Varsóvia, capital da Polônia: "terapia de choque" liberal foi responsável pela modernização e crescimento da Polônia pós-União Soviética (//Getty Images)
André Jankavski
Publicado em 11 de outubro de 2019 às 05h50.
Última atualização em 11 de outubro de 2019 às 05h50.
São Paulo — Por lei, os espelhos retrovisores de carros vendidos nos Estados Unidos e no Canadá têm de vir com a inscrição: “Objetos no espelho estão mais perto do que parecem”. É um alerta para prevenir acidentes. Pois no Brasil talvez fosse o caso de exigir a inscrição oposta nos óculos dos analistas e investidores: “O que você está enxergando está mais longe do que parece”. Acidentes, o alerta poderia não evitar. Mas ajudaria a conter as alterações de humor que nos levam da euforia à depressão no ritmo das declarações do presidente Jair Bolsonaro e dos vaivéns do Congresso ou do Judiciário.
No final do ano passado, a fase era de bom humor com a economia. Falava-se em choque de racionalidade, volta da confiança, enxurrada de investimentos e um crescimento do produto interno bruto que poderia alcançar 2,5% neste ano — menos do que o desejado, mas um caminho seguro de recuperação da economia.
Mas aí se intrometeu a realidade diária das dificuldades que custam tanto a passar — e que, por não passar, custam tanto. As previsões para o PIB murcharam, para perto de 0,9%. A recessão terminou, mas o país se arrasta na recuperação mais lenta de sua história, com previsão de retorno ao nível econômico pré-crise apenas em 2021 (mais que o dobro do tempo das duas últimas grandes crises, de 1981-1983 e de 1989-1992).
Por que nossa recuperação é tão lenta? Em primeiro lugar, o tamanho da encrenca é bem maior do que se pensava, o que tem ficado cristalino nos últimos meses. Os excessos do passado ainda se fazem sentir. A produção nacional está quase 5% abaixo do pico de 2014. O desemprego e o subemprego são o dia a dia de 28 milhões de brasileiros — e há outras dezenas de milhões que dependem deles. A dívida pública chegou aos 80% do PIB, 29 pontos percentuais acima do que era sete anos atrás. E o país está completando o sexto ano consecutivo com as contas públicas no vermelho.
Mas, se é desanimador o diagnóstico de que a doença é mais grave do que se acreditava, a demora na recuperação pode ter também como causa uma razão mais alentadora. Há indícios de que as reformas em curso não visem exatamente a uma retomada, e sim a uma transformação. Estamos tentando uma substituição do modelo econômico em que o Estado é o motor fundamental dos investimentos para um modelo em que a iniciativa privada tem protagonismo. É um processo que demanda tempo.
Essa transição está ocorrendo, antes de mais nada, pela força das circunstâncias. “O Brasil está precisando direcionar suas forças para o crescimento puxado pelo setor privado por pura falta de opção”, diz Ilan Goldfajn, presidente do conselho de administração do banco Credit Suisse e ex-presidente do Banco Central. “O governo não está conseguindo consumir mais nem subsidiar setores com vista à volta do crescimento, já que não tem mais dinheiro nem atalhos para recorrer. Claro que o crescimento baseado nos gastos governamentais poderia voltar se quiséssemos inflacionar, poderia voltar com aumento de carga tributária ou com aumento ainda maior da dívida pública, que eram as soluções do passado. Mas parece que chegamos ao limite de tudo.” E esse cenário permite algum otimismo? “Quando o crescimento voltar, será em bases mais sólidas e sustentáveis”, afirma Goldfajn.
Os países que mais crescem são os que educam melhor, investem em pesquisa e desenvolvimento, buscam inovação. A riqueza vem de produzir mais utilizando os mesmos recursos. E quem faz isso melhor é o setor privado. Até porque o empresário que não se torna mais produtivo perece, substituído por algum concorrente.
O papel do governo, nessa lógica, é abrir caminho para o bom funcionamento da economia. “É preciso pensar nas reformas que vão trazer aumento de produtividade”, diz o economista José Alexandre Scheinkman, professor nas Universidades de Princeton e Colúmbia, nos Estados Unidos.
Basta ver o caso do agronegócio brasileiro, que nas últimas décadas floresceu até representar um quarto do PIB e o grosso do saldo comercial. Esse desenvolvimento foi tocado por produtores grandes e pequenos, cooperativas e empresas. Puro setor privado — beneficiado por pesquisas de ponta incentivadas pelo Estado.
Iniciada no governo de Michel Temer, com suas primeiras reformas e o retorno da estabilidade monetária e da responsabilidade fiscal, a transformação em curso na economia segue na gestão atual com medidas como a lei de liberdade econômica, a agenda de concessões e privatização, iniciativas de abertura comercial, a mudança do papel do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social e as batalhas para contenção do gasto público.
Tudo isso abre espaço para o setor privado. Significa que o Brasil está ensaiando seguir o receituário que já deu certo em outras nações como Reino Unido, Chile, Polônia e Austrália.
O exemplo clássico é o Reino Unido, sob a batuta de Margaret Thatcher. Quando ela chegou ao poder, em 1979, o setor público era inchado e ineficiente. Empregava quase 30% da força de trabalho e provocava um declínio constante da produtividade. A dívida pública crescia, o país vivia uma onda de greves. E o imposto sobre a renda podia chegar a 83%.
O thatcherismo consistiu em cortar a inflação, controlar o poder dos sindicatos, reduzir taxas, desregular e privatizar indústrias. Ao final de 12 anos de governo da Dama de Ferro, o PIB per capita havia sido multiplicado por 2,5 e estavam lançadas as bases para um crescimento ainda maior nos anos seguintes. Hoje, a riqueza per capita do Reino Unido é cinco vezes a do início da era Thatcher.
Na América Latina, o Chile fez uma transição similar. Ali, as reformas foram implementadas durante a ditadura de Augusto Pinochet, com base na cartilha do economista Milton Friedman, da Escola de Chicago. Os governos democráticos que se seguiram não as reverteram — e foi graças a essa continuidade que o país colheu os melhores frutos, com um PIB per capita que saltou de 2.500 dólares, em 1990, para 16.000 hoje.
Mais radicais ainda foram as transformações recentes no Leste Europeu, submetido durante quatro décadas ao regime socialista. Houve diferenças de trajetória em cada país: na Hungria, empregados e diretores das estatais ganharam preferências na privatização, e depois deu-se prioridade a grupos com capacidade de investimento, especialmente estrangeiros; na República Tcheca, foram distribuídos cupons de privatização a toda a população.
As diferenças de estratégia, cultura e características geográficas, políticas e econômicas levaram, obviamente, a situações diferentes — mas todos os países tiveram saldo positivo em relação à situação anterior.
A Rússia é um ótimo exemplo de um péssimo processo de transição. “Quando estive lá em 1990, a pensão de um funcionário público equivalia a 2 dólares por mês, o aluguel do apartamento custava 30 centavos de dólar e não havia nenhum acesso a bens do Ocidente”, diz Fernando Saldanha, economista com doutorado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts que então trabalhava no Banco Mundial.
Nessas condições, a população em geral não tinha a menor noção do valor das empresas que estavam sendo privatizadas, e os bens acabaram indo para as mãos de uma classe mais informada e bem conectada. Poucos anos depois do fim da União Soviética, Moscou já era a cidade com maior número de bilionários do mundo.
Se a Rússia acabou formando uma oligarquia dominada por ex-agentes do serviço secreto e do Partido Comunista, outros países do bloco socialista tiveram melhor sorte. O resultado mais positivo, no longo prazo, é o da Polônia. Não que ali não tenham ocorrido desvios. Mas o processo de alguma forma se endireitou. Especialmente por causa da perseverança: os poloneses não retrocederam nas reformas mesmo com 17 trocas de governo, incluindo administrações de esquerda, de centro e de direita.
Em consequência, hoje têm o país de economia grande que mais cresce no mundo desde 1995, a uma taxa em torno de 4% ao ano — maior do que a dos Tigres Asiáticos Coreia do Sul, Taiwan e Singapura. Neste ano, a Polônia tornou-se o primeiro país ex-comunista a entrar na lista de desenvolvidos do índice londrino FTSE Russell.
O sucesso foi resultado de uma “terapia de choque” aplicada de 1989 em diante: houve liberação dos preços e do comércio, estabilização macroeconômica, fim dos subsídios a estatais deficitárias, permissão para remessa de lucros de empresas estrangeiras, privatização, reforma da Previdência, reforma tributária e o fim da estabilidade dos servidores, com a construção de uma rede de proteção social para os desempregados. A Polônia também investiu numa profunda reforma educacional: hoje os alunos do ensino médio do país têm um nível similar ao dos colegas da Alemanha.
A reportagem completa sobre os avanços e retrocessos do Brasil, além da história de transformação de países como Austrália, Nova Zelândia, Israel, Suécia e Sri Lanka, está na edição 1195 de EXAME, disponível na versão impressa e digital.