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Saneamento é básico

Em tempos em que ESG entrou em definitivo na pauta de executivos e empresas, precisamos falar de água e esgoto, mesmo se o setor da sua empresa não for este

Saneamento básico (Reprodução/Reprodução)
Saneamento básico (Reprodução/Reprodução)
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Viviane Martins

Publicado em 19 de maio de 2021 às, 11h58.

Última atualização em 19 de maio de 2021 às, 12h28.

Há muitos anos auxiliei uma fábrica de enlatados de peixe na Baixada Fluminense com desafios na cadeia de abastecimento. Logo me encantaram lá alguns quadros antigos que retratavam a fábrica desde os tempos de sua instalação no final da década de 1930, mostrando os barcos ancorados nos fundos da área da baía de Guanabara, descarregando peixes. Conhecendo todo o terreno e não identificando nenhuma proximidade com a água questionei por que a fábrica havia mudado de lugar e descobri que quem se afastou foi a baía! Ela hoje está a centenas de metros de distância, em uma área sem vida e contaminada.

Talvez você, leitor, tenha tido alguma curiosidade sobre o leilão de concessão da Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro) e pensado no avanço dos investimentos, que podem garantir a despoluição da baía, e das concessões. Mas, se não for do setor, talvez o fato tenha saído da sua mente em poucos minutos. Quero chamar novamente sua atenção para o tema que deixou uma marca como o primeiro leilão após a regulamentação do marco legal do saneamento, cuja principal proposta é a universalização do saneamento básico no Brasil até 2033, abrindo caminho para o meio do investimento privado.

Com um volume arrecadado que superou as expectativas e demonstrou alguma segurança jurídica ao ocorrer dentro do previsto, apesar das batalhas de bastidores, o leilão foi comemorado por muitas autoridades. Trouxe uma inovação ao considerar nos blocos concessões distintas para um mesmo município e segue modelo já utilizado em outros estados, que combina municípios grandes e pequenos para viabilizar os serviços para a população fora de grandes centros. Após a aguda crise vivida pelo estado do Rio de Janeiro em 2020 com a má qualidade da água, essa movimentação é um avanço. A esperança deve ir além da recuperação da baía de Guanabara. Há previsão para ampliação de tarifa social sem aumento real de tarifa e infraestrutura de favelas, mas se os consórcios vitoriosos conseguirão romper os serviços milicianos e as barreiras do crime organizado, somente o tempo dirá.

Do Rio para o Brasil. Na comparação de 200 países, o Brasil ocupa o 112º lugar em saneamento. A falta de saneamento impacta o meio ambiente, a saúde, a produtividade. Segundo dados do Instituto Trata Brasil, o amplo acesso a saneamento básico poderia reduzir os afastamentos do trabalho em 23%, as mortes por gastroenterite em 15%, impactar positivamente nos índices da mortalidade infantil, aumentar a renda média dos trabalhadores em mais de 6%. Mas, infelizmente, os avanços nos últimos 20 anos têm sido muito lentos. O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 6 aborda a necessidade de “Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos”.

Na análise do Pacto Global da ONU, o Brasil aparece em 4º lugar na América Latina e em 43º lugar mundial. Mais de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada, com distribuição desigual, já que na região Norte, aquela com menor índice, menos de 60% da população é atendida por este serviço. Quando falamos do esgoto, são quase 100 milhões de brasileiros sem acesso à coleta, menos de 50% do esgoto total do Brasil é tratado.

Nestes tempos em que ESG entrou em definitivo na pauta de executivos e empresas, precisamos falar de água e esgoto, mesmo se o setor de atuação da sua empresa não for este ou que não tenha nenhum processo produtivo dependente de água. Embora o saneamento esteja fortemente ligado às políticas públicas, não podemos, enquanto cidadãos e gestores, ignorar o fato de que parte de nossos funcionários e suas famílias vivem em áreas sem esgoto e água tratada. Em tempos de pandemia, quando um dos cuidados mais recomendados é lavarmos as mãos, este recurso pode ser considerado um luxo por muitos brasileiros. Como esperarmos uma força de trabalho mais capacitada, mais produtiva, se as condições básicas muitas vezes não lhes são oferecidas? O saneamento é fator decisivo no desenvolvimento humano. Vale uma reflexão sobre como as empresas podem influenciar a mudança neste cenário.

Para além de batermos palmas para o leilão e de cuidar do tratamento dos próprios efluentes industriais, precisamos encarar o papel do setor privado no acesso à água. Fomentar parcerias com o terceiro setor, com programas que incentivem o uso racional da água ou até mesmo assegurar que os funcionários de sua empresa possam comprar água potável para seu uso fora do ambiente de trabalho, apoiando ou financiando projetos de purificação de água com baixo custo, podem ser ações pequenas, mas que feitas por muitos, têm o poder de transformação social. Várias B Corps e startups são muito ativas na promoção do acesso à água potável. Este é o ESG na prática, começando por aquilo que é básico.