Paulo Guedes: figura carimbada do círculo financeiro, economista é um camaleão da oratória e ajusta com facilidade o tom e a forma de seu discurso (Sergio Moraes/Reuters)
Reuters
Publicado em 24 de outubro de 2018 às 17h41.
Brasília - Com apostas certeiras sobre a economia que lhe deram fama e fortuna no mercado financeiro, o economista Paulo Guedes, guru do candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL), lançou suas cartas sobre o cenário eleitoral ainda em 2016, quando avaliou que um outsider que encarnasse a volta à ordem num país destroçado por denúncias de corrupção poderia se sagrar vencedor na corrida ao Palácio do Planalto.
O nome que lhe veio à mente para representar essa alternativa, contudo, não foi do capitão da reserva, mas do apresentador global Luciano Huck, que passou a flertar com a possibilidade de sair candidato em meio a inúmeras conversas com Guedes.
"Tudo que aconteceu do anti-establishment, dessa negação da política tradicional, o Paulo antecipou isso antes de Trump ser eleito, antes de o Doria ser eleito em São Paulo", disse Huck, que atribui ao economista a responsabilidade por destravar "um processo muito rico" pelo qual disse seguir passando.
Enquanto o apresentador da TV Globo somava novas conexões e adentrava o terreno da política, a articulação por uma chapa encabeçada por Bolsonaro também ganhava corpo, mas ainda sem um apoio contundente pelo lado econômico.
Quando o também liberal Gustavo Franco, economista que presidiu o Banco Central e participou da criação do Plano Real, anunciou que estava deixando o PSDB para ingressar no Partido Novo, em setembro do ano passado, dois apoiadores de Bolsonaro se atentaram para o reforço que uma investida do tipo daria ao time do capitão.
O empresário Winston Ling - da família sino-brasileira dona da holding Évora, fornecedora de bens intermediários para indústria de consumo, e do Instituto Ling, que concede bolsas de estudo no exterior - foi quem capitaneou a iniciativa, sugerindo a Bia Kicis, amiga de Bolsonaro, que propusessem um encontro entre o deputado e Guedes. Nenhum dos dois conhecia o economista pessoalmente, mas foram fisgados pelos artigos que ele vinha escrevendo, com críticas vorazes à velha polarização entre PT e PSDB, que teria aberto o flanco à direita para a ascensão de Bolsonaro.
"No primeiro encontro Jair gostou muito dele", afirmou Bia, dizendo enxergar entre eles uma franqueza em comum. "Eu tinha certeza que o Jair para estourar, para crescer como ele cresceu, ele precisaria que os liberais estivessem com ele. Os conservadores ele já tinha todos, mas precisava também do aval dos liberais", acrescentou ela, recém-eleita deputada federal pelo PRP com o slogan "a federal do Bolsonaro no DF".
A reunião ocorreu num hotel na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, na manhã de 13 de novembro de 2017. Mas Guedes só migrou para a campanha de Bolsonaro com a desistência de Huck de participar das eleições, no início deste ano.
Defensor do Estado mínimo, ele teve como desafio alinhar o discurso do candidato à bandeira liberal, diametralmente oposta à empunhada por Bolsonaro em décadas como parlamentar. No Congresso, o deputado votou contra o fim do monopólio da União no petróleo e nas telecomunicações, também se posicionando contra medidas de ajuste que cortaram benefícios ao funcionalismo.
Principal fiador da guinada, Guedes, de 69 anos, levou à campanha o peso de um Ph.D. na Universidade de Chicago, considerada o templo mundial do liberalismo, e o plano de promover radicais reformas econômicas, incluindo a tributária e da Previdência, além de privatizações para quitar parte da dívida pública brasileira.
Atual CEO da Bozano Investimentos, o economista também carrega no currículo passagens como professor pela PUC, FGV e Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no Rio, além de uma temporada na Universidade do Chile, sob a ditadura de Augusto Pinochet no início dos anos 1980.
Fora da academia, ele já presidiu o Ibmec e investiu em diversas empresas de educação quando à frente da BR Investimentos, incluindo a Abril Educação, atual Somos Educação, e a Anima.
Figura carimbada do círculo financeiro, Guedes é um camaleão da oratória e ajusta com facilidade o tom e a forma de seu discurso. Com um semblante sério, que ele cerra quando contrariado, mas um jeitão coloquial e pronunciado gosto pela conversa, ele não tarda em ganhar a atenção daqueles a quem se dirige. Com isso, passa longe do figurino de tecnocrata que não raro costuma ser vestido por economistas renomados no país.
Num almoço em Brasília no fim de agosto, ele alternou momentos de análise sociológica, citando Jean-Jacques Rousseau e John Locke, com piadas e metáforas para defender a cartilha liberal.
Ao variado público, que incluía desde membros do movimento conservador católico Regnum Christi a uma técnica do Tesouro Nacional, ele recorreu à figura folclórica de Saci Pererê para criticar o orientação social-democrata que, a seu ver, foi adotada por todos os governos desde a redemocratização.
"É só perna esquerda, é um Saci Pererê que só pula com a perninha esquerda", disse ele, arrancando risos de uma plateia com cerca de 40 presentes. "Se só pula com uma perna, como é que vai correr, como é que o país vai sair do lugar?", completou.
Sobre o crescimento de Bolsonaro nas pesquisas a despeito da sua ausência em debates, avaliou que o desejo da grande imprensa parecia ser de colocá-lo num cercadinho, mas que o povo se identificava com sua autenticidade.
"As pessoas falam assim: qual é a fórmula exata de Pi? Como é que você calcula a área de um círculo? O que você acha da morte de Mao Tsé-Tung? Espera aí, eu (Bolsonaro) defendo princípios e valores, está cheio de cara que sabe responder isso tudo e está destruindo o país. E eu vou chamar pessoas para me ajudar. Se errar, troco as pessoas", afirmou Guedes, em nome do candidato do PSL.
De certa maneira, o receituário foi seguido à risca numa campanha marcada pelo posicionamento contra o sistema e, sobretudo, contra o PT. Em diversos momentos, Bolsonaro saiu pela tangente quando perguntado sobre economia, delegando a Guedes a tarefa de responder pela área. Por sua vez, o economista seguiu reforçando a conversão do candidato ao liberalismo, principalmente em encontros fechados com investidores e agentes do mercado.
"Ele conquista 100 por cento", opinou o gestor da RCF Capital e dono da Granja Faria, Ricardo Faria, que foi a três encontros com Guedes organizados por bancos de investimento neste ano. "A gente tinha uma dúvida se o Paulo de fato estava engajado no projeto. Eu mesmo fiz essa pergunta duas vezes para ele: Paulo, vai ter paciência?", revelou Faria, que, no entanto, se disse convencido pelo fato de o economista demonstrar tranquilidade quanto ao alinhamento recente de Bolsonaro às ideias do livre mercado, em contraposição ao que o empresário teme ser "de novo um governo de esquerda com pensamento errado, com mais quatro anos de um Estado maior".
Apesar das posições estatizantes e corporativistas expressas por Bolsonaro no passado, Guedes costuma minimizar as chances de os dois entrarem em rota de colisão, afirmando que o candidato à Presidência aprende rápido. Também não deixa de aproveitar o ensejo para cutucar economistas que integraram o governo de José Sarney, reacendendo uma rixa antiga.
"Do Plano Cruzado até o Plano Real, que foi aprender a usar a política monetária, levou oito anos. Do Plano Cruzado até o câmbio flexível, levou 12 anos --e sempre em crise. Hoje os economistas tucanos fazem pose de 'somos excelentes e temos as soluções'. Não foi nada assim. Não foi isso que eu vivi. O que eu vivi com eles foi o contrário", afirmou ele, sobre o grupo formado por profissionais como Persio Arida, Luiz Carlos Mendonça de Barros e André Lara Resende.
"Se esse pessoal todo levou 20 anos para chegar no lugar certo, por que o Jair não pode levar 6 meses, 8 meses, pra avançar nessa direção? Minha brincadeira é que ele está aprendendo muito mais rápido do que essa turma toda. Mesmo sabendo que ele gosta de matar aula pra caçar voto", arrematou.
Um dos fundadores do Pactual, Guedes bateu de frente com os economistas de Sarney quando o atual BTG Pactual ainda buscava autorização do governo para se transformar num banco de investimento, o que demorou a acontecer em função da forte indisposição entre as partes.
Ácido opositor do controle inflacionário proposto pelo Plano Cruzado, Guedes foi apelidado de Beato Salu pelo grupo que então integrava a equipe econômica, em referência a um personagem da novela "Roque Santeiro", que profetizava o fim do mundo. Para revidar a alcunha com a qual fica bravo até hoje, passou a chamá-los de "caçadores de boi no pasto".
Com o tabelamento de preços em 1986, houve forte aquecimento do consumo e, ao mesmo tempo, desincentivo ao abastecimento. O governo chegou a mobilizar a polícia para confiscar bois no pasto, alegando que os criadores eram responsáveis pelo sumiço da carne nas prateleiras. Com o tempo, caçar boi no pasto virou sinônimo de buscar soluções de fachada para problemas econômicos mais profundos. E a aposta de Guedes de que o Cruzado faria água rendeu gordos lucros ao Pactual.
"É um economista macro que eu jamais conheci outro igual. Ele sabe. Mexeu ali vai acontecer isso aqui, mexeu lá vai acontecer isso ali. A gente sempre soube se posicionar basicamente na visão dele e acho que grande parte do sucesso do Pactual foi com essa visão", afirmou o financista Luiz Cezar Fernandes, que convidou Guedes a fundar a instituição que nasceu como distribuidora de títulos em 1983.
Para Luiz Cezar, o guru de Bolsonaro não irá jogar a toalha no primeiro entrevero com o capitão da reserva, temor que tem sido levantado por parte do mercado diante do gênio forte de ambos.
"Diferente de algum economista muito acadêmico, ele conhece a vida, ele ganhou dinheiro, ele soube construir empresas, criou todo esse conceito de educação no Brasil, um dos primeiros investimentos em educação foi ele que viu. Então ele é um visionário. Independentemente de não ter trabalhado no governo, ele já esteve sentindo o lado real da economia, apanhando e batendo. É verdade que no governo é tudo diferente, porém eu acho que ele tem capacidade de sobreviver."
Não é como vê uma ala de economistas, que tem apontado contradições em discursos mais recentes do líder nas pesquisas de intenção de voto. Bolsonaro já baixou o tom em relação à urgência da reforma da Previdência, vista como imprescindível por Guedes, e à possibilidade de privatizar estatais. "Eu tenho dúvidas se é ingênuo ou cínico (crer num governo Bolsonaro liberal)", disse o economista e ex-diretor do BC Alexandre Schwartsman.
"Parece que a gente está acreditando em um conto de fadas que não é real. Não é uma questão de personalidade, é uma questão de crenças. Todas as crenças em particular do Bolsonaro não indicam que seja um programa liberal, mas mais importante do que isso é o seguinte: você vendeu esse programa liberal para a população? Não. Esse é o ponto. Como é que faz para fazer com que eles cumpram?", questionou Schwartsman, criticando o endosso do mercado ao candidato, apesar da superficialidade do debate econômico e das propostas apresentadas.
Depois de se ver no centro de uma polêmica sobre a CPMF, o próprio Guedes resolveu submergir. Após circularem notícias na imprensa de que estaria aventando reviver o impopular tributo que incide sobre movimentações financeiras, ele chegou a afirmar que, na verdade, seu time estudava um imposto nesses moldes que viria em substituição a outros, dentro de uma ampla reestruturação tributária.
Bolsonaro, entretanto, bradou diversas vezes que a CPMF não estaria sobre a mesa e que Guedes teria cometido um "ato falho". Investigação aberta pela Procuradoria da República no DF contra o economista também ajudou na sua decisão de seguir, por ora, longe dos holofotes. A suspeita do MPF-DF é de que Guedes teria cometido crimes em operações com fundos de pensão de empresas estatais.
O economista negou quaisquer irregularidades e apontou, via advogados, "perplexidade" com uma investigação às vésperas das eleições feita em cima de "relatório manifestamente mentiroso" da Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc), acrescentando que o investimento questionado não implicou qualquer prejuízo aos fundos de pensão.
Por enquanto, as dissonâncias não foram suficientes para azedar o humor dos mercados que, com a inércia de Geraldo Alckmin (PSDB) nas pesquisas, já tinham abraçado de vez a candidatura do parlamentar.
Desde que Bolsonaro terminou o primeiro turno com larga vantagem sobre o petista Fernando Haddad, o dólar e a curva de juros de longo prazo seguiram em queda até atingirem nesta semana seu menor valor desde maio, num rali chamado pelo Citi de "BullSonaro".
Caso vença as eleições, Bolsonaro já disse que caberá a Guedes o comando de um superministério da Economia, que reunirá as pastas da Fazenda, do Planejamento e da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC), assim como a Secretaria Executiva do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI).
Segundo Luiz Philippe de Orleans e Bragança, tetraneto de d. Pedro 2º e que foi eleito deputado federal por São Paulo pelo mesmo partido de Bolsonaro, Guedes está mobilizando especialistas "do mais alto quilate" em grupos de trabalho para estruturar as propostas econômicas. Ele próprio integra uma dessas células, sobre relações exteriores, e defendeu que as medidas devem sim ir adiante, ainda que numa velocidade distinta da desejada pelo mercado.
"Eu vejo que um (Guedes) está apontando o que deve ser feito e outro (Bolsonaro) está fazendo um cerceamento, um jeito de ser encaminhado. Às vezes a coisa não está popularmente bem digerida e pode afetar timing do processo. Agora o casamento do objetivo é total", disse o príncipe, que chegou a ser cogitado como vice para a chapa de Bolsonaro.
O presidente do Sebrae, Guilherme Afif, vê firmeza nas posições liberais de Guedes, que foi o responsável por elaborar seu programa econômico quando concorreu à Presidência em 1989, um projeto que considera "mais atual do que nunca".
Se naquela época a plataforma não foi suficiente para alavancar a candidatura de Afif, que terminou a corrida em sexto lugar, desta vez há na avaliação do empresário um clamor mais forte por um Estado menos centralizador, mas capitalizado o suficiente para garantir recursos em áreas-chave, notadamente educação, saúde e segurança.
"Mas o importante não é só aceitação do mercado, é o convencimento do Congresso. Esse é o grande desafio, o desafio político", ponderou. "Uma andorinha não faz verão", completou Afif sobre o que vem sendo um fulgurante voo de Guedes, pelo menos até agora.