. Mas ao mesmo tempo, muitos países ainda sequer tiveram acesso à vacina. Então esse é um argumento um pouco cínico, porque, para começar, se todos os países tivessem agido como esses que tentaram eliminar o vírus, não estaríamos num cenário tão ruim hoje. E também não deveríamos esquecer que no Brasil, 500.000 pessoas morreram, nos EUA, 600.000 pessoas. Então ok, agora Israel está melhor do que a Austrália. Mas em Israel 6.000 pessoas morreram [com 9 milhões de habitantes], na Austrália foram algumas centenas [com 25 milhões de habitantes]. Foi um preço muito alto a se pagar até chegarem as vacinas.

Qual é o caminho daqui para frente, enquanto as vacinas não chegam a todos?

Ainda acreditamos que a estratégia de eliminação é a correta, mesmo agora que há vacinas. Listei para um novo artigo com colegas quatro motivos: o primeiro são as novas variantes, que temos visto mesmo em países com alta taxa de vacinação. Mas outra coisa que é muito pouco discutida é a covid longa [as sequelas dos sobreviventes]. É um problema gigante, até entre os muito jovens, dados já mostram cerca de 10% dos adolescentes de 11 a 17 anos sofrendo de covid longa. Nós queremos que todas essas pessoas sigam adoecendo?

Um terceiro ponto é a incerteza que permanece em vários setores econômicos, que não conseguirão lidar com mais um ou dois anos dessa forma. E por fim, o fato de que este é um problema global e ainda não há vacinas para todos. Nenhum país vacinado poderá se isolar totalmente. Claro, talvez tenhamos alívio em alguns lugares nos próximos meses por causa das vacinas. Mas elas podem deixar de ser efetivas se a pandemia não for controlada globalmente.

Mas os países parecem estar apostando todas as fichas na vacinação. Mesmo os países com muitos vacinados deveriam estar tomando outras medidas?

Exatamente. Há essa tendência em muitos países, uma vez que se tem uma nova ferramenta — como a vacinação —, todas as outras são jogadas fora. Em vez de apenas adicionar isso à caixa de ferramentas e pensar "ótimo, agora vamos derrotar o vírus ainda mais facilmente". Não dá para ficar como está até que o mundo todo se vacine, ou teremos variantes ainda piores, e o impacto para alguns setores da economia será catastrófico. Até agora, não há variantes que escaparam totalmente das vacinas — e eu espero que não haja nunca. Mas nesses países onde há muitos vacinados, como o Reino Unido, há um terreno fértil para mutações. É um momento muito crítico, e é preciso tentar manter o número de casos baixo para evitar o surgimento de novas variantes.

Fonte: Our World In Data (Arte)

O estudo destaca a importância de acompanhar novos surtos desde o começo. Mas a Nova Zelândia tem 5 milhões de habitantes. Como isso pode funcionar em países maiores, como o Brasil?

Acredito que é preciso quebrar o problema em pedaços, especialmente em um país como o Brasil. Eu não conheço o Brasil tão bem, mas é preciso olhar para as grandes cidades, o tráfego entre elas. As viagens, até dentro do mesmo país ou estado, são um grande problema, porque causam "reintroduções" do vírus em novas comunidades. Por isso é importante reduzir as viagens quando se sabe que as taxas de contágio estão altas. Seria ótimo implementar conceitos como "zona verde", regiões entre as quais há circulação liberada porque os casos estão quase zerados, ao mesmo tempo em que em outras há lockdowns localizados, com restrição de entrada e saída. E aí acontece de depois ser possível ver esses lugares retornarem à vida normal, o que também pode ser um incentivo para outros governos e a população — porque você percebe que há, sim, um caminho para sair disso.

A testagem é apontada como uma das grandes medidas para manter os casos baixos, mas não foi feita em muitos países. Quais lições os países-modelo ensinam?

É preciso deixar claro que nesses países a testagem e rastreio só funcionaram porque os números de casos estavam baixos. Uma vez que se chega a esse nível baixo, ter um sistema de testagem vai ser uma ferramenta para mantê-lo baixo. Mas com o número atual de casos que vocês têm no Brasil, ou que há no Reino Unido, é impossível. É preciso primeiro reduzir os casos. E os testes precisam ser aleatórios para se entender o tamanho real do problema. Muitos países só testam as pessoas quando elas estão com sintomas, mas a essa altura a pessoa provavelmente já está infectada. Outra estratégia que funcionou é a testagem frequente sempre nos mesmos lugares, como escolas ou locais de trabalho. Porque você sabe quem são as pessoas, consegue rastrear rapidamente.

Em todo o mundo, as pessoas estão cansadas da pandemia e os negócios estrangulados, e o modelo de "eliminação" exige sacrifícios. Ainda é possível aplicá-lo em 2021?

Eu diria que sim. Um argumento muito comum é que os países que optaram pela estratégia de eliminação são ilhas, por isso deram certo. De fato, muitos países da OCDE são ilhas, mas China e Vietnã não são. Mesmo se olhar para a Europa, é um continente muito grande, e muito conectado. Mesmo assim, após a primeira onda no ano passado, a Europa esteve muito perto da eliminação. Mas depois disso, assumiu-se que o vírus tinha ido embora. E a reação foi muito lenta às novas ondas. Por isso, eu diria que é possível, porque vimos lugares com casos muito altos que conseguiram abaixar muito — mas o segredo é que, uma vez que está muito baixo, é preciso manter. Na Europa todos sabiam que havia surtos em cidades como Paris e Madrid, as pessoas viajavam para lá e levavam o vírus para casa. Mas ninguém quis atrapalhar aquele "sentimento" de reabertura com restrições localizadas nesses lugares.

E mesmo para o Brasil, obviamente não é agradável ter lockdowns ou medidas restritivas, mas depois de quase um ano e meio, sabemos que fazer isso é menos custoso — em termos de mortes, economia e liberdade — do que simplesmente continuar como está. Olhando para o futuro, haverá países que terão controlado o vírus. E os que não o fizerem, vão ficar mais para trás economicamente, em termos de negócios, investimentos, viagens. Além disso, se as pessoas continuarem sendo infectadas dessa forma, os casos de covid longa também vão ter um custo econômico, porque demandarão do sistema de saúde.

Vocês mencionam a campanha contra a varíola no artigo. O mundo conseguirá erradicar a covid-19 como erradicou a varíola?

Antes, é preciso concordar globalmente que a eliminação é possível e que esse deve ser nosso objetivo. A varíola é um caso, ou o sarampo — embora ainda seja um problema em alguns lugares da África, ou com as quedas na vacinação. Mas o sarampo deixou de ser tão perigoso, primeiro, porque houve um consenso mundial para buscar a eliminação. E o sarampo é inclusive mais contagioso que a covid. Então se foi possível para o sarampo, você pensaria que é possível também para a covid. Pode-se argumentar que é possível coexistir com o sarampo. Mas hoje, graças à estratégia de eliminação, somos obrigados a conviver com ele a uma taxa muito, muito mais baixa. E também por isso, o surgimento de novas variantes está estável — não corremos o risco de uma "variante delta do sarampo".

 

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