Pedestres usam máscaras protetora, na Rua Alfandega, no Rio de Janeiro, Brasil, 23 de julho de 2020. (Andre Coelho/Bloomberg)
João Pedro Caleiro
Publicado em 4 de agosto de 2020 às 08h00.
Você já ouviu falar em histerese? O termo é emprestado da física e se refere aos materiais que, após modificados, não voltam para sua forma original. Algo parecido acontece na economia.
"A histerese é uma conexão entre flutuação cíclica e crescimento de longo prazo que está sendo cada vez mais estudada", diz o economista Ricardo Menezes, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Um dos trabalhos seminais da área foi publicado em 1986 por Olivier Blanchard, futuro economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) e Lawrence Summers, futuro secretário do Tesouro dos Estados Unidos e reitor da Universidade Harvard. Mas o tema ganhou ainda mais atenção no pós-2008.
“A crise financeira confirmou a doutrina da histerese mais fortemente do que qualquer um poderia supor", diria Summers já em 2014.
No caso da crise da covid-19, é cedo para dizer quais serão os efeitos de longo prazo, já que o mundo ainda está no olho do furacão. Mas no caso do Brasil, há motivos para preocupação.
A pandemia pegou a economia em situação já fragilizada após a brutal recessão de 2015 e 2016 e uma retomada tímida desde então, com crescimento anual na faixa do 1%.
"O que torna nossa situação dramática é que para além das crises, ela está durando muito tempo: a recuperação foi a mais lenta de todos os tempos, e quando a recuperação ainda não havia se concluído, tomamos uma nova crise na cabeça", diz Menezes.
Recentemente, ele explicou para EXAME quais são os mecanismos da histerese:
Capital humano e físico
Nenhum país na história ficou rico depois de ficar velho, e o Brasil está atualmente vivendo o auge do seu bônus demográfico, como mostrou uma reportagem na última edição da EXAME.
Isso significa que nunca tantas pessoas estiveram em idade de trabalhar. Em tese, este seria o melhor dos mundos, já que o tamanho da economia é basicamente fruto de quantas pessoas trabalham multiplicado por quanto cada uma produz.
O problema é que com o desemprego alto e muita gente trabalhando menos do que gostaria, este potencial está sendo desperdiçado, com efeitos que perduram ao longo do tempo na perda de habilidades e empregabilidade.
“Vários estudos mostram que jovens que chegam numa epoca difícil ao mercado tem problemas mais pra frente, como salário menor e desemprego maior. Eles não tem chance de experimentar e achar sua melhor ocupação e acabam perdendo capital humano. Essa geração vai ter problemas para o resto da vida", diz o economista Naércio Menezes, coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper.
Outro mecanismo pelo qual a histerese atua é pela deterioração de capital físico. Quanto mais tempo as empresas ficam com as suas máquinas paradas, menos motivos elas têm para investir em máquinas novas e melhores.
Todo este aparato estará desatualizado quando a economia voltar a crescer, problema agravado em períodos de rápida inovação tecnológico. Além disso, o investimento baixo já é há algum tempo nosso "calcanhar de aquiles", na definição do economista Fabio Giambiagi.
De acordo com dados do World Economic Outlook do FMI levantados pelo Ibre/FGV, aproximadamente 90% dos países do mundo (152 países de uma amostra de 172) tiveram uma taxa de investimento maior do que a do Brasil em 2018.
O mundo apresentou, em média, uma taxa de investimento 10 pontos percentuais maior do que o Brasil naquele ano, quando o pior da crise já havia passado. Enquanto isso, os países emergentes investiram, em média, mais que o dobro do que o Brasil. Os últimos dados mostram que a situação permaneceu essencialmente igual em 2019.
Fuga de cérebros e produtividade
Uma crise econômica longa também significa perda de crença no futuro. As pessoas mais capacitadas e educadas ganham motivos, portanto, para migrar em busca de oportunidades melhores em outro lugar, em um fenômeno conhecido como "fuga de cérebros".
São estes mesmos trabalhadores que poderiam ter mais capacidade de inovar e abrir novos negócios caso a situação estivesse mais favorável no seu país de origem. Além disso, as grandes corporações globais estão engajadas em uma busca internacional pelos melhores talentos, acelerando o processo.
Somados, estes fatores significam que o efeito histerese pode estar comprometendo a capacidade do Brasil crescer no futuro, quando a situação demográfica estará menos favorável, através da perda de PIB potencial.
É possível contrabalançar esse efeitos com alta de produtividade, que é o quanto cada trabalhador produz individualmente, através de reformas como as defendidas pela equipe econômica, mas até certo ponto.
“Tudo que uma reforma pode contribuir para aumentar o crescimento potencial pode ser consumido pela histerese”, diz Ricardo Menezes. O debate é amplo sobre o que pode feito para mudar o cenário, mas o recado é claro: passou da hora de tratar o conjuntural e o estrutural como dois lados da mesma moeda.