Moradora recebe uma cesta de alimentos e produtos de higiene doados na favela do Vale das Virtudes, São Paulo, 12 de junho de 2020. (Victor Moriyama/Bloomberg)
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Publicado em 28 de junho de 2020 às 09h00.
Até agora, o Brasil se mantém praticamente intocado pelos protestos antirracistas, algo que chama a atenção em um país tão marcado pela história de escravidão e desigualdade econômica entre brancos e negros.
A taxa de homicídio entre homens negros é mais do que o triplo da registrada entre brancos no Brasil, enquanto no Rio de Janeiro, a segunda maior cidade do país, cerca de 75% das pessoas mortas pela polícia em 2019 eram pretas ou pardas, de acordo com dados nacionais e municipais. Mas, mesmo em um país onde protestos de rua são comuns nas tardes de domingo, a reação sobre a morte de George Floyd nos Estados Unidos foi bastante contida. Nenhuma estátua derrubada, nenhuma revolta nacional.
Uma razão é que a pandemia de coronavírus obriga os negros a se concentrarem na sobrevivência do dia a dia. Além de terem mais probabilidade de morrer do vírus, que já infectou mais de 1 milhão de brasileiros, também serão os mais impactados pela recessão causada pela pandemia. Enquanto em outras partes do mundo esses fatores podem alimentar uma agitação social, no Brasil só reforçam a sensação de desesperança que historicamente silenciou os mais frágeis da sociedade.
“Há questões subjacentes, como falta de acesso a saneamento básico, à nutrição adequada, maior quantidade de doenças respiratórias, necessidade de deslocamento maior para serviços básicos, muitos negros atuando em áreas consideradas essenciais, muitos trabalhadores informais, isso agrava o impacto da pandemia nas desigualdades raciais”, disse Thiago Amparo, professor da Fundação Getulio Vargas.
Outras razões que desencorajam os protestos, segundo Amparo, incluem o racismo estrutural que perpetua as desigualdades, pouca solidariedade das classes média e alta que resistem em participar de tais manifestações, assim como a normalização da violência e falta de apoio institucional entre organizações da sociedade civil.
Aproximadamente 116 milhões de brasileiros se identificam como pretos ou pardos, ou 56% da população. Na pandemia que começou entre os ricos e se espalha por todos os níveis de renda - o Brasil perde apenas para os EUA em número de mortes -, os negros no país respondem por pouco mais da metade dos casos confirmados. Mas, devido às vulnerabilidades e desigualdades preexistentes no acesso à saúde pública, eles representam 61% das mortes, de acordo com números divulgados pelo Ministério da Saúde em 24 de junho.
Como em outros países, os negros no Brasil estão em desvantagem em relação aos brancos em quase todos os indicadores. Em média, pretos e pardos ganham o equivalente a 57% do salário dos brancos. Embora na quinta-feira o presidente Jair Bolsonaro tenha nomeado o primeiro negro do ministério, os negros são virtualmente excluídos das posições de poder na economia e no governo e têm maior probabilidade de viver em situações que são desproporcionalmente impactadas pela Covid-19.
Nas centenas de favelas do país, muitas pessoas podem dividir o mesmo quarto e, devido ao esgoto a céu aberto e acesso precário a serviços de saúde, as condições sanitárias estão longe de serem adequadas. Sem muita assistência do governo ou poupanças, muitos não podem se dar ao luxo de não trabalhar durante as quarentenas, pegando ônibus lotados por horas todos os dias, o que reduz a eficácia das medidas de isolamento social.
Como resultado, a Covid-19 é muito mais mortal nessas comunidades. A taxa de mortalidade nas favelas do Rio de Janeiro é de 22%, segundo a ONG Voz das Comunidades. A taxa supera em cinco vezes a média nacional. Hospitais públicos, que possuem apenas 25% do número de leitos de unidades de terapia intensiva que hospitais particulares, ficaram rapidamente sobrecarregados em algumas cidades, deixando brasileiros não brancos, que correspondem a 67% dos pacientes, sem assistência.
A pandemia também causou estragos na economia: a produção industrial e as vendas no varejo registraram quedas recorde, e o Fundo Monetário Internacional estima que o PIB deve encolher 9,1% neste ano.
O impacto deve ser especialmente significativo entre comunidades negras.
“O racismo já faz com que negros tenham mais dificuldade de obter emprego, e a remuneração desse grupo tende a ser menor”, disse Glauber Silveira, professor de economia do Ibmec. “Em momentos de turbulência econômica, essas pessoas são mais vulneráveis e tendem a ter perda de rendimentos mais significativa e ter maior taxa de desemprego do que nos outros grupos.”
Além de ganhar menos do que brancos, pretos e pardos ocupam apenas um terço dos cargos gerenciais. Embora os negros correspondam a 51% dos donos de pequenos negócios, tendem a trabalhar em setores menos lucrativos, como varejo e serviços, diz Andrea Franco, pesquisadora de relações raciais da Universidade Federal da Paraíba.
“Mesmo antes da pandemia, a realidade do trabalho já dava sinais de sua precarização, e estamos produzindo um contingente ainda maior de excluídos. A população negra e, especialmente, as mulheres negras, estando na base dessa pirâmide, serão os mais impactados”, afirmou a pesquisadora.
A desigualdade no mercado de trabalho brasileiro é atribuída à educação básica de menor qualidade, uma rede de contatos profissionais mais limitada e outros fatores. Mas Amparo, da FGV, diz que pesquisas mostram que cerca de um terço das desigualdades não têm explicação, ou seja, “isso pode ser creditado a racismo estrutural mesmo”.
O racismo estrutural, diz Andrea, da Universidade Federal da Paraíba, também se reflete nos números da violência. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que, somente no ano passado, das 5.804 pessoas mortas pela polícia, 75% eram pretas ou pardas.
“Resistir ao racismo não é uma necessidade só dos negros, e, neste sentido, a população branca nos Estados Unidos consegue se mobilizar muito mais que no Brasil”, disse Andrea. “Algo que eu gostaria que não se arrefecesse após esse momento de tanta efervescência das tensões raciais é a atenção dos grandes meios de comunicação às nossas lutas e demandas, e que o racismo passasse a ser encarado como problema da sociedade brasileira, e não só dos negros brasileiros.”
(Com a colaboração de Murilo Fagundes).