Orçamento: a manobra feita esta semana é uma receita pronta para o mesmo ser feito no futuro, pois neste ano os salários públicos já estão congelados (Adriano Machado/Reuters)
Estadão Conteúdo
Publicado em 27 de março de 2021 às 13h38.
Última atualização em 27 de março de 2021 às 13h39.
O Congresso manipulou o orçamento federal para evitar o acionamento dos gatilhos (medidas de contenção de gastos) aprovados na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) emergencial e turbinar investimentos, com aval do governo. Os parlamentares diminuíram a proporção de despesas obrigatórias em relação ao total, condição para o acionamento do ajuste previsto no teto de gastos, incluindo o congelamento no salário dos funcionários públicos. A decisão antecipou um movimento para repetir a manobra nos próximos anos e tornar a PEC emergencial uma peça de ficção.
Pela Emenda Constitucional 109, promulgada no último dia 15, os gatilhos - que na prática são a punição para o rompimento do teto - só serão acionados se a despesa obrigatória superar 95% do total na aprovação da Lei Orçamentária Anual (LOA), não importando o que aconteça ao longo do ano. Na prática, esse limite pode estourar durante a execução efetiva dos gastos sem que haja a contenção.
A manobra feita esta semana é uma receita pronta para o mesmo ser feito no futuro, pois neste ano os salários públicos já estão congelados. As despesas obrigatórias do Executivo estavam em 92,4% no projeto do Orçamento de 2021 enviado pelo governo, já abaixo do limite. Com o corte nas despesas previdenciárias e no seguro-desemprego feito para acomodar recursos para obras e projetos de interesse eleitoral, a proporção ficou ainda menor: 90,6%, conforme cálculos da consultoria da Câmara. A estratégia pode levar o Congresso e fazer a mesma manipulação quando o patamar real de despesas obrigatórias superar 95%, o que deve ocorrer em 2024 ou 2025, de acordo com projeções da equipe econômica e do Congresso.
O senador Marcio Bittar (MDB-AC) foi relator tanto da PEC emergencial quanto do Orçamento. Ele tirou R$ 13,5 bilhões dos benefícios previdenciários quando a equipe econômica e consultores do Congresso apontavam a necessidade de aumentar essas mesmas despesas em R$ 8,3 bilhões. Por outro lado, aumentou os gastos com investimentos (que não são despesas obrigatórias). Bittar argumentou que nos anos anteriores a despesa empenhada com Previdência foi menor do que a prevista e se apegou à economia da reforma feita em 2019. Ignorou, porém, os reajustes da inflação e do salário mínimo que mexem diretamente nesses gastos, além do possível e praticamente inevitável impacto da crise de covid-19 no seguro-desemprego.
O relator admitiu a articulação para aumentar investimentos por meio de cortes em despesas obrigatórias. O recado foi dado ainda em fevereiro, quando ele apresentou o parecer da PEC emergencial. "As despesas obrigatórias têm expulsado do orçamento federal as despesas com investimentos e com o custeio da máquina pública”, escreveu Bittar ao justificar a regra dos 95% na ocasião, em meio a críticas de técnicos do próprio Congresso. Na quinta-feira, durante a votação do Orçamento, ele voltou a expor a estratégia afirmando que cortes abriram espaço para investimentos.
Sem proposta. Bittar reforçou que o Ministério da Economia não enviou formalmente nenhuma proposta de modificação no Orçamento, nem para apontar os cortes necessários nem para elevar as despesas obrigatórias, apesar de ter alertado sobre a necessidade de alteração publicamente. "Nós, no dever, como brasileiros, de ajudar o governo, para ajudar o Brasil, é que participamos ativamente na solução de onde tirar o recurso que estamos hoje aprovando, para que esses ministérios tenham o seu orçamento recomposto, e obras tão fundamentais para o Brasil não sejam paralisadas”, disse.
Além de fazer um orçamento que pode ficar fora da realidade fiscal neste ano, o problema apontado pelo consultor Ricardo Volpe, da Câmara dos Deputados, é que o Congresso pode repetir o corte de despesas obrigatórias nos anos seguintes para nunca acionar os gatilhos e liberar o aumento de gastos com funcionários e obras de investimento. "A aprovação do Orçamento para 2021 demonstra tal fragilidade em não considerar a execução financeira. A emenda da PEC emergencial pode se tornar inócua para a União tanto por esse aspecto como por ter postergado o seu acionamento próximo ao prazo de revisão previsto no Novo Regime Fiscal”, afirmou Volpe. A regra do teto de gastos terá de ser revista em 2026.
A PEC alterou a dinâmica do teto. Os gatilhos, que na prática são a punição para o descumprimento do teto, não valem mais para rompimento da regra ao longo do ano. Dessa forma o governo poderá furar o teto sem ter de frear os gastos. O perigo nessa estratégia é cometer crime de responsabilidade e dar base jurídica para um processo de impeachment de Bolsonaro.