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Vencedores e vencidos da economia na pandemia

Embora os índices do mercado de ações estejam próximos da máxima histórica, a economia em geral luta para se recuperar da crise

Painel do índice Nasdaq na Times Square, em Nova York (Scott Eells/Bloomberg)
Painel do índice Nasdaq na Times Square, em Nova York (Scott Eells/Bloomberg)
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Visão Global

Publicado em 2 de setembro de 2020 às, 12h51.

Última atualização em 2 de setembro de 2020 às, 15h04.

MILÃO – Muitos comentários econômicos hoje em dia abordam a “divergência”: embora os índices do mercado de ações estejam em níveis próximos ao máximo histórico, grande parte da economia em geral luta para se recuperar de uma das mais graves recessões de todos os tempos. Enquanto o índice Russell 2000 ainda está baixo em 5,4% ao ano até o momento, os índices S&P 500 e Russell 3000 retomaram totalmente seus níveis pré-pandêmicos, e o Nasdaq, que se dedica a empresas digitais e de tecnologia, aumentou cerca de 26%.

Muitos concluíram que o mercado está desligado da realidade econômica. Mas, visto de outra forma, os mercados de ações de hoje podem parcialmente estar refletindo poderosas tendências intrínsecas amplificadas pela "economia pandêmica". Os preços das ações e os índices de mercado são medidas de criação de valor para os proprietários de capital, o que não é a mesma coisa que criação de valor na economia em geral, onde trabalho e capital tangível e intangível desempenham seu papel.

Além disso, os mercados refletem os futuros e esperados retornos reais do capital. Quando se trata de medir o valor atual da renda do trabalho, simplesmente não existe um comparável índice prospectivo. Assim sendo, em princípio, se houver uma prevista e significativa recuperação econômica, as perspectivas para o capital e a renda do trabalho poderiam ser semelhantes, mas apenas o esperado futuro do capital estaria refletido no presente.

Mas há mais que isso. As avaliações de mercado são cada vez mais baseadas em ativos intangíveis, principalmente na propriedade e controle de dados, o que confere seus próprios meios de criação de valor e monetização. De acordo com recente estudo do S&P 500, as ações de empresas com altos níveis de capital intangível por funcionário registraram os maiores ganhos neste ano, e quanto menos capital intangível por funcionário as empresas tenham pior será o desempenho de suas ações.

Em outras palavras, a criação de valor incremental nos mercados e no emprego é divergente. E embora isso fosse verdade mesmo antes da pandemia, a tendência agora se acelerou. Existem pelo menos duas razões para isso. Uma é a rápida adoção de tecnologias digitais como parte da resposta às medidas de bloqueio. A segunda é que muitos setores intensivos em mão de obra (que normalmente agregam valor principalmente com mão de obra e capital tangível) foram parcial ou totalmente desativados como resultado de bloqueios, distanciamento social e aversão ao risco do consumidor.

Por exemplo, o Índice Dow Jones das Companhias Aéreas dos EUA (DJUSAR) claramente sofreu um grande golpe e ainda não se recuperou. Em tempos normais, esse setor gera valor principalmente com capital tangível, trabalho e combustível (embora também haja significativos elementos digitais para o seu negócio).

[Gráfico]

Certamente, as avaliações gerais do mercado têm sido sustentadas pelo Federal Reserve dos EUA e pelas políticas de taxas de juros de outros grandes bancos centrais. No contexto atual, as políticas monetárias altamente acomodatícias visam principalmente criar espaço para os governos usarem a dívida para financiar grandes programas fiscais em resposta ao choque do COVID-19.

Mas, embora as taxas de juros ultrabaixas possam fornecer algum suporte geral para as atuais avaliações de mercado, elas não levam em consideração as diferenças marcantes entre os setores. Afinal, a parte da economia não representada por ações negociadas publicamente também está sofrendo (embora existam, é claro, empresas privadas nos setores digitais cujas avaliações e retornos sejam semelhantes, ou até mesmo mais altos que a extremidade superior do espectro de capitais intangíveis em mercados públicos).

De forma mais ampla, famílias de baixa renda e muitas pequenas empresas com frágeis balancetes ficaram sem amortecedores eficazes e muitos dos setores de trabalho intensivo que geram empregos importantes em tempos normais (incluindo hotéis, restaurantes e bares) foram parcialmente desativados. Para lidar com essas tendências, os balancetes soberanos estão sendo usados ​​como amortecedores para os grandes setores da economia.

Mas nem todos. Como a crise atual está na verdade aumentando o valor de certas empresas, vale a pena perguntar quem é o dono da maior parte das ações. Certamente não são as famílias e empresas cujos balancetes são fracos demais para servir de amortecedores. Hoje, empresas de alta valorização pertencem a indivíduos e instituições com balancetes que já são substanciais o suficiente para fornecer um amortecedor de resiliência econômica.

Quando a fase pós-pandêmica surgir, os setores de mão de obra intensiva com menor capital intangível por funcionário poderão desfrutar de um período de desempenho superior à medida que se recuperam. No entanto, mesmo nesse cenário, o rastro digital da economia tende a se expandir e a tendência implícita que favorece o capital intangível e seus proprietários continuará.

Não é de se estranhar que setores intensivos em capital intangível tenham alguma vantagem. Para a maior parte, suas estruturas de custos são anormalmente voltadas para custos fixos e custos marginais baixos ou insignificantes. Isso torna algumas plataformas extremamente escalonáveis, o que por sua vez confere significativo poder em termos de preços e acesso ao mercado.

Podem-se tirar algumas conclusões dessas realidades econômicas. Para começar, a economia pandêmica acelerou a tendência pré-pandêmica, favorecendo a criação de valor de ativos intangíveis por meio de empresas com relativamente menos funcionários. Podemos esperar que essa tendência continue, embora não no ritmo acelerado induzido pela pandemia. Os negócios tradicionais se recuperarão, mas a desconexão entre a criação de valor entre as empresas, dependendo dos intangíveis por funcionário, persistirá e continuará sendo um grande desafio econômico e social. Parte superior do formulário

A ideia de que mercados e economia estão divergindo reflete uma estreita visão nos índices específicos. Mas nenhum índice pode oferecer  uma síntese útil do mercado geral, muito menos condições e tendências econômicas. E na economia pandêmica, os índices do mercado de ações obscurecem ainda mais do que fariam de outra forma, devido às grandes divergências nos resultados econômicos entre os setores e para as pessoas que neles trabalham.

Finalmente, dada a descomunal contribuição dos ativos intangíveis digitais para a criação de valor, é difícil ver uma maneira de reverter a tendência de aumento da desigualdade de riqueza. Uma vez que os balancetes daqueles que estão mais abaixo na escala de renda e riqueza estão amplamente desprovidos de ativos com alto conteúdo intangível e digital, as recompensas da atual dinâmica econômica e tecnológica serão ultrapassadas por eles.

Michael Spence, Ganhador do Prêmio Nobel de Economia, é Professor de Economia da Faculdade de Comércio Stern, da Universidade de Nova York e Membro Sênior da Hoover Institution.