Trump, o correio e a desvinculação da América
À medida que a crise da votação por correspondência começou a ferver, políticos começaram a denunciar os Correios como um negócio ruim e que perde dinheiro
Publicado em 20 de agosto de 2020 às, 13h39.
Última atualização em 21 de agosto de 2020 às, 22h25.
Em junho, o site independente Factcheck.org tirou sarro de Joe Biden, ao publicar um post intitulado “Biden circula teoria conspiratória eleitoral sem fundamento”. Biden, veja só, havia sugerido que Donald Trump “quer cortar o orçamento dos Correios para que o serviço não consiga enviar cédulas de voto pelo correio”. Não havia, dizia o post, evidência alguma de que a “posição” de Trump “com relação ao correio americano esteja relacionada à eleição presidencial”.
Há alguns dias, o Factcheck.org admitiu que Biden, na verdade, estava certo. A confirmação? As próprias declarações de Trump.
Nancy Pelosi está convocando o Congresso de volta do recesso de verão para considerar uma legislação sobre o tema, e por bons motivos: Não há apenas uma, mas duas possíveis crises constitucionais à espreita. Em uma, milhões de votos nunca serão contados. Na outra, atrasos na contagem de votos enviados pelo correio levam Trump a declarar vitória em uma eleição que na verdade ele perdeu.
Estes pesadelos de novembro são o motivo pelo qual precisamos atuar urgentemente para garantir a integridade do serviço de correios da América. Mas também há um aspecto mais amplo e de prazo maior na questão do ataque ao sistema postal. É parte de um ataque mais generalizado às instituições que nos unem como nação.
Afinal de contas, houve uma razão para a Constituição conceder especificamente ao Congresso a capacidade de “estabelecer agências e vias voltadas ao serviço postal”. Claramente, os fundadores viram algum tipo de sistema postal nacional como um modo de ajudar a tornar realidade as ideias ainda trêmulas dos Estados Unidos como nação. De fato, em seus primeiros anos um dos papéis-chave do serviço de correio era a entrega de jornais, como forma de manter os americanos informados e conectados.
O Serviço Postal como nós o conhecemos hoje não surgiu pronto de uma só vez. Em vez disso, ele evoluiu aos poucos, por meio de uma acumulação de legislação formal e de antecedentes.
A entrega direta de correspondência aos lares urbanos não começou até 1863, e a entrega rural permanente gratuita só surgiu a partir de 1902. As encomendas postais não tinham sido criadas até 1913; antes disso, os clientes do campo tinham de confiar em um cartel de empresas privadas que conspirava para manter as taxas de envio caras.
Todas essas mudanças, porém, tiveram um tema em comum: proporcionar aos americanos melhor contato uns com os outros e com o mundo de modo geral. Um componente essencial do ethos dos correios há muito tempo é que ele tem sido uma “obrigação de serviço universal”, “unindo o país” e “facilitando a inclusão cidadã”.
Durante muito tempo na história da América isso envolveu em grande parte levar às regiões mais remotas acesso aos frutos do progresso econômico urbano; é difícil exagerar a diferença que a ascensão dos serviços de venda a distância, tornada possível pela expansão postal, teve na qualidade da vida rural. Além disso, o serviço de correio continua a ser crucial nas zonas rurais, que são servidas por um sistema precário (e caro) operado por empresas particulares de entrega.
Mas não é só a população rural; os Correios continuam a ser um salva-vidas, em alguns casos literal, para muitos americanos que por algum motivo têm limitações para, digamos, ir à farmácia buscar uma receita médica. O Departamento de Assuntos dos Veteranos entrega cerca de 80% de suas receitas dos pacientes de ambulatórios pelo correio.
À medida que a crise da votação por correspondência começou a ferver, alguns dos suspeitos de sempre à direita começaram a denunciar os Correios como um negócio ruim e que perde dinheiro. Só que os fundadores não colocaram a cláusula postal na Constituição porque a enxergaram como uma oportunidade de negócios; a ideia era que os Correios servissem a objetivos nacionais mais amplos - o que ainda acontece.
Porém, pode-se questionar, por que esta lógica deveria valer só para o correio? Nós não devíamos apoiar outras instituições que unem a nação? Sim, nós devíamos - e apoiamos.
O departamento de Administração da Eletrificação Rural, criado na década de 30 para trazer energia às zonas rurais, tinha a ver com integração nacional tanto quanto com desenvolvimento econômico - e, a partir de 1949, ele também subsidiou a expansão das redes de telefones rurais. O Sistema Interestadual de Autoestradas foi parcialmente justificado com base em afirmações dúbias sobre a segurança nacional, mas teve o efeito de reforçar a unidade nacional.
E quanto à internet? Será que também devíamos ter uma política para garantir que os americanos tenham acesso às telecomunicações modernas? Na verdade, sim.
O acesso à internet na América é muito mais caro do que em outros países desenvolvidos, em parte porque provedores de serviço (a grande maioria desregulamentados) abusam de seu poder de mercado, de modo muito semelhante ao que faziam as empresas de entrega privadas que se aproveitavam dos agricultores antes da criação da encomenda postal.
Sem dúvida, não esperamos que todo serviço da economia contemporânea esteja sujeito a uma obrigação universal de serviço. Nem todos nós precisamos de carteirinha do campo de golfe ou de botes particulares para participar integralmente de nossa vida nacional.
Porém, a maioria dos americanos - o que se presume incluir a maioria dos 91% do público que têm uma visão favorável dos Correios - acredita que algumas coisas deviam ser de acesso universal, mesmo que oferecê-las não seja lucrativo, porque são componentes importantes de uma cidadania plena.
Infelizmente, Trump e aqueles ao redor dele não partilham desta visão, talvez porque não acreditem realmente nesta ideia de “cidadania plena”, para começo de conversa. E essa é uma razão pela qual eles podem estar tentando aleijar o serviço de correios, mesmo que não seja a melhor esperança deles de roubar esta eleição.