Reconquistando a grandeza americana
Toda a história dos Estados Unidos parece estar em jogo quando Donald Trump enfrentar os eleitores novamente em 3 de novembro
Matheus Doliveira
Publicado em 15 de setembro de 2020 às 19h49.
Última atualização em 15 de setembro de 2020 às 21h30.
NOVA YORK – Julia Jackson, a mãe de Jacob Blake, jovem negro de Kenosha, Wisconsin, que levou sete tiros nas costas pela polícia, estava certa quando disse: “Os EUA são ótimos quando nos comportamos bem”. Infelizmente, nos últimos quatro anos, o presidente Donald Trump tem conduzido os Estados Unidos exatamente na direção oposta.
Toda a história do país parece estar em jogo quando Trump enfrentar os eleitores novamente em 3 de novembro. Já se passaram 160 anos desde que os Estados Unidos tentaram lidar com seu “ pecado original ” da escravidão africana. Naquela ocasião, o presidente Abraham Lincoln fez a famosa advertência de que: “Uma casa dividida contra si mesma não pode subsistir”. No entanto, sob o governo Trump, todas as divisões dos EUA têm sido ampliadas.
Não é nenhuma surpresa que os ricos tenham ficado mais ricos com Trump, visto que ele tende a julgar o desempenho econômico geral com base no mercado de ações, onde os 10% mais ricos dos americanos possuem 92% das ações. Embora os preços das ações continuem a atingir novos patamares, o mesmo ocorre com o subemprego e o desemprego nos EUA. Cerca de 30 milhões de residentes no país são famílias que vivem atualmente sem alimentos suficientes, e a maioria dos que estão na metade inferior da distribuição de renda sobrevive com o salário de cada mês. Em um país já dividido com o aprofundamento das desigualdades, os republicanos de Trump não apenas cortaram impostos para bilionários e corporações, como também implementaram políticas que elevarão as taxas de impostos para a vasta maioria dos que estão na faixa intermediária.
Como Martin Luther King Jr. apontou há mais de meio século, a injustiça racial e econômica são questões inseparáveis na América. Eu estava lá para a marcha sobre Washington 57 anos atrás, quando King fez seu emocionante discurso: “Eu tenho um sonho”, e nós cantamos: “Nós iremos superar algum dia . “Na condição de um ingênuo jovem de 20 anos, eu não conseguia conceber que esse algum dia ficaria tão distante, que, após um curto período de progresso, a luta por justiça racial e econômica iria estagnar.
E, contudo, já se passaram mais de 50 anos desde o relatório da Comissão Kerner sobre os conflitos raciais de 1967, e as disparidades raciais ainda continuam quase iguais. A principal conclusão final do relatório continua relevante: “Nossa nação está caminhando para duas sociedades, uma negra, uma branca – separadas e desiguais”. Talvez sob a presidência de Joe Biden, o país pudesse finalmente tomar um novo rumo.
Nesse ínterim, a pandemia do COVID-19 continuará a expor e exacerbar as desigualdades existentes. Longe de ser um patógeno de “oportunidades iguais”, o coronavírus representa a maior ameaça para aqueles que já têm problemas de saúde, muitos dos quais em um país que ainda não reconhece o acesso à saúde como direito básico. Na verdade, o número de americanos sem seguro saúde aumentou em milhões sob a administração de Trump, depois de ter caído drasticamente sob o presidente Barack Obama; e mesmo antes da pandemia, a expectativa média de vida sob Trump havia caído abaixo de seu nível de meados da década de 2010.
Não se pode ter uma economia saudável sem uma força de trabalho saudável, e nem é preciso dizer que um país cuja população está carente de saúde ainda tem de percorrer um longo caminho antes que essa possa ser "ótima". Como escrevi em janeiro, o histórico econômico de Trump era inexpressivo mesmo antes da pandemia – e de forma previsível. Em vez de reduzir o déficit comercial dos EUA, a imprudente guerra comercial de Trump o fez crescer em mais de 12% em apenas três anos. Durante o mesmo período, foram criados menos empregos do que nos últimos três anos do governo Obama. Além disso, o crescimento estava anêmico e já dava sinais de enfraquecimento após a alta do açúcar induzida pelo estímulo do corte de impostos de 2017, que não gerou mais investimentos, mas elevou o déficit orçamentário federal para o limiar de US$ 1 trilhão.
A governança imprudente de Trump, auxiliada por republicanos no Congresso, deixou o país despreparado para responder à próxima crise, que acabou por acontecer. Quando os doadores bilionários e aliados corporativos dos republicanos buscaram por esmolas em 2017, havia muito dinheiro disponível. Mas agora que famílias, pequenos negócios e serviços públicos essenciais precisam desesperadamente de assistência, os republicanos afirmam que o cofre está vazio.
Na medida em que a luta contra a pandemia é semelhante a uma mobilização em tempos de guerra, os EUA estão presos a um comandante que só cuida de si mesmo, enquanto coloca em risco todos os outros ao rejeitar a ciência e o conhecimento. Não é de se admirar que os Estados Unidos estejam entre os países com pior desempenho em termos de controle da doença e gerenciamento das consequências econômicas. Os americanos estão morrendo três vezes mais do que a taxa mensal durante a Segunda Guerra Mundial.
No início da presidência de Trump, o autor Michael Lewis advertiu que a guerra de Trump e seus comparsas contra o “estado administrativo” deixaria os EUA totalmente despreparados para choques futuros. O país agora está sofrendo de uma ( previsível ) pandemia e permanece totalmente à mercê de uma iminente crise climática, crises socioeconômicas e crises de democracia e justiça racial, sem mencionar as emergentes divisões entre urbano e rural, litoral e interior, jovens e velhos.
Trump tem como alvo dois dos principais ingredientes da grandeza nacional: solidariedade social e confiança pública. Países com essas características controlaram muito melhor a pandemia e suas consequências econômicas. Como pode um país que acompanha o resto do mundo nesses aspectos reivindicar qualquer tipo de grandeza nacional?
A maior esperança dos EUA agora está em Biden, cuja maior força é seu potencial para reunificar uma população dividida. Embora as fissuras no país tenham ficado grandes demais para serem curadas da noite para o dia, há alguma verdade no clichê de que “o tempo cura todas as feridas”.
Mas a cura não acontecerá por si só. Caberá aos americanos adotar um projeto de renovação nacional. Felizmente, uma grande população de jovens está ansiosa para enfrentar esse desafio. Os Estados Unidos podem se tornar grandes novamente somente se aproveitarem seu entusiasmo, permanecerem unidos e se aplicarem novamente seus princípios e aspirações de outrora.
Joseph E. Stiglitz*, ganhador do Prêmio Nobel de economia e professor da Universidade de Columbia, é economista-chefe do Instituto Roosevelt e ex-Vice-Presidente Sênior e Economista-Chefe do Banco Mundial. Seu livro mais recente é People, Power and Profits: Progressive Capitalism for an Age of Discontent (Povo, Poder e Lucro: Capitalismo Progressivo para uma Era de Descontentamento)[Penguin, 2020].
Tradução de Anna Maria Dalle Luche.
NOVA YORK – Julia Jackson, a mãe de Jacob Blake, jovem negro de Kenosha, Wisconsin, que levou sete tiros nas costas pela polícia, estava certa quando disse: “Os EUA são ótimos quando nos comportamos bem”. Infelizmente, nos últimos quatro anos, o presidente Donald Trump tem conduzido os Estados Unidos exatamente na direção oposta.
Toda a história do país parece estar em jogo quando Trump enfrentar os eleitores novamente em 3 de novembro. Já se passaram 160 anos desde que os Estados Unidos tentaram lidar com seu “ pecado original ” da escravidão africana. Naquela ocasião, o presidente Abraham Lincoln fez a famosa advertência de que: “Uma casa dividida contra si mesma não pode subsistir”. No entanto, sob o governo Trump, todas as divisões dos EUA têm sido ampliadas.
Não é nenhuma surpresa que os ricos tenham ficado mais ricos com Trump, visto que ele tende a julgar o desempenho econômico geral com base no mercado de ações, onde os 10% mais ricos dos americanos possuem 92% das ações. Embora os preços das ações continuem a atingir novos patamares, o mesmo ocorre com o subemprego e o desemprego nos EUA. Cerca de 30 milhões de residentes no país são famílias que vivem atualmente sem alimentos suficientes, e a maioria dos que estão na metade inferior da distribuição de renda sobrevive com o salário de cada mês. Em um país já dividido com o aprofundamento das desigualdades, os republicanos de Trump não apenas cortaram impostos para bilionários e corporações, como também implementaram políticas que elevarão as taxas de impostos para a vasta maioria dos que estão na faixa intermediária.
Como Martin Luther King Jr. apontou há mais de meio século, a injustiça racial e econômica são questões inseparáveis na América. Eu estava lá para a marcha sobre Washington 57 anos atrás, quando King fez seu emocionante discurso: “Eu tenho um sonho”, e nós cantamos: “Nós iremos superar algum dia . “Na condição de um ingênuo jovem de 20 anos, eu não conseguia conceber que esse algum dia ficaria tão distante, que, após um curto período de progresso, a luta por justiça racial e econômica iria estagnar.
E, contudo, já se passaram mais de 50 anos desde o relatório da Comissão Kerner sobre os conflitos raciais de 1967, e as disparidades raciais ainda continuam quase iguais. A principal conclusão final do relatório continua relevante: “Nossa nação está caminhando para duas sociedades, uma negra, uma branca – separadas e desiguais”. Talvez sob a presidência de Joe Biden, o país pudesse finalmente tomar um novo rumo.
Nesse ínterim, a pandemia do COVID-19 continuará a expor e exacerbar as desigualdades existentes. Longe de ser um patógeno de “oportunidades iguais”, o coronavírus representa a maior ameaça para aqueles que já têm problemas de saúde, muitos dos quais em um país que ainda não reconhece o acesso à saúde como direito básico. Na verdade, o número de americanos sem seguro saúde aumentou em milhões sob a administração de Trump, depois de ter caído drasticamente sob o presidente Barack Obama; e mesmo antes da pandemia, a expectativa média de vida sob Trump havia caído abaixo de seu nível de meados da década de 2010.
Não se pode ter uma economia saudável sem uma força de trabalho saudável, e nem é preciso dizer que um país cuja população está carente de saúde ainda tem de percorrer um longo caminho antes que essa possa ser "ótima". Como escrevi em janeiro, o histórico econômico de Trump era inexpressivo mesmo antes da pandemia – e de forma previsível. Em vez de reduzir o déficit comercial dos EUA, a imprudente guerra comercial de Trump o fez crescer em mais de 12% em apenas três anos. Durante o mesmo período, foram criados menos empregos do que nos últimos três anos do governo Obama. Além disso, o crescimento estava anêmico e já dava sinais de enfraquecimento após a alta do açúcar induzida pelo estímulo do corte de impostos de 2017, que não gerou mais investimentos, mas elevou o déficit orçamentário federal para o limiar de US$ 1 trilhão.
A governança imprudente de Trump, auxiliada por republicanos no Congresso, deixou o país despreparado para responder à próxima crise, que acabou por acontecer. Quando os doadores bilionários e aliados corporativos dos republicanos buscaram por esmolas em 2017, havia muito dinheiro disponível. Mas agora que famílias, pequenos negócios e serviços públicos essenciais precisam desesperadamente de assistência, os republicanos afirmam que o cofre está vazio.
Na medida em que a luta contra a pandemia é semelhante a uma mobilização em tempos de guerra, os EUA estão presos a um comandante que só cuida de si mesmo, enquanto coloca em risco todos os outros ao rejeitar a ciência e o conhecimento. Não é de se admirar que os Estados Unidos estejam entre os países com pior desempenho em termos de controle da doença e gerenciamento das consequências econômicas. Os americanos estão morrendo três vezes mais do que a taxa mensal durante a Segunda Guerra Mundial.
No início da presidência de Trump, o autor Michael Lewis advertiu que a guerra de Trump e seus comparsas contra o “estado administrativo” deixaria os EUA totalmente despreparados para choques futuros. O país agora está sofrendo de uma ( previsível ) pandemia e permanece totalmente à mercê de uma iminente crise climática, crises socioeconômicas e crises de democracia e justiça racial, sem mencionar as emergentes divisões entre urbano e rural, litoral e interior, jovens e velhos.
Trump tem como alvo dois dos principais ingredientes da grandeza nacional: solidariedade social e confiança pública. Países com essas características controlaram muito melhor a pandemia e suas consequências econômicas. Como pode um país que acompanha o resto do mundo nesses aspectos reivindicar qualquer tipo de grandeza nacional?
A maior esperança dos EUA agora está em Biden, cuja maior força é seu potencial para reunificar uma população dividida. Embora as fissuras no país tenham ficado grandes demais para serem curadas da noite para o dia, há alguma verdade no clichê de que “o tempo cura todas as feridas”.
Mas a cura não acontecerá por si só. Caberá aos americanos adotar um projeto de renovação nacional. Felizmente, uma grande população de jovens está ansiosa para enfrentar esse desafio. Os Estados Unidos podem se tornar grandes novamente somente se aproveitarem seu entusiasmo, permanecerem unidos e se aplicarem novamente seus princípios e aspirações de outrora.
Joseph E. Stiglitz*, ganhador do Prêmio Nobel de economia e professor da Universidade de Columbia, é economista-chefe do Instituto Roosevelt e ex-Vice-Presidente Sênior e Economista-Chefe do Banco Mundial. Seu livro mais recente é People, Power and Profits: Progressive Capitalism for an Age of Discontent (Povo, Poder e Lucro: Capitalismo Progressivo para uma Era de Descontentamento)[Penguin, 2020].
Tradução de Anna Maria Dalle Luche.