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O roteiro para estabilizar as relações sino-americanas

É do interesse político de Biden desacelerar ou até mesmo encerrar a guerra comercial de Trump no curto prazo, mas a China continuará sendo o maior rival

Guerra comercial: analistas temem que Trump acirre os conflitos com os chineses em seus últimos meses na Casa Branca. (Aly Song/Reuters)
MD

Matheus Doliveira

Publicado em 26 de novembro de 2020 às 17h42.

CLAREMONT, CALIFORNIA – Elaborar uma estratégia eficaz para competir, cooperar e coexistir com a China será um dos mais difíceis desafios de política externa do presidente eleito dos EUA , Joe Biden . E nos próximos dois meses, as relações sino-americanas provavelmente vão piorar.

Na véspera das eleições, o presidente Donald Trump culpou abertamente a China pela pandemia do COVID-19 que iria agourar seu segundo mandato, fazendo veladas ameaças. Agora que está prestes a sair da Casa Branca, Trump provavelmente aprovará mais medidas punitivas para descarregar sua ira e amarrar as mãos do novo governo Biden. Mesmo que a China não responda da mesma forma aos ataques de despedida de Trump, alguns dos quais podem ser muito dolorosos ou humilhantes demais para serem engolidos, a relação EUA-China que Biden herda poderá ser irremediavelmente prejudicada.

Por causa da atual forte antipatia em relação à China por grande parte do establishment político dos EUA e também da população, Biden dificilmente mudará os princípios fundamentais da política de Trump com relação à China. A China continuará sendo o principal adversário geopolítico dos EUA, e conter sua ascensão será o princípio organizador da política externa dos EUA para o futuro previsível.

Mas a política do governo Biden na China também será substancialmente diferente da abordagem de soma zero de Trump, “EUA em Primeiro Lugar”. O cálculo estratégico de Biden é que o conflito sino-americano será uma maratona de décadas cujo resultado dependerá, antes de mais nada, de os Estados Unidos conseguirem sustentar e fortalecer suas vantagens competitivas: dinamismo econômico, inovação tecnológica e apelo ideológico.

Além de congregar os tradicionais aliados dos EUA, portanto, Biden se concentrará no fortalecimento doméstico dos EUA, tratando de sua dilapidada infraestrutura, inadequada base de capital humano e subfinanciados pesquisa e desenvolvimento. Além disso, enquanto o governo Trump não vê espaço para cooperação com a China, o governo Biden considerará uma colaboração mutuamente benéfica em questões como mudança climática, pandemias e não proliferação nuclear, questões ambas desejáveis e essenciais.

O foco de Biden em elaborar uma estratégia de longo prazo mais matizada e sustentável para a China trará uma pausa imediata e bem-vinda na guerra fria sino-americana. Também é de seu interesse político de curto prazo desacelerar ou até mesmo encerrar a guerra comercial de Trump, porque a economia dos Estados Unidos precisa de toda a ajuda que puder obter para sair da própria crise induzida pela pandemia.

Ironicamente, embora os líderes chineses tenham da mesma forma concluído que agora estão presos em um conflito sem fim com os EUA, a redução das tensões bilaterais também é do interesse político de curto prazo. A China aparentemente acredita que o tempo está a seu favor, porque sua economia continuará a crescer mais rápido do que a dos Estados Unidos na próxima década, mudando gradualmente o equilíbrio geral de poder em seu benefício. Por enquanto, a principal prioridade do presidente chinês Xi Jinping é evitar uma nova escalada de tensões com os EUA enquanto seu país está em uma posição de relativa fraqueza.

Embora os interesses de curto prazo de Biden e Xi possam estar alinhados, chegar a uma redução abrangente nas tensões EUA-China exigirá que ambos invistam uma modesta quantia de capital político e demonstrem sua disposição para estabilizar os laços bilaterais.

O tema mais próximo diz respeito à cultura. A China deve readmitir os jornalistas americanos que expulsou na primavera de 2020, medida essa tomada para retaliar as restrições dos EUA aos jornalistas chineses. A China deve se comprometer ainda mais a dar vistos de longa duração e maior liberdade para os repórteres americanos  trabalharem dentro do país, com os Estados Unidos retribuindo, rescindindo as restrições impostas aos órgãos estatais chineses de notícias.

A reabertura dos consulados seria outro passo positivo. No final de julho, os Estados Unidos ordenaram que a China fechasse seu consulado em Houston, alegando atividades não especificadas de espionagem econômica. Em resposta, a China fechou o consulado americano em Chengdu. Essas táticas de olho por olho intensificaram desnecessariamente o antagonismo mútuo. Retificar esse erro e reverter essas decisões beneficiaria os dois países.

Em seguida, os EUA e a China devem ressaltar sua disposição em cooperar com as mudanças climáticas. O principal negociador da China para o clima e o novo enviado dos EUA para esse assunto, o ex-secretário de Estado John Kerry, devem marcar uma reunião para reafirmar o compromisso de cada país com as metas do Acordo de Paris de 2015 e explorar potenciais iniciativas conjuntas para injetar novo impulso nos esforços globais para combater as mudanças climáticas.

Uma questão mais espinhosa é Taiwan, que ressurgiu como um potencial foco de conflito militar sino-americano. A China, sem dúvida, pressionará Biden para reafirmar a adesão dos Estados Unidos à política de "Uma só China", mas o governo Biden também deve exigir que a China diminua suas ameaças contra Taiwan e reiterar sua preferência por uma resolução pacífica do status da ilha. Com uma diplomacia devidamente coreografada, um compromisso realista poderia resultar em tensões menores em todo o Estreito de Taiwan.

Mas o maior obstáculo para um relacionamento mais estável entre EUA e China é a guerra comercial. Em janeiro de 2020, os dois países concluíram um acordo de “fase um” que interrompeu temporariamente, mas não encerrou, o pior conflito comercial da história recente. Se Trump não revogar o acordo antes de deixar o cargo, Biden e Xi devem reiniciar imediatamente as negociações para evitar uma catástrofe iminente – ou seja, a impossibilidade de a China atender à demanda do governo de Trump de comprar mais US$ 200 bilhões em bens e serviços dos EUA ao longo do período de dois anos de 2020 a 2021. Uma solução realista pode exigir um acordo de fase dois mais abrangente que estenda o prazo para a China cumprir seu compromisso de compra e prometer reformas estruturais que foram deixadas de fora da fase um do acordo.

Este modesto roteiro pode não alterar a trajetória do conflito sino-americano das duas grandes potências. Mas, ao demonstrar sua vontade de cooperar apesar de suas diferenças fundamentais, Biden e Xi podem garantir à comunidade internacional que as cabeças frias prevaleceram nos dois países.

Minxin Pei é Professor de Assuntos Governamentais na Faculdade Claremont McKenna e Membro Não Residente do German Marshall Fund dos Estados Unidos. É autor do livro China’s Crony Capitalism. (Capitalismo Clientelista da China) e primeiro Presidente da Biblioteca do Congresso nas Relações EUA-China.

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CLAREMONT, CALIFORNIA – Elaborar uma estratégia eficaz para competir, cooperar e coexistir com a China será um dos mais difíceis desafios de política externa do presidente eleito dos EUA , Joe Biden . E nos próximos dois meses, as relações sino-americanas provavelmente vão piorar.

Na véspera das eleições, o presidente Donald Trump culpou abertamente a China pela pandemia do COVID-19 que iria agourar seu segundo mandato, fazendo veladas ameaças. Agora que está prestes a sair da Casa Branca, Trump provavelmente aprovará mais medidas punitivas para descarregar sua ira e amarrar as mãos do novo governo Biden. Mesmo que a China não responda da mesma forma aos ataques de despedida de Trump, alguns dos quais podem ser muito dolorosos ou humilhantes demais para serem engolidos, a relação EUA-China que Biden herda poderá ser irremediavelmente prejudicada.

Por causa da atual forte antipatia em relação à China por grande parte do establishment político dos EUA e também da população, Biden dificilmente mudará os princípios fundamentais da política de Trump com relação à China. A China continuará sendo o principal adversário geopolítico dos EUA, e conter sua ascensão será o princípio organizador da política externa dos EUA para o futuro previsível.

Mas a política do governo Biden na China também será substancialmente diferente da abordagem de soma zero de Trump, “EUA em Primeiro Lugar”. O cálculo estratégico de Biden é que o conflito sino-americano será uma maratona de décadas cujo resultado dependerá, antes de mais nada, de os Estados Unidos conseguirem sustentar e fortalecer suas vantagens competitivas: dinamismo econômico, inovação tecnológica e apelo ideológico.

Além de congregar os tradicionais aliados dos EUA, portanto, Biden se concentrará no fortalecimento doméstico dos EUA, tratando de sua dilapidada infraestrutura, inadequada base de capital humano e subfinanciados pesquisa e desenvolvimento. Além disso, enquanto o governo Trump não vê espaço para cooperação com a China, o governo Biden considerará uma colaboração mutuamente benéfica em questões como mudança climática, pandemias e não proliferação nuclear, questões ambas desejáveis e essenciais.

O foco de Biden em elaborar uma estratégia de longo prazo mais matizada e sustentável para a China trará uma pausa imediata e bem-vinda na guerra fria sino-americana. Também é de seu interesse político de curto prazo desacelerar ou até mesmo encerrar a guerra comercial de Trump, porque a economia dos Estados Unidos precisa de toda a ajuda que puder obter para sair da própria crise induzida pela pandemia.

Ironicamente, embora os líderes chineses tenham da mesma forma concluído que agora estão presos em um conflito sem fim com os EUA, a redução das tensões bilaterais também é do interesse político de curto prazo. A China aparentemente acredita que o tempo está a seu favor, porque sua economia continuará a crescer mais rápido do que a dos Estados Unidos na próxima década, mudando gradualmente o equilíbrio geral de poder em seu benefício. Por enquanto, a principal prioridade do presidente chinês Xi Jinping é evitar uma nova escalada de tensões com os EUA enquanto seu país está em uma posição de relativa fraqueza.

Embora os interesses de curto prazo de Biden e Xi possam estar alinhados, chegar a uma redução abrangente nas tensões EUA-China exigirá que ambos invistam uma modesta quantia de capital político e demonstrem sua disposição para estabilizar os laços bilaterais.

O tema mais próximo diz respeito à cultura. A China deve readmitir os jornalistas americanos que expulsou na primavera de 2020, medida essa tomada para retaliar as restrições dos EUA aos jornalistas chineses. A China deve se comprometer ainda mais a dar vistos de longa duração e maior liberdade para os repórteres americanos  trabalharem dentro do país, com os Estados Unidos retribuindo, rescindindo as restrições impostas aos órgãos estatais chineses de notícias.

A reabertura dos consulados seria outro passo positivo. No final de julho, os Estados Unidos ordenaram que a China fechasse seu consulado em Houston, alegando atividades não especificadas de espionagem econômica. Em resposta, a China fechou o consulado americano em Chengdu. Essas táticas de olho por olho intensificaram desnecessariamente o antagonismo mútuo. Retificar esse erro e reverter essas decisões beneficiaria os dois países.

Em seguida, os EUA e a China devem ressaltar sua disposição em cooperar com as mudanças climáticas. O principal negociador da China para o clima e o novo enviado dos EUA para esse assunto, o ex-secretário de Estado John Kerry, devem marcar uma reunião para reafirmar o compromisso de cada país com as metas do Acordo de Paris de 2015 e explorar potenciais iniciativas conjuntas para injetar novo impulso nos esforços globais para combater as mudanças climáticas.

Uma questão mais espinhosa é Taiwan, que ressurgiu como um potencial foco de conflito militar sino-americano. A China, sem dúvida, pressionará Biden para reafirmar a adesão dos Estados Unidos à política de "Uma só China", mas o governo Biden também deve exigir que a China diminua suas ameaças contra Taiwan e reiterar sua preferência por uma resolução pacífica do status da ilha. Com uma diplomacia devidamente coreografada, um compromisso realista poderia resultar em tensões menores em todo o Estreito de Taiwan.

Mas o maior obstáculo para um relacionamento mais estável entre EUA e China é a guerra comercial. Em janeiro de 2020, os dois países concluíram um acordo de “fase um” que interrompeu temporariamente, mas não encerrou, o pior conflito comercial da história recente. Se Trump não revogar o acordo antes de deixar o cargo, Biden e Xi devem reiniciar imediatamente as negociações para evitar uma catástrofe iminente – ou seja, a impossibilidade de a China atender à demanda do governo de Trump de comprar mais US$ 200 bilhões em bens e serviços dos EUA ao longo do período de dois anos de 2020 a 2021. Uma solução realista pode exigir um acordo de fase dois mais abrangente que estenda o prazo para a China cumprir seu compromisso de compra e prometer reformas estruturais que foram deixadas de fora da fase um do acordo.

Este modesto roteiro pode não alterar a trajetória do conflito sino-americano das duas grandes potências. Mas, ao demonstrar sua vontade de cooperar apesar de suas diferenças fundamentais, Biden e Xi podem garantir à comunidade internacional que as cabeças frias prevaleceram nos dois países.

Minxin Pei é Professor de Assuntos Governamentais na Faculdade Claremont McKenna e Membro Não Residente do German Marshall Fund dos Estados Unidos. É autor do livro China’s Crony Capitalism. (Capitalismo Clientelista da China) e primeiro Presidente da Biblioteca do Congresso nas Relações EUA-China.

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