EXAME.com (EXAME.com)
Da Redação
Publicado em 6 de julho de 2014 às 09h51.
São Paulo - Especialistas em contas públicas podem discordar em um ou em outro detalhe técnico em relação ao cálculo do superávit primário. Há quem entenda que se um Refis é realizado todos os anos, deixou de ser eventual e é um dinheiro legítimo para fechar as contas públicas.
Para outros, a renegociação de débitos tributários com descontos generosos nem deveria existir, porque trata como tolo quem paga impostos em dia. Considerá-lo no superávit, então, nem pensar.
Saindo do árido campo da contabilidade, hoje é consenso entre eles que as demonstrações contábeis, por diferentes razões, inspiram cuidados. "Há um sinal amarelo nas contas públicas", diz o consultor Raul Velloso, especialista em finanças públicas.
O aumento de restos a pagar preocupa demais Velloso. "Restos a pagar é o último recurso da administração pública para fechar as contas e é uma ferramenta admissível para prefeituras e alguns Estados com limitações para fazer caixa ou tomar empréstimos", diz. "Mas a União, que dá o exemplo e é a grande responsável pelo superávit, deve ter sobra de caixa e não deveria ter de passar para frente as despesas."
O que mais preocupa Velloso é a eventual herança desse tipo de postura. "Pela Lei de Responsabilidade Fiscal, uma gestão não pode deixar restos a pagar para a gestão seguinte", diz o consultor.
Mas Velloso considera os restos a pagar um "ator menor" na questão. Mensalmente, ele observa receitas e despesas da administração pública e tem convicção matemática de que em algum momento a conta não vai fechar.
Segundo ele, até 2008, ambas cresciam a taxas médias anuais de 9%. De lá para cá se estabeleceu um descompasso entre elas. As despesas aumentam cerca de 6% ao ano, enquanto as receitas não passam de 3%. Em alguns meses chegam a ser negativas.
"Não podemos continuar fugindo do cerne dessa discussão", diz Velloso. "O problema é o modelo: o crescimento está baixo, as receitas caem, mas o governo insiste em não cortar gastos."
O economista Amir Khair, ex-secretário de Finanças da Prefeitura de São Paulo na gestão petista de Luiza Erundina, segue a mesma linha de raciocínio: "A União é vítima de sua política econômica". Por ter visto a gestão pública por dentro, Khair identifica que elevar restos a pagar nunca é um sinal confortável porque indica, por qualquer razão que seja, que pagamentos estão sendo protelados.
O que mais chama a sua atenção é saber que um volume tão elevado de subvenções e subsídios a bancos públicos (os R$ 21 bilhões identificados no estudo da Tendências) esteja registrado como "restos a pagar não processados".
"Não é possível: se o dinheiro foi para banco e entrou, é despesa efetiva e precisa ser registrada no primário", diz Khair. "Se algo diferente está acontecendo, com ou sem lei que permita, é estranho - e é ruim", diz. Na avaliação dele, essa sistemática piora a já questionada falta de transparência das contas nacionais porque não fica claro, afinal, quanto se gasta.
Esqueletos
Em retrospecto, o Brasil já se deu mal com a falta de transparência. Quem lembra é Gabriel Barros Leal, analista de Finanças Públicas e Crédito do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV).
Nos anos 80 e início dos 90, estratégias como congelamento de tarifas, uso indevido do caixa de bancos públicos e maquiagem de déficits orçamentários de Estados e municípios geraram esqueletos bilionários.
"O que vemos nas contas públicas hoje não é uma mera questão tecnocrática de como fazer ou não superávit", diz Leal. "Temos visto uma aposta em um tipo de crescimento que não deu certo e o governo se aproveita de brechas legais nas contas públicas para não mostrar o que não vai bem", diz.
Na sua avaliação, boa parte das polêmicas quanto à contabilidade criativa se resolveria com uma modernização do arcabouço legal. "O que precisa ser feito é uma reforma estrutural que atualize a esfera fiscal - isso faria um enorme bem ao Brasil." As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.