Economia

A descida ao inferno dos paraísos fiscais

Livro revela os bastidores do Panama Papers, vazamento que expôs os investimentos secretos de políticos, bancos e multinacionais no sistema offshore

PANAMA PAPERS:  o diretor norte-americano Steven Soderbergh já comprou os direitos da obra recém-lançada para produzir em breve um filme sobre o escândalo  / Rodrigo Arangua/Getty Images (Rodrigo Arangua/Getty Images)

PANAMA PAPERS: o diretor norte-americano Steven Soderbergh já comprou os direitos da obra recém-lançada para produzir em breve um filme sobre o escândalo / Rodrigo Arangua/Getty Images (Rodrigo Arangua/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 27 de janeiro de 2018 às 08h16.

Última atualização em 27 de janeiro de 2018 às 10h51.

Secrecy World: Inside the Panama Papers Investigation of Illicit Money Networks and the Global Elite (“O Mundo do Sigilo: Dentro da Investigação dos Papéis do Panamá sobre as Redes de Dinheiro Ilícitas e a Elite Global”, numa tradução livre)

Autor: Jake Bernstein

Editora: Henry Holt

Páginas: 352

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Durante décadas, especialistas e operadores do mercado financeiro reconheceram o sistema paralelo offshore como uma opção discreta e segura de investimento. No mundo offshore, pessoas físicas, bancos e multinacionais podem abrir, por meio de uma empresa fictícia, uma conta secreta em países conhecidos como paraísos fiscais – famosos por oferecer tarifas baixas de serviços, zero de tributação e sigilo absoluto das movimentações financeiras – para ali investir ou apenas esconder o dinheiro. Tudo isso sem burocracia nem risco de desembolsar os impostos que seriam cobrados no país de origem. Esse modelo de investimento também se tornou atraente para pessoas físicas interessadas em proteger seu patrimônio de dívidas, partilha de bens, pensões alimentícias e outros riscos a que estariam submetidos ao utilizar o sistema financeiro tradicional.

Nos últimos cinco anos, porém, a suposta segurança e sigilo impenetráveis do sistema offshore global começaram a ruir após uma série de reportagens investigativas que mostraram, a partir de documentos obtidos, como funciona essa engrenagem financeira subterrânea. Em abril de 2016 veio o golpe fatal, com o vazamento de 11,5 milhões de documentos da Mossack Fonseca, escritório de advocacia panamenho especializado em criar empresas fictícias em paraísos fiscais. Conhecido como Panama Papers, o vazamento – até então o maior da história, obtido por meio de um notável trabalho de apuração feito por um consórcio internacional formado por jornalistas de mais de 70 países – expôs em detalhes como bancos, empresas e pessoas físicas alimentam o sistema financeiro clandestino que, no total, movimenta 7,6 trilhões de dólares em paraísos fiscais, o equivalente a 8% da riqueza financeira global. O montante é responsável por cerca de 190 bilhões de dólares por ano em impostos que deixam de ser utilizados pelos países de origem desses investidores.

Em Secrecy World: Inside the Panama Papers Investigation of Illicit Money Networks and the Global Elite (“O Mundo do Sigilo: Dentro da Investigação dos Papéis do Panamá sobre as Redes de Dinheiro Ilícitas e a Elite Global”, numa tradução livre), livro lançado recentemente, o jornalista americano Jake Bernstein mostra os bastidores do vazamento de documentos da Mossack Fonseca e mergulha na engrenagem que movimenta os paraísos fiscais. O livro, repleto de revelações surpreendentes, expõe como a maioria dos países supostamente vítimas da evasão fiscal desses investimentos offshore não só pouco fizeram nas últimas décadas para tornar esse sistema paralelo mais transparente como se aproveitaram de suas facilidades.

A Mossack Fonseca é um exemplo. Criada em 1977 por dois sócios, Jürgen Mossack (de origem alemã) e Ramón Fonseca, a firma panamenha cresceu no negócio offshore a ponto de contabilizar, antes do vazamento de seus dados, um cartel de 210 000 empresas fictícias sob seu comando, administradas por 6 000 funcionários em 42 escritórios sediados em paraísos fiscais, das Ilhas Virgens Britânicas à minúscula ilha de Niue, na Oceania. Durante esse período, a firma panamenha se especializou em serviços rápidos e baratos, o que a tornou conhecida no meio como “o McDonald’s dos paraísos fiscais”. Na prática, a Mossfon – como é chamada no setor – se dispõe a abrir e administrar empresas anônimas, trusts e fundações. Dependendo da legislação do paraíso fiscal, a firma também oferece ações ao portador, para manter o anonimato do investidor. Por 100 dólares de taxa, um funcionário da Mossfon pode ser registrado como “diretor” que controla a empresa fictícia, assegurando nova camada de sigilo sobre o real dono do dinheiro. Apenas uma secretária da Mossfon, Adelina Mercedes Chavarria de Estribi, aparece como diretora de mais de 27 000 companhias panamenhas registradas pela Mossfon.

Políticos em apuros

O vazamento dos Panama Papers causou na época um terremoto no mundo político e financeiro. O material era composto de um mega-arquivo de 2,6 terabytes, incluindo dados de contas, trocas de e-mails e registros de transferências de milhares de empresas offshore operadas pela firma panamenha durante 40 anos. Os documentos mencionam pelo menos 12 ex e atuais chefes de Estado ou de governo, todos com contas em paraísos fiscais, além de uma extensa relação de 143 nomes de políticos, familiares ou pessoas próximas ligadas a contas offshore. A lista vai do presidente argentino Mauricio Macri ao cunhado presidente chinês Xi Jinping, passando por amigos do peito do presidente russo Vladimir Putin e assessores do presidente americano Donald Trump. Dois líderes de governo com contas offshore – o primeiro-ministro islandês, Sigmundur Gunnlaugsson, e o premiê paquistanês Muhammad Nawaz Sharif – acabaram perdendo o cargo após o vazamento.

A relação inclui ainda artistas, megaempresários e o pai do craque argentino Leonel Messi. Não é ilegal manter contas em paraísos fiscais. O maior atrativo desse segmento é justamente a certeza de fugir do longo braço do Fisco. Com o crescimento da economia mundial e o avanço da globalização, os paraísos fiscais tornaram-se um porto ainda mais seguro. Bernstein observa que a riqueza privada mundial cresceu 36% em seis anos – pulou de 121,8 trilhões de dólares em 2010 para 166,5 trilhões de dólares em 2016. Um estudo recente encomendado por três nações escandinavas, citado pelo autor, aponta que a evasão fiscal entre a população em geral, os que fazem de tudo para fugir dos impostos, costuma girar em torno de 3% dos contribuintes. Porém, entre os supermilionários – os 0,01% que detêm ao menos 40 milhões de dólares em bens nesses países –, cerca de 30% recorrem a meios legais, como os oferecidos pelo sistema offshore, para fugir da mordida do leão. A facilidade com que a riqueza é movimentada nos paraísos fiscais é apontada por Bernstein como uma das causas da desigualdade social.

O problema é que, à parte a evasão fiscal, a engrenagem do mundo offshore também é amplamente utilizada para lavar dinheiro obtido de forma ilícita, seja por corrupção, tráfico de drogas, redes de prostituição, venda de armas, desvios de fundos de empresas ou de governos. A Operação Lava-Jato, por exemplo, detectou mais de 10.000 empresas fictícias com sede em paraísos fiscais envolvidas no megaesquema de corrupção brasileiro. Só em bancos suíços foram localizados 1,1 bilhão de dólares. De acordo com estimativa do Parlamento Europeu, a lavagem de dinheiro corresponde a 5% do PIB global, movimentando entre 1,6 e 2,2 trilhões de dólares por ano. E aí reside a grande questão do livro: como diferenciar os que usam os paraísos fiscais apenas para proteger seu patrimônio e os que utilizam esse sistema financeiro paralelo para lavar dinheiro fruto de atividades criminosas?

Esforço conjunto

A discussão permeia a leitura da obra. A rigor, Bernstein desenvolve sua narrativa em torno de duas histórias interligadas: a de como funciona a engrenagem financeira dos paraísos fiscais e a forma pela qual o gigantesco volume de dados vazados da Mossfon foi organizado e esmiuçado. Os Panama Papers são resultado da maior investigação jornalística coletiva já feita, envolvendo 376 repórteres (entre eles, Bernstein) de 109 veículos em 76 países, sob coordenação do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês), entidade sem fins lucrativos com sede em Washington. Do Brasil, participaram jornalistas do portal UOL, do jornal O Estado de S.Paulo e da RedeTV. O esforço colaborativo rendeu um Prêmio Pulitzer de Jornalismo, o mais importante dos Estados Unidos, na categoria Reportagem Investigativa.

O trabalho de cruzar e hierarquizar as informações levou seis meses e contou com a ajuda de especialistas em criptografia, software avançados de buscas e visualização de gráficos para colocar numa mesma base de dados documentos em PDF, e-mails, registros de transferências de dinheiro e milhares de arquivos com dados de empresas administradas pela Mossfon. Foi como montar um quebra-cabeças, pois as informações sobre os donos das contas nem sempre apareciam nos registros.

Pelo volume de material processado, a apuração até que foi rápida. Isso porque o ICIJ já havia publicado outras quatro investigações com jornalistas de vários países sobre o modus operandi dos paraísos fiscais. A primeira delas, divulgada em abril de 2013, envolveu 86 repórteres investigativos de 46 países. O material – dados de duas empresas que administram contas em paraísos fiscais, uma das Ilhas Virgens Britânicas e outra de Cingapura, sem ligação entre si – havia sido obtido pelo diretor do ICIJ, o jornalista irlandês Gerard Ryle. Batizado de “Offshore Leaks”, o pacote consistia de 2,5 milhões de arquivos em CDs, com cerca de 260 gigabytes de informações sobre proprietários e beneficiários das contas, transferências de dinheiro, dados de incorporações e provas de atividades criminosas de ricos e poderosos da Rússia, África do Sul, Estados Unidos, Filipinas e países africanos, entre outros.

A divulgação causou impacto e desconforto no sistema financeiro global. O extenso material ainda rendeu outras três reportagens segmentadas nos anos seguintes: “China Leaks”, mostrando a teia de ligações de empresas de Hong Kong e do continente chinês com empresas offshore; “Lux Leaks” (sobre operações em Luxemburgo, um dos paraísos fiscais mais buscados por investidores e empresas europeias); e “Swiss Leaks”, com revelações nada auspiciosas sobre o lendário sigilo do sistema bancário suíço. Foi justamente o impacto causado pela repercussão das reportagens que levou uma fonte, cuja identidade jamais foi revelada, a procurar Bastian Obermayer e Frederik Obermaier, repórteres do jornal alemão Süddeutsche Zeitung, de Munique, e oferecer o banco de dados da Mossack Fonseca. O volume de informações era tão grande que o jornal desistiu de apurar sozinho seu conteúdo, recorrendo ao ICIJ.

As inúmeras barreiras tecnológicas e práticas para depurar um material extenso e complexo, além das dificuldades de tocar em sigilo um projeto com repórteres espalhados pelo mundo inteiro – incluindo pressões dos veículos de vários países, que ameaçavam furar o embargo de publicação, marcado para 4 de abril de 2016 –, ganham contornos de uma epopeia pela narrativa do autor. Um dos momentos mais tensos envolvendo a investigação coletiva ocorreu em janeiro, três meses antes da data limite de divulgação do material. O alerta veio de São Paulo, quando a Polícia Federal brasileira, na esteira de uma das fases da Operação Lava Jato, fez uma batida no escritório da Mossack Fonseca na capital paulista para colher informações sobre a transferência de dinheiro para paraísos fiscais por parte de envolvidos nos esquemas de corrupção da Odebrecht e da Petrobrás, por meio de 107 empresas administradas pela firma panamenha. Apesar da repercussão mundial da operação, os veículos envolvidos no consórcio supervisionado pelo ICIJ mantiveram a discrição em relação ao verdadeiro poder de fogo da Mossfon.

A participação brasileira no livro se resume basicamente a esse caso. Na época em que os documentos da Mossfon foram oficialmente divulgados, porém, os jornalistas do braço brasileiro do consórcio revelaram que políticos do PDT, PMDB, PP, PSB, PDS e PTB apareciam entre os beneficiários de contas offshore. Ente eles, o deputado federal Newton Cardoso Jr (PMDB-MG), o ex-ministro da Fazenda Delfim Netto, o ex-deputados Joao Lyra (PSD-AL) e Vadão Gomes (PP-SP), o ex-presidente do PSDB Sergio Guerra, morto em 2014, e parentes de políticos, como Luciano Lobão, filho do senador Edison Lobão (PMDB).

De Putin a Trump

Mesmo lidando com uma vasta gama de personalidades, esquemas de transferências e implicações políticas e financeiras provocados pelo vazamento, Bernstein – detentor de dois Prêmios Pulitzer – mantém uma narrativa de fôlego e ainda consegue dar destaque a temas pontuais essenciais para entender o mundo offshore. Dois deles merecem menção: os bancos e as multinacionais. De acordo com os documentos revelados, mais de 500 bancos registraram cerca de 15 600 empresas fictícias apenas com a Mossfon – o que dá uma ideia da sinergia do sistema bancário com o mundo offshore. No livro, UBS, Credit Suisse e duas unidades do HSBC aparecem entre os principais bancos envolvidos com a firma panamenha. A justificativa oficial é sempre a defesa dos interesses do cliente em obter um investimento rentável. De fato, não há ilegalidade nesse tipo de operação. Mas o que fica claro é que, na hora de movimentar e investir largas somas de fundos, os bancos não se mostravam tão preocupados com a origem do dinheiro. Documentos vazados indicam que o HSBC lavou entre 60% e 70% do dinheiro ilícito dos carteis de drogas mexicanos.

As grandes corporações também aparecem no livro como clientes fiéis dos serviços da Mossfom. Segundo Bernstein, as multinacionais americanas desviam o equivalente a 70 bilhões de dólares por ano em impostos para paraísos fiscais. Boa parte desse dinheiro é transferido de forma legal, por meio de um complexo esquema que permite a multinacionais evitar pagar impostos nos países onde fizeram negócios, por meio de seguidas transferências de recursos no mundo offshore até se obter a isenção.

Bernstein dedicou ainda um capítulo inteiro ao presidente russo Vladimir Putin, que ganha destaque por um detalhe insólito: seu nome não aparece em nenhum dos 11,5 milhões de documentos vazados da Mossfon. Mas a maioria de seus amigos e assessores mais próximos detêm mais de 4 000 empresas fictícias com contas milionárias em paraísos fiscais. O círculo de Putin teria movimentado 2 bilhões de dólares, sempre por meio do Banco Rossiya – cujo maior acionista, Nikolai Shamalov, é o sogro de Katerina Tikhonova, filha de Putin. Entre 1999 e 2015, a Rússia teve uma fuga de capitais de cerca de 550 bilhões de dólares, embora a suspeita é que esse valor tenha chegado a 1 trilhão de dólares. Boa parte está seguro em paraísos fiscais.

O intrépido presidente americano Donald Trump não poderia ficar de fora do livro. Durante a campanha, Trump revelou manter 378 contas de empresas no Estado americano de Delaware (considerado um paraíso fiscal), embora não sei saiba a extensão de seus negócios offshore – Trump foi o primeiro candidato a presidente em 40 anos a não divulgar seu imposto de renda. O presidente americano não interagiu pessoalmente com a Mossfon, mas as Organizações Trump e vários dos assessores do atual presidente americanos mantêm contas com a firma panamenha. O livro detalha vários desses negócios.

Novas revelações

Após a divulgação dos Panama Papers, a Mossfon viu seus negócios encolherem. As incorporações da filial das Ilhas Virgens Britânicas, uma das mais atuantes, caíram 30% na primeira metade de 2016 em relação ao mesmo período do ano anterior. Os dois sócios chegaram a ser detidos sob acusação de lavagem de dinheiro. Após a conclusão do livro, dois fatos marcantes voltaram a sacudir o mundo dos paraísos fiscais. Um deles foi o assassinato, em outubro, da jornalista Daphne Caruana Galizia, uma das repórteres envolvidas na apuração dos Panama Papers. Daphne, de 53 anos, foi morta num atentado a bomba próximo à capital da ilha de Malta. Ela havia denunciado o registro de contas em paraísos fiscais do primeiro-ministro Joseph Muscat, de sua mulher, Michelle, do seu chefe de gabinete e do ministro da Energia. Oito suspeitos foram detidos.

Em novembro, um novo vazamento veio à tona – e ainda mais amplo do que os da Mossfom. Os chamados “Paradise Papers” contêm 13 milhões de arquivos da Appleby, assessoria fiscal fundada nas Ilhas Bermudas em 1898, hoje com escritórios nas colônias britânicas das Ilhas Cayman, Virgens Britânicas, Man, Jersey e Guernsey e nas ex-colônias de Maurício, Seychelles e Hong Kong. Os registros que vão de 1950 a 2016. O material também foi obtido pelo jornal alemão Süddeutsche Zeitung e analisado durante um ano sob supervisão do ICIJ, com participação de 381 jornalistas de 65 países. Chamou a atenção a revelação de que a rainha Elizabeth II e seu herdeiro, o príncipe Charles, mantêm cerca de 10 milhões de libras esterlinas (quase 45 milhões de reais) em fundos nas ilhas Cayman e em Bermudas. Além de outras celebridades, como Madonna e Bono Vox, e multinacionais como a Apple, Nike e Uber, são citados pelo menos 120 políticos de 50 países.

Apesar das revelações, o novo vazamento não teve o mesmo impacto provocado pelo Panama Papers. Após uma campanha internacional por mais transparência nos centros offshore, cerca de 100 países já haviam aceitado em setembro ampliar um intercâmbio automático de dados tributários. Trata-se do maior passo em décadas para remover parte do sigilo offshore. Numa mostra da repercussão causada pelo livro de Bernstein, o diretor norte-americano Steven Soderbergh já comprou os direitos da obra recém-lançada para produzir em breve um filme sobre os Panama Papers. Depois de descer ao inferno, o mundo offshore dos paraísos fiscais, quem diria, deverá brilhar em Hollywood.

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