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O que Biden deveria fazer a respeito da Venezuela?

Como Biden deveria lidar com a Venezuela, visto que os esforços anteriores para restaurar a democracia e a prosperidade também não deram certo?

Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden (Kevin Lamarque/Reuters)
Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden (Kevin Lamarque/Reuters)
V
Visão Global

Publicado em 8 de março de 2021 às, 11h29.

CAMBRIDGE – Imagine que você está dirigindo por uma estrada e chega a um cruzamento. Você não tem certeza para onde ir, então vira à direita. Depois de algum tempo, a estrada já não está mais pavimentada, é acidentada e íngreme. A primeira coisa que vem à mente é que você deveria ter ido para a esquerda. Mas, verdade seja dita, você não sabe se isso levaria a um beco sem saída. É assim que muitos dentro e fora da Venezuela se sentem a respeito do país hoje.

Afinal, a estratégia do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de fazer pressão máxima contra a ditadura, refletida nas inúmeras sanções impostas ao país, não restaurou a democracia nem enfrentou a catastrófica crise econômica e humanitária do país. De acordo com o Fundo Monetário Internacional, o PIB da Venezuela em 2020 estava mais de 75% abaixo do nível de 2013 – um colapso em tempo de paz sem precedentes em nível global (e pior do que o impacto da maioria das guerras). Não é de admirar que mais de cinco milhões de pessoas, cerca de 15% da população, tenham deixado o país desde 2015.

Com Trump fora, o governo do presidente Joe Biden anunciou uma política externa centrada na defesa da democracia. Como deveria lidar com a Venezuela, visto que os esforços anteriores para restaurar a democracia e a prosperidade também não deram certo?

O regime da Venezuela se afastou da democracia eleitoral quando perdeu a capacidade de ganhar eleições. Em 2010, a oposição conquistou o controle dos governos locais nas principais cidades e estados do país, apenas para ver seu poder e orçamentos esvaziados, à medida que estruturas paralelas, controladas pelo fundador do regime, o presidente Hugo Chávez, foram criadas em seu lugar.

Após a morte de Chávez em 2013, seu sucessor, Nicolás Maduro, foi mais longe. Em 2015, depois que a oposição conquistou uma maioria de dois terços na Assembleia Nacional, a os representantes que saíam, usaram sua condição de pato manco para empacotar o Supremo Tribunal, que então retirou os poderes da nova assembleia. Em 2016, o tribunal também retirou o direito constitucional a um referendo revogatório e, em 2017, manteve a criação de uma assembleia paralela.

Com o caminho eleitoral fechado, os venezuelanos saíram às ruas, levando a uma violenta repressão (que, segundo a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas e o Tribunal Penal Internacional, incluía crimes contra a humanidade). Embora essa pressão tenha obrigado o governo a aceitar negociações em três ocasiões – lideradas pelo Vaticano em 2017, República Dominicana em 2018 e Noruega em 2019 – nenhuma trouxe um retorno à democracia para mais perto. Em vez disso, alguns negociadores foram exilados; um deles, Fernando Albán, morreu sob custódia policial em outubro de 2018.

Além disso, tendo sofrido uma grande derrota nas urnas, o regime decidiu que nunca mais permitiria eleições competitivas. A eleição presidencial de maio de 2018 e a eleição parlamentar de dezembro de 2020 foram tão absurdamente injustas que a oposição as boicotou, e a maioria dos líderes mundiais se recusou a reconhecer os resultados. Quando o mandato de Maduro expirou, cerca de 60 países decidiram reconhecer Juan Guaidó, o Presidente da Assembleia Nacional eleito em 2015, como presidente interino. Agora que o mandato daquela Assembleia Nacional também expirou e o novo não foi reconhecido, um problema de legitimidade enfraqueceu o apoio internacional a Guaidó, especialmente na Europa.

Nesse contexto, um coro de analistas vem argumentando que o desempenho catastrófico da economia venezuelana se deve às sanções internacionais (nós discordamos): em vez de pressão, argumentam, o que o país precisa é de negociações.

Essa visão ingênua interpreta os problemas de maneira errada. O problema fundamental na Venezuela é que a camarilha dominante tem pouco a ganhar com uma negociação: sua “melhor alternativa a um acordo negociado” (BATNA) é melhor do que aquela que eles obteriam permitindo eleições livres e justas. Promessas de benefícios futuros, como regras de compartilhamento de poder, nunca parecem tão atraentes quanto um pássaro na mão.

A experiência de negociações anteriores mostra que o não reconhecimento internacional (que impede Maduro de controlar os ativos da Venezuela no exterior) e as sanções são as únicas fontes de influência sobre o governo. Portanto, o único caminho para uma negociação é tornar o status quo tão desagradável para a camarilha dominante que sua unidade desmorone. Somente um BATNA pior lhes dará algum motivo para negociar. Essa é exatamente a estratégia seguida pela comunidade internacional que levou ao acordo nuclear com o Irã de 2015 e ao fim do apartheid sul-africano.

O não reconhecimento e as sanções são elementos fundamentais de uma estratégia para restabelecer a democracia na Venezuela. As sanções precisam ser reforçadas, tornando-as mais multilaterais e mais onerosas para a elite, e garantindo que protejam os venezuelanos comuns, muitos dos quais têm sido prejudicados.

Isso tem jeito. Mas vale a pena lembrar de dois fatos importantes: primeiro, o maior colapso de todos os tempos nas importações de alimentos e medicamentos aconteceu em 2016, antes das sanções do governo Trump. Em segundo lugar, as sanções forçaram o regime a abandonar seus esforços para monopolizar o comércio internacional. A subsequente liberalização do câmbio e dos preços aumentou a disponibilidade de alimentos e medicamentos importados.

Para fortalecer a sociedade, a comunidade internacional deveria ajudar o governo de Guaidó a transferir ajuda, assim como fez com os profissionais de saúde na linha de frente em setembro de 2020, contornando o bloqueio de Maduro. Também existe tecnologia no governo de Guaidó para fornecer documentos eletrônicos de identidade aos cidadãos, negando ao regime um mecanismo para privar as pessoas de seus direitos.

Finalmente, essas tecnologias também podem ajudar a resolver o problema da legitimidade. Em dezembro de 2020, a Assembleia Nacional que estava de saída organizou, eleições cibernéticas, onde os cidadãos puderam votar com smartphone. Essa mesma tecnologia poderia ser usada para eleger a pessoa ou órgão que seria o presidente interino da Venezuela reconhecido internacionalmente, servindo até que as negociações para restabelecer a democracia possam ter sucesso.

Recentemente, Biden disse ao G7 que: “A democracia não acontece por acaso. Temos que defendê-la, lutar por ela, fortalecê-la, renová-la”. No caso da Venezuela, isso requer uma estratégia perspicaz para afligir os que estão confortáveis ​​e confortar os que estão aflitos. A estrada pode ser acidentada e íngreme, mas, ao contrário da rota alternativa – negociações sem sanções – ela pode, ao menos, levar a algum lugar.

Ricardo Hausmann, ex-ministro do planejamento da Venezuela e ex-economista-chefe do Banco Interamericano de Desenvolvimento, é professor da Escola de Governo John F. Kennedy da Universidade de Harvard e diretor do Laboratório de Crescimento de Harvard. José Ramon Morales-Arilla é doutorando em políticas públicas pela Universidade de Harvard.

Direitos Autorais: Project Syndicate, 2021. www.project-syndicate.org