O que o presidente Trump tem contra as máscaras faciais?
Nos eventos de sua campanha à reeleição, Trump parece ridicularizar e desestimular o uso da proteção que vem demonstrando resultados positivos reais
Matheus Doliveira
Publicado em 1 de outubro de 2020 às 17h46.
Última atualização em 2 de outubro de 2020 às 19h31.
Acreditem se quiser – e sei que muita gente vai se recusar a acreditar –, neste momento a cidade de Nova York talvez esteja entre os melhores lugares na América para evitar pegar o coronavírus .
No Estado de Nova York como um todo, o número de pessoas morrendo diariamente de covid-19 só está um pouco acima do número de mortos em acidentes de trânsito. Na cidade de Nova York, cerca de 1% dos testes de coronavírus tem dado resultado positivo, em comparação, por exemplo, aos mais de 12% do Estado da Flórida.
Como Nova York chegou até aqui depois dos dias de pesadelo de abril? Não tem segredo: talvez a imunidade de rebanho parcial seja um fator pequeno, mas de modo geral o Estado fez coisas simples e óbvias para limitar a transmissão do vírus. Os bares estão fechados; comer dentro de estabelecimentos ainda é proibido. Acima de tudo, há um decreto sobre uso de máscaras faciais que as pessoas em geral obedecem.
Nova York não é o único caso de sucesso deste tipo. No início da pandemia , o governador republicano do Arizona, Doug Ducey, fez tudo errado: ele não só manteve os bares abertos, mas se recusou a permitir que os prefeitos (a maioria democratas) das maiores cidades do Estado impusessem decretos municipais obrigando o uso de máscaras. O resultado foi uma enorme alta no número de casos: Durante algumas semanas de julho, o número de pessoas morrendo diariamente no Arizona, cuja população é de 7 milhões de habitantes, foi quase o mesmo do de mortos da União Europeia, com uma população de 446 milhões.
Porém, àquela altura Ducey tinha recuado de suas medidas, e fechou bares e academias do Arizona. Ele não implementou um decreto tornando máscaras obrigatórias no Estado, mas liberou as cidades para decidirem a respeito. E tanto o número de casos quanto de mortes despencou, ainda que não nos níveis de Nova York.
Em outras palavras, nós sabemos o que funciona. O que torna ao mesmo tempo bizarro e assustador que o presidente Trump aparentemente tenha decidido passar algum tempo nas últimas semanas de sua campanha à reeleição ridicularizando e desencorajando o uso de máscaras e outras precauções antipandêmicas.
O comportamento de Trump neste e em outros assuntos é às vezes descrito como uma rejeição da ciência, o que é verdade até certo ponto.
Afinal, o ceticismo dele quanto às máscaras não só bate de frente com o que quase todos os especialistas de fora vêm dizendo, mas também está em choque direto com o que as próprias autoridades de saúde do governo dele – pessoas como Robert Redfield, indicado por Trump para a direção do Centro de Controle e Prevenção de Doenças – têm dito. Se passaram poucas horas entre a declaração de Redfield, em depoimento ao Congresso, sobre máscaras serem “a ferramenta de saúde pública mais importante e poderosa que nós temos” no combate à pandemia, e Trump dizer que “há uma série de problemas com máscaras”.
Contudo, creio que também seja importante entender o ponto que eu vinha tentando fazer com meus exemplos de Nova York e do Arizona: O argumento pró-máscara não se baseia apenas na pesquisa científica detalhada que o cidadão médio pode achar difícil de entender. A essa altura, ele também é confirmado pela experiência viva das regiões que sofreram surtos graves de coronavírus, mas conseguiram controlá-los.
Portanto, como pode o alvoroço anitmáscaras continuar sendo um dos principais fatores impedindo a capacidade da América de lidar com essa pandemia?
Às vezes pode-se ouvir algumas pessoas sugerindo que usar máscara facial é de certo modo incoerente com a cultura individualista da América. E, se isso fosse verdade, seria uma condenação dessa cultura. Afinal, tem algo muito errado com qualquer definição de liberdade que inclua o direito de expôr gratuitamente outras pessoas ao risco de doenças e morte – que é o significado da recusa a utilizar máscaras durante uma pandemia.
Só que eu não acredito que este seja um fenômeno com raízes culturais profundas. Alguns podem minimizar a ampla adesão que tenho visto ao meu redor dizendo que Nova York não representa a América Real™. Porém, mesmo deixando-se de lado o fato de que a América do século 21 é principalmente urbana — quase metade de todos os americanos vive em regiões metropolitanas com mais de um milhão de pessoas —, será que essas pessoas diriam o mesmo do Arizona?
Tenham em mente que, até onde eu me lembro, inúmeras lojas e restaurantes têm colocado placas em suas portas frisando: “Sem camiseta e sem sapato, sem atendimento”. Quantos destes estabelecimentos foram invadidos por hordas de manifestantes descamisados?
Em suma, a agitação antimáscaras não tem a ver de fato com liberdade, individualismo ou cultura. É uma declaração de fidelidade política, orientada por Trump e pelos aliados dele.
Mas por que partidarizar um tema que deveria ser uma questão simples de política de saúde pública? A resposta razoavelmente óbvia é que estamos testemunhando os esforços de um político amoral para salvar sua pouco empolgante campanha de reeleição.
O rebote parcial da economia americana de sua queda no início deste ano não está dando a Trump os dividendos políticos que ele sonhava. As tentativas dele de criar pânico com afirmações sobre ativistas radicais prestes a destruir os subúrbios não têm colado, com os eleitores de modo geral vendo Joe Biden como o melhor candidato para manter a lei e a ordem.
E talvez seja tarde demais para mudar a visão da maioria do eleitorado, que acredita que Trump está desistindo de combater o coronavírus.
Ou seja, a manobra mais recente dele é uma tentativa de convencer as pessoas de que a ameaça do covid-19 acabou. Porém, o uso amplo de máscaras é um lembrete constante de que o vírus continua por aí. Daí o motivo da mais nova investida de Trump contra as medidas preventivas de saúde pública mais simples e sensatas.
Como estratégia política, é provável que este truque não vá funcionar. Mas vai causar um grande número de mortes desnecessárias.
*Paul Krugman é economista, vencedor do prêmio Nobel 2008 e professor da Universidade de Princeton.
Acreditem se quiser – e sei que muita gente vai se recusar a acreditar –, neste momento a cidade de Nova York talvez esteja entre os melhores lugares na América para evitar pegar o coronavírus .
No Estado de Nova York como um todo, o número de pessoas morrendo diariamente de covid-19 só está um pouco acima do número de mortos em acidentes de trânsito. Na cidade de Nova York, cerca de 1% dos testes de coronavírus tem dado resultado positivo, em comparação, por exemplo, aos mais de 12% do Estado da Flórida.
Como Nova York chegou até aqui depois dos dias de pesadelo de abril? Não tem segredo: talvez a imunidade de rebanho parcial seja um fator pequeno, mas de modo geral o Estado fez coisas simples e óbvias para limitar a transmissão do vírus. Os bares estão fechados; comer dentro de estabelecimentos ainda é proibido. Acima de tudo, há um decreto sobre uso de máscaras faciais que as pessoas em geral obedecem.
Nova York não é o único caso de sucesso deste tipo. No início da pandemia , o governador republicano do Arizona, Doug Ducey, fez tudo errado: ele não só manteve os bares abertos, mas se recusou a permitir que os prefeitos (a maioria democratas) das maiores cidades do Estado impusessem decretos municipais obrigando o uso de máscaras. O resultado foi uma enorme alta no número de casos: Durante algumas semanas de julho, o número de pessoas morrendo diariamente no Arizona, cuja população é de 7 milhões de habitantes, foi quase o mesmo do de mortos da União Europeia, com uma população de 446 milhões.
Porém, àquela altura Ducey tinha recuado de suas medidas, e fechou bares e academias do Arizona. Ele não implementou um decreto tornando máscaras obrigatórias no Estado, mas liberou as cidades para decidirem a respeito. E tanto o número de casos quanto de mortes despencou, ainda que não nos níveis de Nova York.
Em outras palavras, nós sabemos o que funciona. O que torna ao mesmo tempo bizarro e assustador que o presidente Trump aparentemente tenha decidido passar algum tempo nas últimas semanas de sua campanha à reeleição ridicularizando e desencorajando o uso de máscaras e outras precauções antipandêmicas.
O comportamento de Trump neste e em outros assuntos é às vezes descrito como uma rejeição da ciência, o que é verdade até certo ponto.
Afinal, o ceticismo dele quanto às máscaras não só bate de frente com o que quase todos os especialistas de fora vêm dizendo, mas também está em choque direto com o que as próprias autoridades de saúde do governo dele – pessoas como Robert Redfield, indicado por Trump para a direção do Centro de Controle e Prevenção de Doenças – têm dito. Se passaram poucas horas entre a declaração de Redfield, em depoimento ao Congresso, sobre máscaras serem “a ferramenta de saúde pública mais importante e poderosa que nós temos” no combate à pandemia, e Trump dizer que “há uma série de problemas com máscaras”.
Contudo, creio que também seja importante entender o ponto que eu vinha tentando fazer com meus exemplos de Nova York e do Arizona: O argumento pró-máscara não se baseia apenas na pesquisa científica detalhada que o cidadão médio pode achar difícil de entender. A essa altura, ele também é confirmado pela experiência viva das regiões que sofreram surtos graves de coronavírus, mas conseguiram controlá-los.
Portanto, como pode o alvoroço anitmáscaras continuar sendo um dos principais fatores impedindo a capacidade da América de lidar com essa pandemia?
Às vezes pode-se ouvir algumas pessoas sugerindo que usar máscara facial é de certo modo incoerente com a cultura individualista da América. E, se isso fosse verdade, seria uma condenação dessa cultura. Afinal, tem algo muito errado com qualquer definição de liberdade que inclua o direito de expôr gratuitamente outras pessoas ao risco de doenças e morte – que é o significado da recusa a utilizar máscaras durante uma pandemia.
Só que eu não acredito que este seja um fenômeno com raízes culturais profundas. Alguns podem minimizar a ampla adesão que tenho visto ao meu redor dizendo que Nova York não representa a América Real™. Porém, mesmo deixando-se de lado o fato de que a América do século 21 é principalmente urbana — quase metade de todos os americanos vive em regiões metropolitanas com mais de um milhão de pessoas —, será que essas pessoas diriam o mesmo do Arizona?
Tenham em mente que, até onde eu me lembro, inúmeras lojas e restaurantes têm colocado placas em suas portas frisando: “Sem camiseta e sem sapato, sem atendimento”. Quantos destes estabelecimentos foram invadidos por hordas de manifestantes descamisados?
Em suma, a agitação antimáscaras não tem a ver de fato com liberdade, individualismo ou cultura. É uma declaração de fidelidade política, orientada por Trump e pelos aliados dele.
Mas por que partidarizar um tema que deveria ser uma questão simples de política de saúde pública? A resposta razoavelmente óbvia é que estamos testemunhando os esforços de um político amoral para salvar sua pouco empolgante campanha de reeleição.
O rebote parcial da economia americana de sua queda no início deste ano não está dando a Trump os dividendos políticos que ele sonhava. As tentativas dele de criar pânico com afirmações sobre ativistas radicais prestes a destruir os subúrbios não têm colado, com os eleitores de modo geral vendo Joe Biden como o melhor candidato para manter a lei e a ordem.
E talvez seja tarde demais para mudar a visão da maioria do eleitorado, que acredita que Trump está desistindo de combater o coronavírus.
Ou seja, a manobra mais recente dele é uma tentativa de convencer as pessoas de que a ameaça do covid-19 acabou. Porém, o uso amplo de máscaras é um lembrete constante de que o vírus continua por aí. Daí o motivo da mais nova investida de Trump contra as medidas preventivas de saúde pública mais simples e sensatas.
Como estratégia política, é provável que este truque não vá funcionar. Mas vai causar um grande número de mortes desnecessárias.
*Paul Krugman é economista, vencedor do prêmio Nobel 2008 e professor da Universidade de Princeton.