Pandemia, clima e recessão: como deve ser o multilateralismo de Biden
Quando Joe Biden assumir a Casa Branca em 20 de janeiro de 2021, ele enfrentará uma agenda de urgência sobre questões internacionais que clamam por atenção
Publicado em 2 de dezembro de 2020 às, 13h39.
Última atualização em 2 de dezembro de 2020 às, 18h28.
CAMBRIDGE – Como bem diz a música de Joni Mitchell , “Você não dá valor ao que tem até perder”. Por exemplo, a educação em sala de aula costumava ser considerada chata pelos alunos e obsoleta pelos visionários da tecnologia. Então, o COVID-19 tornou difícil ou impossível o ensino presencial. Agora ansiamos por experiências em sala de aula.
Talvez o mesmo se aplique à cooperação econômica internacional. Instituições multilaterais como a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional e as agências das Nações Unidas há muito tem se tornado impopulares entre grande parte do público por supostamente se intrometer na soberania nacional. Mas então surgiu o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tornando a cooperação internacional quase impossível. Enquanto outros líderes do G20 discutiam a prontidão para a pandemia em sua cúpula recentemente concluída, por exemplo, Trump evidentemente ficou tuitando mais falsas acusações de fraude eleitoral e depois foi jogar golfe .
Quando o presidente eleito Joe Biden assumir a Casa Branca em 20 de janeiro de 2021, ele enfrentará uma agenda de urgência sobre questões internacionais que clamam por atenção. Os principais itens incluem a pandemia, as mudanças climáticas e a recessão global, que exigirão ação conjunta das economias avançadas no estímulo fiscal, reestruturação da dívida e comércio internacional.
Biden não fez campanha sobre cooperação econômica internacional propriamente dita. Os candidatos presidenciais dos EUA nunca o fazem. Mas ele prometeu reverter imediatamente as decisões exageradamente míopes de Trump de retirar os Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde e do acordo climático de Paris de 2015.
As doenças pandêmicas como o COVID-19 são um clássico exemplo de exterioridade internacional que os governos individuais não podem resolver por conta própria. A cooperação internacional é uma forma muito mais eficaz de investigar surtos de doenças locais e alertar sobre os perigos globais; coordenar pesquisa, desenvolvimento, produção e distribuição de vacinas ou tratamentos, bem como chegar a um acordo sobre procedimentos para restringir ou colocar em quarentena os viajantes internacionais. A OMS não é perfeita, mas agora obviamente é necessária.
Da mesma forma, a mudança climática global é o arquétipo da exterioridade global. Uma tonelada de dióxido de carbono emitida em qualquer lugar tem o mesmo efeito estufa em todos os lugares. Uma regulamentação nacional por si só não pode corrigir o desalinhamento de incentivos, devido ao problema do oportunismo entre os governos. Daí a necessidade de um acordo internacional como o acordo climático de Paris de 2015.
Biden e outros líderes mundiais também devem enfrentar a mais profunda recessão global desde os anos 1930. Além de medidas para enfrentar a pandemia propriamente dita, as economias avançadas precisam concordar acima de tudo com o estímulo fiscal conjunto, como fizeram na cúpula de Bonn de 1978 os líderes do G7 e nas reuniões do G20 de 2009 sob a liderança do então primeiro-ministro do Reino Unido, Gordon Brown.
Recentemente, o FMI estimou que se os países do G20 com maior espaço fiscal aumentassem simultaneamente os gastos com infraestrutura em 0,5% do PIB em 2021 e 1% do PIB nos anos subsequentes – e se aqueles com espaço fiscal mais limitado investissem um terço disso – eles poderiam elevar o PIB global em quase 2% até 2025, em comparação com um aumento de pouco menos de 1,2% sob uma abordagem fiscal não sincronizada.
Uma expansão fiscal coordenada (com fundos substanciais fundos aplicados, espera-se, sobre o investimento em infraestrutura verde e a luta contra o COVID-19) poderia, portanto, ajudar a garantir uma recuperação global mais rápida do PIB e do emprego, e minimizar o perigo de uma recessão em forma de W.
Além disso, um estímulo simultâneo não precisa afetar adversamente a balança comercial de nenhum país do G20.
Com as taxas de juros próximas a zero, os EUA e outras economias avançadas não se sentem restringidas em sua capacidade de tomar empréstimos, mesmo com o aumento da relação dívida/PIB. Mas as economias de mercados emergentes e em desenvolvimento (EMDEs) - especialmente aquelas que já tinham dívidas insustentáveis antes da pandemia – têm muito menos espaço de manobra.
Muitas EMDEs precisarão ter suas dívidas reestruturadas. Até agora, a resposta da comunidade internacional consistiu principalmente na Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida (DSSI) do G20, que tinha um escopo limitado. O esquema abriu o caminho simplesmente ao adiar (em vez de reduzir) as obrigações do serviço da dívida, e não incluiu a dívida privada.
As maiores economias do mundo devem liderar e coordenar urgentemente essa questão. Os líderes do G20 reconheceram em sua cúpula de 21 a 22 de novembro que os países elegíveis ao DSSI precisam de mais do que alívio da dívida oficial bilateral. Porém, fizeram poucos progressos tangíveis.
Além disso, muitos países africanos temem que os esforços bem-intencionados de reestruturação coordenada da dívida prejudiquem sua capacidade de continuar acessando os mercados internacionais de capital. Os países mais pobres também precisam de novos empréstimos concessionais e doações. As propostas estão de volta à mesa para emitir um novo pacote de Direitos Especiais de Saque (o ativo de reserva do FMI) e direcionar a liquidez para os mercados emergentes.
No comércio internacional, muitos democratas pedem que Biden continue com alguns dos objetivos de Trump, mas trabalhe com os aliados dos EUA, não contra eles. Uma dessas metas é reduzir a necessidade de empresas estrangeiras compartilharem tecnologia proprietária com parceiros domésticos como pagamento pelo acesso ao mercado chinês.
Uma estratégia inteligente dos EUA poderia ter sido permanecer na Parceria Transpacífica e oferecer à China a perspectiva de um dia voltar a participar caso seguisse as regras, que foram elaboradas principalmente pelos Estados Unidos. Os outros países da TPP seguiram em frente sem os EUA, que ainda podem alcançá-la caso decidam voltar.
Mas pode ser tarde demais para isso. Enquanto os EUA dormiam, a China organizou seu próprio bloco comercial da Ásia-Pacífico, denominado Parceria Econômica Regional e Abrangente. Nesse ponto, cortes tarifários recíprocos diretos podem ser uma opção mais promissora para os EUA do que uma “integração profunda” confusa e difícil de ser aplicada.
As recentes nomeações de alto nível para a próxima administração do presidente Biden são internacionalistas comprometidos. Os EUA presumivelmente permitirão que a OMC volte a funcionar. Mas é improvável que os acordos comerciais internacionais ocupem uma elevada posição em sua lista de prioridades, e os devotos comprometidos com o sistema de comércio aberto baseado em regras terão que recalibrar as próprias ambições. Além disso, os amigos e aliados dos EUA perderam um pouco do entusiasmo por deixar o país conduzir a orquestra internacional. Mas ficarão, no mínimo, felizes em tê-lo de volta como um importante e construtivo participante.
Tradução: Anna Maria Dalle Luche, Brazil.
Jeffrey Frankel é Professor de Formação de Capital e Crescimento na Universidade de Harvard.