Economia

Capitalismo: ficção e expectativas

Imagined Futures: Fictional Expectations and Capitalist Dynamics Autor: Jens Beckert. Editora: Harvard University Press. Páginas: 384 ———- David Cohen Se causou controvérsia a escolha do músico Bob Dylan para ganhar o prêmio Nobel de Literatura, imagine se fosse o Nobel de Economia. Não é uma hipótese assim tão absurda, se estiverem certas as teses do sociólogo […]

BOLSA DE NOVA YORK: mais do previsões apoiadas na matemática, investidores procuram um storytelling coerente para justificar investimentos / Spencer Platt/Getty Images

BOLSA DE NOVA YORK: mais do previsões apoiadas na matemática, investidores procuram um storytelling coerente para justificar investimentos / Spencer Platt/Getty Images

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Da Redação

Publicado em 15 de outubro de 2016 às 08h39.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h09.

Imagined Futures: Fictional Expectations and Capitalist Dynamics
Autor: Jens Beckert.
Editora: Harvard University Press. Páginas: 384
———-

David Cohen

Se causou controvérsia a escolha do músico Bob Dylan para ganhar o prêmio Nobel de Literatura, imagine se fosse o Nobel de Economia. Não é uma hipótese assim tão absurda, se estiverem certas as teses do sociólogo alemão Jens Beckert, diretor do Instituto Max Planck para o estudo de sociedades. De acordo com seu extraordinário livro mais recente, Imagined Futures: Fictional Expectations and Capitalist Dynamics (Futuros imaginados: expectativas ficcionais e a dinâmica do capitalismo), o sistema capitalista é uma obra de ficção – e para sobreviver depende de mecanismos semelhantes aos utilizados na literatura.

O ponto central do livro é que o capitalismo nasceu de uma ruptura no modo de lidar com o tempo. Em sociedades tradicionais, o tempo é cíclico – como apontou o filósofo e historiador das religiões Mircea Eliade, com o conceito de eterno retorno (Beckert cita premissa semelhante, no estudo de Pierre Bourdieu sobre uma sociedade tribal africana). Para pensadores da Idade Média, o tempo era finito: um dia chegaria ao fim.

Não foi só isso, é claro. As precondições para o surgimento do capitalismo incluem os direitos à propriedade, um Estado poderoso, a invenção do livro-caixa e da contabilidade, a liberação de mão de obra dos campos, a construção de infraestrutura… mas tudo isso é bem estudado, segundo Beckert. O que não é tão levado em conta é a mudança no modo como os atores econômicos se relacionam com o tempo.

Em vez do tempo circular, a sociedade ocidental passou a acreditar no tempo como uma flecha, orientada para o futuro. (As duas noções coexistem, mas predomina a ideia de que o futuro é construído, e será diferente do que foi o passado.)

O capitalismo é caracterizado por “uma crença no futuro, em vez de resignação a ele”, diz . Em nenhum lugar isso é mais claro do que no estudo da economia. Como afirma o sociólogo Andrew Abbott, “enquanto os sociólogos enxergam os eventos presentes como um resultado que emerge do passado, economistas raciocinam de trás para a frente a partir do futuro: decisões são explicadas pelo valor presente das recompensas de um futuro esperado.”

Os economistas assumem que as pessoas são racionais e suas ações são tomadas trazendo para o valor presente o bem-estar que proporcionarão no futuro. O próprio termo usado para descrever investimentos feitos no passado, “custos afundados” (sunk costs), significa que eles deveriam ser ignorados na tomada de decisão – só o que importa é o futuro.

A incerteza move o mundo

Isso muda tudo. Por definição, o futuro é aberto e incerto: contém oportunidades imprevisíveis e riscos incalculáveis. É por esse motivo que as bases da teoria econômica clássica são tão frágeis. Economistas comportamentais se esbaldam em demonstrar que os atores econômicos não são tão racionais como prevê o modelo teórico, mas sua crítica, segundo Beckert, ainda é insuficiente, porque eles buscam o erro nas limitações cognitivas do indivíduo, não na própria imprevisibilidade do futuro. Como afirmou o filósofo da ciência Karl Popper, a previsão só é possível em sistemas isolados, estáticos e cíclicos.

O economista britânico John Maynard Keynes fez várias considerações sobre a incerteza – seu “espírito animal” é uma forma de dizer que as empresas e pessoas não agem de forma totalmente racional, e sim movidas por desejos difíceis de explicar. Suas recomendações, no entanto, eram de que a incerteza deveria ser contida por políticas de estado.

Beckert defende o oposto. A incerteza, para ele, é a própria razão da existência do capitalismo. “Uma economia sem incerteza seria uma economia sem expectativas ficcionais, na qual os atores poderiam agir de forma completamente racional”, afirma. “Mas seria uma economia estática, sem novidade e sem tempo, em que tudo acontece de uma só vez.”

Em outras palavras: se tudo pudesse ser calculado, conforme o ideal de mercado perfeito, todos os valores seriam trazidos a valor presente e toda a vida estaria definida para todo o sempre. Não haveria espaço para mudança, portanto não haveria inovação. Estaríamos de novo no ambiente das sociedades que acreditam na repetição.

A incerteza não é um obstáculo a ultrapassar. Não é um incômodo a suportar. Ela é, para Beckert, a condição obrigatória para que haja jogo. Para usar uma comparação mais simples: se não houvesse incerteza, não haveria sentido em disputar cobrança de pênaltis, porque nenhum jogador erraria, e a seleção brasileira não teria conquistado a medalha de ouro nas Olimpíadas, por exemplo.

 A ficção cria a realidade

A incerteza a que Beckert se refere não é a situação em que um resultado desejado tem uma probabilidade qualquer de se realizar. Seguindo as pegadas do economista Frank Knight, no livro Risk, Uncertainty and Profit (Risco, incerteza e lucro), Beckert fala de uma incerteza que não permite sequer construir modelos de probabilidade para medi-la.

Num ambiente assim, como decidir que rumo de ação tomar? É aí que entra a ficção. As “expectativas ficcionais” que ele cita no livro são um contraponto às “expectativas racionais”, uma teoria desenvolvida nos anos 1960 e 1970.

O problema da teoria das expectativas racionais é que elas supõem uma realidade linear, em que os valores no futuro podem ser descontados no presente ignorando todas as contingências que podem surgir no caminho (no quinto ano de medicina, o estudante descobre que não gosta de lidar com doentes; quando a sua empresa está colhendo os primeiros resultados da rede de telefonia 3G, inventam a 4G; o seu vestido de gola alta saiu de moda).

A teoria assume que os erros ocorrem em distribuição normal e no cenário total eles se cancelam uns aos outros. Mas as bolhas mostram que os preços podem se desviar do valor de um bem durante longos períodos.

É por isso, diz Beckert, que as previsões dão tão errado. Cerca de 40 milhões de empresas são criadas por ano, e o mesmo número fecha as portas. A maior parte das fusões destrói valor. Os bancos falham em suas previsões sobre câmbio ou crescimento da economia. A IBM achava que não haveria mercado para mais que uma dúzia de computadores no mundo, e Bill Gates acreditava que uma memória de 640 kilobytes seria suficiente para qualquer um.

Mas criticar os oráculos porque as previsões não dão certo é não entender a natureza de seu serviço. A acurácia das previsões é secundária, diz Beckert. O que mais importa é a sua capacidade de convencer. Porque, mesmo em situações de incerteza, é preciso agir.

O verdadeiro papel de uma previsão, portanto, é criar uma imagem de futuro que possa ser compartilhada. Segundo Donald (atualmente Deirdree) McCloskey, até os modelos matemáticos usados por economistas são uma espécie de storytelling.

Por mais falhas que sejam, as previsões são imprescindíveis para a tomada de decisões. “Os atores econômicos precisam delas porque precisam agir de formas que não pareçam aleatórias, apesar da incerteza no futuro”, diz Beckert. Na maioria das vezes, a previsão faz as pessoas agirem de forma a cumprir a previsão. O segredo do capitalismo é criar profecias auto-realizáveis.

Um exemplo de profecia auto-realizada foi a crise da Ásia de 1997, quando os investidores acharam que os problemas na Tailândia demonstravam as dificuldades de toda a região. Pensando assim, eles sacaram fundos de vários países, como a Coreia do Sul, criando as dificuldades que haviam previsto.

Outro exemplo foi a formulação do termo Bric, para designar quatro países emergentes: Brasil, Rússia, Índia e China. Em retrospecto, as diferenças entre os quatro indicam que colocá-los em uma única categoria era um exagero – mas a história ajudou a canalizar investimentos para eles.

Segundo Keynes, o sucesso no capitalismo consiste em basear suas ações não nas suas expectativas, mas nas expectativas dos outros. Seu exemplo famoso é de um concurso de beleza em que você não tem de votar na concorrente que considera a mais bonita, e sim naquela que você acredita que os outros acham a mais bonita.

Para retomar uma analogia com o futebol, em 1978 o então técnico da seleção brasileira, Cláudio Coutinho, lançou no país o conceito do “ponto futuro”. A ideia era que você não devia tocar a bola para onde o companheiro estava, e sim para onde o companheiro iria se deslocar. O conceito hoje está totalmente disseminado: é uma imagem do futuro que guia a sua ação no presente.

Para que dê certo, é preciso treinar. É preciso que os jogadores  compartilhem a mesma visão de futuro. É este o papel das previsões. É a isso que Beckert se refere no título do livro.

O dinheiro e outras coisas imaginárias

Quando se pensa assim, percebe-se que a verdadeira concorrência no capitalismo se dá não tanto entre produtos, mas entre imagens de futuro – que se materializam nos produtos.

A tese de Beckert é que as imagens de futuro são a base para os quatro grandes blocos de sustentação da economia capitalista. O primeiro deles, dinheiro e crédito, são uma crença compartilhada: o dinheiro só funciona se as pessoas se convencerem de que aquele pedaço de papel pintado será aceito pelas outras. O segundo bloco são as diversas formas de investimento. Quase por definição, um investimento, seja a compra de bens de capital, uma aplicação financeira ou um investimento pessoal, se baseia numa crença no futuro.

O terceiro bloco é a inovação. Ela não pode ser explicada como otimização do capital investido, porque os resultados são imprevisíveis. Especialmente as inovações mais radicais – que são as com maior potencial de trazer lucros significativos – estão impregnadas de visões de como transformar o comportamento das pessoas.

O último bloco que sustenta o capitalismo é o consumo. Também ele é baseado em visões de futuro. Especialmente nas sociedades afluentes, as pessoas já não precisariam gastar tanto com sua subsistência. O consumo se torna, então, cada vez mais, o consumo de bens de valor simbólico. As expectativas ficcionais sobre os bens de consumo giram em torno das imagens e dos desejos que os produtos são capazes de provocar.

Por satisfazerem qualidades simbólicas, e não físicas, em tese não há limite para a expansão da demanda. Isso explica o crescente investimento em marketing das empresas: trata-se de um esforço para criar os significados sociais que emprestam valor aos produtos.

O capitalismo é assim tão frágil?

Beckert é um tipo raro de sociólogo – dos que se interessam por economia. Em livros anteriores, ele investigou como atribuímos valor aos produtos, comportamentos como cooperação e inovação; e escreveu uma história do direito de herança nos Estados Unidos, na França e na Alemanha.

A vantagem de sua “intromissão” no campo da economia é que ele traz referências mais amplas: além de Keynes, Marx, Joseph Schumpeter e Friedrich Hayek, Beckert aplica conceitos de Émile Durkheim (os objetos no mercado assumem características parecidas com os totens de religiões ancestrais), Immanuel Kant (a impossibilidade de obter conhecimento direto do mundo porque só podemos interpretar as experiências a partir de conhecimentos formulados a priori), Michel Foucault, Max Weber, Karl Popper…

Segundo Beckert, o capitalismo é uma espécie de castelo de cartas, que repousa sobre nossa vontade de acreditar em suas promessas. Mas uma conclusão curiosa que se pode extrair é que a alternativa ao capitalismo não é, como se supõe há mais de um século, alguma das versões do socialismo. Ao contrário, o socialismo é uma doutrina ainda mais atrelada a uma imagem de futuro. Mesmo sua vitória seria uma outra forma de capitalismo.

A grande oposição ao capitalismo talvez seja o ambientalismo – a noção de que o presente deve ser preservado, de que o melhor mundo é aquele que estamos perdendo.

Esta batalha, porém, não será travada com revoluções. Se as teses de Beckert estiverem certas, a única forma de o capitalismo acabar é ele ser vencido pelo cansaço. É as pessoas desistirem de imaginar um futuro melhor.

Dificilmente algo assim vai acontecer. Não enquanto houver pessoas ambiciosas, sonhadoras, inquietas. Não enquanto houver artistas… como Bob Dylan, por exemplo.

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