Economia

Análise: O pacote fiscal passou. Mas ficou o mal-estar

Governo ainda precisa aprovar o orçamento do próximo ano, que incorpora R$178 bilhões em receitas incertas para o cumprimento da meta fiscal

Praça dos Três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário precisam entender a crise de confiança que se instalou no país e tomar as medidas necessárias para tornar sustentável o ritmo de crescimento da dívida pública  (Leandro Fonseca)

Praça dos Três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário precisam entender a crise de confiança que se instalou no país e tomar as medidas necessárias para tornar sustentável o ritmo de crescimento da dívida pública (Leandro Fonseca)

Publicado em 23 de dezembro de 2024 às 15h43.

O governo aprovou - quase - tudo o que dizia respeito ao aguardado ajuste fiscal (falta um projeto que trata da idade mínima para militares passarem à reserva). E, após tantos holofotes, restam dúvidas: o que ele significou e o que vem pela frente?

Cortar gastos é parte de uma estratégia maior, a de zerar o déficit público, como ambicionou o Ministério da Fazenda ao elaborar o novo arcabouço fiscal.

O resultado das contas públicas é tão relevante porque, ao fim, o que importa para este e para os próximos anos é como se comporta a trajetória da dívida em relação ao PIB. Como lembrou Isaac Sidney, presidente da Febraban, à EXAME, o destino do quadro fiscal é um só: a interrupção da trajetória de alta da dívida.

A dívida em relação ao PIB saiu de 56,5% em 2014 para os atuais 77,7%.

Pois bem. A potência fiscal em dois anos (2025 e 2026) do pacote de corte de gastos aprovado pelo Congresso é de 69,8 bilhões, segundo o Ministério da Fazenda -- pouco menos que os R$ 71,9 bilhões estimados inicialmente. O mercado, por outro lado, tem estimativas mais conservadoras. Os mais otimistas esperam até R$ 45 bilhões de economia.

E é nesse sentido que 2024 se encerra permeado de incertezas. E incrivelmente semelhante ao ano passado.

Em primeiro lugar, o corte de gastos, embora importantes para sinalizar a disposição de reduzir o ritmo de crescimento de despesas do governo, é tímido para fazer frente à ambição de zerar o déficit público a partir de 2025, especialmente porque todas as contas se amparam em expectativas de receitas ou redução de desembolsos difíceis de se materializarem.

Do outro lado da equação, o das receitas, falta aprovar o Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) de 2025. Nele, estima-se uma arrecadação de R$178 bilhões em receitas incertas para cumprir a meta fiscal.

Para os não-iniciados em matéria fiscal, a conta hoje está assim: se o governo conseguir arrecadar tudo o que projetou, ainda assim haveria um déficit primário de R$40,4 bilhões. Esse déficit, porém, inclui os precatórios, que são excluídos do cálculo do resultado primário por decisão de 2023 do Supremo Tribunal Federal (STF).

Sem incluir o pagamento dos precatórios para os propósitos do resultado primário, haveria um superávit de R$ 3,7 bilhões.

E as receitas?

Dos R$ 178 bilhões em receitas que o governo diz esperar, o mercado avalia ser factível materializar um terço disso. Ou seja, perto de R$ 60 bilhões dos R$ 178 bilhões. É a conta, por exemplo, do BTG Pactual (do mesmo grupo de controle da EXAME).

Em relatório a clientes, o economista-chefe do BTG, Mansueto Almeida, e sua equipe preveem que o resultado primário do governo no próximo ano será um déficit de R$ 100 bilhões, que diminui para R$ 56 bilhões com a exclusão das despesas com precatórios. No Santander, a economista-chefe, Ana Paula Vescovi, estima um déficit de 1% do PIB, em linha com a projeção do BTG.

Almeida avalia que o governo não conseguirá aprovar no Congresso o projeto de lei que eleva em 1 ponto percentual a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e de 15% para 20% a incidência de Imposto de Renda sobre os Juros sobre Capital Próprio (JCP). Os parlamentares, imersos em votações da reforma tributária, têm resistido em aprovar propostas que impliquem aumento de carga tributária.

Além disso, a projeção do economista considera que o governo não conseguirá arrecadar recursos com a recuperação de créditos inscritos na dívida ativa e com julgamentos do Carf.

No caso das transações tributárias, a expectativa do governo é arrecadar R$ 57 bilhões.  Almeida estima que será possível conseguir R$ 25 bilhões.

A tabela abaixo representa essas discrepâncias:

Pente-fino necessário, mas incerto

A equipe econômica também sinalizou disposição em reduzir em R$ 26 bilhões despesas com o pagamento de benefícios sociais com um pente-fino.

Para Almeida, medidas dessa natureza são mais incertas, já que sua implementação depende de um critério objetivo de avalição, apoio político para execução, e apoio jurídico para validação.

Essa dificuldade também se materializa na concessão de benefícios. Desde julho, houve uma redução de 180 mil benefícios de auxílio-doença, o que corresponde a uma economia anualizada de R$4 bilhões.

Contudo, a fila de benefícios em análise pelo INSS aumentou em 450 mil requerimentos, o que eleva a incerteza sobre a sustentabilidade do ajuste executado até o momento.

Risco fiscal elevado para 2025

Tudo aponta, portanto, para um cenário de:

  • forte crescimento dos gastos obrigatórios,
  • incerteza em relação à economia a ser gerada pelo pacote de corte de gastos e pelas medidas de pente-fino,
  • elevada dependência de fontes incertas de receitas

Isso deverá manter o risco fiscal elevado para o próximo ano. E as tentações para se driblar as regras fiscais costumam se exacerbar em momentos assim.

“Tentativas de criar novas exceções à meta de primário minam a credibilidade do arcabouço. Em 2024, os gastos extraordinários com o Rio Grande do Sul não foram contabilizados. Para o próximo ano, R$44 bilhões sem precatórios também estarão fora da conta. Novas possíveis exceções incluem os gastos com o programa Pé de Meia e Auxílio Gás”, afirmou Almeida, do BTG, no relatório distribuído aos clientes.

Some-se a esse cenário a proximidade das próximas eleições presidenciais de 2026. No próximo ano, o Congresso discutirá a proposta do governo de aumentar a isenção de IR para pessoas com renda mensal de R$5.000, medida com claro condão eleitoral.

A ideia do governo é compensar a perda de arrecadação com a criação de uma alíquota efetiva mínima de 10% para contribuintes de alta renda. O temor de Almeida é de desidratação da medida que compense essa perda de arrecadação durante a tramitação no Legislativo.

“Existe o risco de a compensação ser desidratada durante a tramitação no Congresso, deixando apenas o efeito negativo da nova isenção sobre as contas públicas", afirmou. "Adicionalmente, com a provável desaceleração do crescimento, aumenta o risco do surgimento de novas medidas de estímulo.”

Tudo isto posto, o próximo ano será de turbulência. Cabe ao governo, ao Congresso e ao Judiciário entender a crise de confiança que se instalou no país e tomar as medidas necessárias para tornar sustentável o ritmo de crescimento da dívida pública.

A crise de confiança ficou evidente com a disparada no preço do dólar, cotado acima de R$ 6, com a queda do Ibovespa e o aumento dos juros futuros. Todos esses sinais indicam retração de investimentos, que batem na geração de empregos, além de pressionar a inflação, o imposto mais perverso que recai sobre os mais pobres.

O pacote fiscal passou. Mas ficou o mal-estar.

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