Economia

Com perda de exemplos, latinos devem olhar para Ásia, diz "pai dos Brics"

Há 20 anos, o Brasil era identificado como um dos emergentes que remodelariam a economia mundial; o cenário mudou, mas há esperanças, diz Jim O’Neil à EXAME

Jim O'Neill, criador do termo "BRIC", em 16 de março de 2011, no Reino Unido.  (Simon Dawson/Bloomberg)

Jim O'Neill, criador do termo "BRIC", em 16 de março de 2011, no Reino Unido. (Simon Dawson/Bloomberg)

Ligia Tuon

Ligia Tuon

Publicado em 27 de julho de 2020 às 10h24.

Última atualização em 27 de julho de 2020 às 16h51.

Há cerca de 20 anos, quando o Brasil foi identificado pelo britânico Jim O'Neill como um dos emergentes que remodelariam a economia mundial - junto a Rússia, Índia e China - o contexto do país era outro e as ferramentas usadas para impulsionar seu crescimento se provariam insustentáveis não muitos anos depois, com o agravamento da situação fiscal brasileira.

A pandemia do novo coronavírus deteriorou ainda mais esse cenário fiscal, jogando a economia ao fundo do poço, a exemplo do que aconteceu com outras tantas pelo mundo, e prolongando em mais de dez anos a previsão para que as contas do governo central voltem a concluir o ano no azul.

Mesmo assim, o Brasil não chegou ao fim da linha, de acordo com o economista responsável pela criação do termo Bric, em 2001, quando chefiava a área de análises do Goldman Sachs, onde trabalhou por 18 anos antes de ser o secretário do Tesouro do Reino Unido, até 2016:

“Eu não descarto a possibilidade de a terceira década dos BRICS ser muito melhor para o Brasil do que a segunda”, diz. Mas, claro, ainda é muito cedo para dizer, segundo ele, já que a resposta passa pela resolução de problemas que não só o Brasil, mas seus pares na América Latina vem enfrentendo há décadas, com destaque para o crescimento da desigualdade social e do risco fiscal.

"É algo que, em 10 anos, países da América Latina vão acertar. Apesar dos problemas políticos que vocês têm, parece para mim que alguns formadores de políticas públicas econômicas estão tentando desafiar problemas de longa data, particularmente o de excesso de gasto público", diz O’Neil em entrevista à EXAME.

Outro ponto imprescindível para que o país tenha anos mais produtivos pela frente diz respeito à governança, cuidado com o meio ambiente e fortalecimento das instituições:

"Países que não estão preparados para instituições independentes e robustas e que não têm a melhor tecnologia disponível para a população encontram mais dificuldades", diz.

Para O’Neil, os países dos Brics, que passaram a se reunir após alguns anos do nascimento do termo, falharam em resolver esses tipos de problemas em comum entre eles, o que resultou em uma segunda década dos Brics pior do que a primeira.

À EXAME, O’Neil fala da falta de seriedade do governo brasileiro no enfrentamento ao coronavírus, o que, segundo ele, contribui para o aumento do clima de incerteza e medo entre os cidadãos. Fala também de como países latinos ficaram órfãos de bons exemplos depois que o Chile, outrora promessa na região, se tornou menos robusto e politicamente instável do que o esperado.

A saída, agora, é voltar a olhar para exemplos asiáticos, como Coreia do Sul, diz. Leia a entrevista na íntegra:

 

A reabertura de economias tem sido uma questão importante para os governos. Qual é o melhor exemplo a ser seguido no momento?

Quando eu era economista do Goldman Sachs, nós criamos o Growth Environment World (GEW), um índice que media crescimento sustentável de cerca de 180 países.  A maioria dos países que encabeçavam a lista é a que está indo melhor na atual crise: Coreia do Sul, Hong Kong, Singapura, Alemanha, Dinamarca, Austrália, Nova Zelândia, entre outros.

Esses países têm uma melhor e mais ampla economia social de mercado, vamos chamar assim, e isso permite que passem com mais tranquilidade por choques. E isso não me surpreende.

A Suécia é uma exceção, pois, normalmente, ocupa os primeiros dez lugares do ranking de 100 nações, mas, deliberadamente, resolveu adotar a estratégia de não decretar o fechamento das atividades econômicas durante o surto. Em vez disso, preferiu apenas fechar suas fronteiras, o que levou o país a ter bem mais mortes do que era esperado por países vizinhos. Mesmo assim, a economia sueca não enfraqueceu mais do que outras.

A Suécia alcançou recentemente o 2º lugar entre os europeus na lista de novos casos por milhão de habitantes, ficando atrás do Luxemburgo, que tem apenas cerca de 600 mil habitantes contra mais de 10 milhões de suecos. Como o país fez com que sua economia não sentisse tanto o baque do fechamento das fronteiras?

Claro que a Suécia sofreu. Não foi tão impactada economicamente, porque não interrompeu suas atividades propositalmente, como fizeram seus vizinhos para conter a disseminação da doença. Então, até certo ponto, a vida dos suecos se manteve normal.

Mas, por outro lado, o fechamento das fronteiras enfraqueceu suas relações comerciais internacionais e viagens. E também porque, mesmo com as opções de consumo disponíveis, as pessoas ficam mais cuidadosas em um momento como este.

O dilema na Suécia é que não é um país isolado, faz parte de um mesmo mundo. Do ponto de vista econômico, a questão: por que o país pensou que essa estratégia na fase 1 levaria a uma economia mais forte?

A resposta pode passar pelo fato de eles já preverem - assim como muitos outros - mais ondas de contaminação do vírus sem uma vacina. Essa será a real prova da Suécia, porque as outras populações estão mais imunes ao vírus, provavelmente não precisarão passar por outro lockdown.

Muitas cidades brasileiras estão reabrindo suas economias e o que se vê até agora é um consumidor cauteloso, principalmente por causa das incertezas relacionadas à pandemia e à alta taxa de desemprego. Qual seria a melhor maneira de reativar a economia doméstica no Brasil? 

Eu realmente não sei como responder a esta pergunta com detalhes, pois não tenho acompanhado tão de perto a reabertura nos estados brasileiros. Mas me parece que a estratégia é mais como a dos Estados Unidos. Os dois países escolheram negar que a crise de saúde não vai seguir o que as lideranças políticas querem.

Eu não acho que o Brasil, pelo menos a nível presidencial, tem tratado essa crise com seriedade. E a consequente escalada das taxas de infecção, tanto no Brasil quanto nos EUA, é bem impressionante e contrasta com o que houve em países da Europa e da Ásia.

O que contribui para o aumento do clima de incerteza e, obviamente, causa medo nos cidadãos dos dois países.

Como um economista com experiência no setor público, qual é a sua opinião sobre o papel das lideranças políticas em meio à crise, já que é um momento em que surgem problemas insustentáveis, como grandes desigualdades entre pobres e ricos?

Sobre o papel das lideranças políticas, volto a falar do índice de sustentabilidade: há 15 variáveis nesse índice, incluindo qualidade dos governos, força das instituições, nível de educação, inclusão no uso da tecnologia. Esses itens fazem muita diferença e sua importância fica evidente em crises como esta. Países que não estão preparados para instituições independentes e robustas e que não têm a melhor tecnologia disponível para a população encontram mais dificuldades.

Nesse contexto, eu considero a Coreia do Sul se não o, um dos mais interessante que eu conheço. Porque é o único com mais de 50 milhões de habitantes, que assistiu à sua riqueza crescer de níveis semelhantes aos de um país africano para os de integrantes do G7. E eles fizeram tudo isso muito bem. Hoje, praticamente todo sul-coreano tem acesso a tecnologias modernas.

Estou bem certo de que esse não é o caso no Brasil, onde a liderança política não permite às instituições serem fortes como precisam ser. E isso também tem acontecido nos EUA, surpreendentemente.

Como o senhor vê os países do Brics hoje, quase 20 anos após criar o termo? E o que devemos esperar para o futuro?

Faz perto de 19 anos que eu criei esse nome. E a segunda década desses países não foi tão boa quanto a primeira.

Mas, de alguma forma, eu estou mais preocupado com o Chile. Me lembro que, em conversa com o Armínio Fraga, na qual eu dizia como a Coreia do Sul é um fantástico modelo para países emergentes, ele disse, de forma divertida, mas com precisão, que o Chile seria um modelo melhor que a Coreia do Sul.

Alguns anos se passaram, no entanto, e o Chile se mostrou menos robusto - em termos de estabilidade de governo - do que se esperava. Isso é preocupante. Sugere que muitos países latino americanos, inclusive o Brasil, ainda não encontraram um modelo para seguir na região.

O que está na raíz do problema do Chile, na minha opinião, é que não houve apenas parte da população ganhou com o crescimento chileno. E a desigualdade social se tornou um grande problema.

Desigualdade é um problema que tem sido visto em países da América Latina por 40 anos, se não mais. Há casos gritantes como Argentina e, claro, Brasil.

Então parece que países latino americanos, especialmente o Brasil, por ser o maior, precisam olhar cuidadosamente para exemplos como o da Coreia do Norte para ver como eles conseguiram ir tão bem.

Em algum grau, também devem olhar para a China, mesmo sendo comunista. Por que tantas nações asiáticas, como Hong Kong e Singapura, fizeram melhor? Essas duas últimas só são menores do que a Coreia do Sul, cujo caso é tão interessante pelo fato de ter 50 milhões de habitantes. Por que os países latinos não podem seguir seus exemplos? Acho que isso daria uma interessante tese de PHD. Porque é decepcionante.

É algo que, em 10 anos, países da América Latina vão acertar. Apesar dos problemas políticos que vocês têm, parece para mim que alguns formadores de políticas públicas econômicas estão tentando desafiar problemas de longa data, particularmente o de excesso de gasto público.

Eu não descarto a possibilidade de a terceira década dos BRICS ser muito melhor para o Brasil do que a segunda.  Mas ainda é muito cedo para dizer.

Sobre a China, o senhor acha que o país sai mais forte deste episódio, por ter sido um bom exemplo de controle inicial do surto, ou sua relação com o mundo ficará mais marcada pelo fato de o governo chinês ter omitido inicialmente os dados sobre o aparecimento da doença?

Vou dar respostas contraditórias. Por um lado, houve um abalo na relação da China com o resto do mundo em função de como o país lidou com a informação no início, mas, é importante dizer que, por outro lado, o país tem apoiado outros países - todos os dias -, no combate à doença, e tem feito isso para todo o mundo ver.

Isso pode dar ao país a chance de uma reconciliação com o resto do mundo. Mas pode também continuar irritando outros países, que culpam a China de ter trazido essa crise, como é o caso dos Estados Unidos.

E, de um modo estranho, podemos estabelecer paralelos aí com a crise financeira de 2008. O episódio foi causado por um problema no mercado imobiliário dos EUA e eles se recuperaram mais rápido que todo mundo.

A única diferença, que na verdade é uma grande diferença, é o fato de, agora, ser a China, o que contribui para a preocupação de muitos países - incluindo o Reino Unido - com nações comunistas.

China e Índia vão continuar liderando o crescimento entre as economias e chamando a atenção por isso no longo prazo? 

Eu espero que sim. A Índia deve passar a ameaçar os Estados Unidos, assim como a China ameaça hoje, em 30 anos. O crescimento da China, especialmente, mas também a Índia permitiu que a economia global crescesse de forma mais rápida nas duas últimas décadas em relação às duas anteriores. Nos anos 80/90, crescemos cerca 3%, 3,3% e nas últimas duas décadas, 3.5, 3.6%. E foi assim graças à China e à Índia.

Se esses dois países não puderem crescer em linha com esse potencial a partir de agora, o mundo vai sofrer. Além disso, são duas culturas no mundo com mais de um bilhão de pessoas cada uma.

Ao menos que eles não sigam suas políticas persistentemente, é bem difícil que eles falhem nesse plano de crescimento. E, claro, esses dois países têm seguido essas políticas. A Índia mais do que a China.

Eu ficaria surpreso se eles não crescerem de maneira mais robusta que o resto do mundo.

Se olharmos particularmente para a China e seus mais recentes indicadores, indicadores de "purchasing managers", que foram publicados há algumas semanas, e o PMI do setor de serviços registrou um recorde não visto há 10 anos.

Há muitas razões populistas para se preocupar com a China. Mas eu seria cuidadoso sobre ficar muito focado nessa onda de populismo, porque isso pode estar errado.

O que deu errado com a Índia? o país começou bem no combate à covid-19, mas agora os casos estão explodindo. O senhor acha que o país vai começar a competir com os EUA e o Brasil em número de mortos?

A governança na índia, do ponto de vista de como eles conduzem a sociedade em alguns aspectos, torna muito difícil o lidar com as consequências da pandemia, muito muito difícil. Especialmente em Mumbai.

Imagine a maior favela do Rio e pense em comunidades dez vezes maior e com mais pessoas morando nelas. Muitos deles em extrema pobreza. Fica mais difícil para a Índia lidar com um problema desses nesse cenário.

É difícil de dizer o nível dos estragos que essa crise pode causar à Índia. Mas acho pouco provável que ameace no longo prazo o crescimento do país, que já passou por diversas crises e parece que conseguiu fazer com que não durassem para sempre. A Índia vai se recuperar disso assim como o Brasil e outras culturas.

E esse processo pode encorajar a índia, assim como outros países,  a pensar com mais cuidado em políticas de saúde, educação e em aspectos da vida social. Se isso acontecer, o país vai se recuperar no longo prazo. E eu não dispensaria essa possibilidade.

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