O ponto de inflexão moral dos Estados Unidos da América
As eleições dos Estados Unidos em 3 de novembro trarão implicações globais tão perigosas quanto a iminente crise climática
Publicado em 3 de novembro de 2020 às, 13h40.
ITHACA – No decorrer do próximo mês, enquanto as folhas de outono aqui no nordeste dos Estados Unidos serão varridas pelos ventos do inverno que se aproxima, o país fará uma escolha tão importante quanto qualquer outra que vimos na história recente. As eleições dos Estados Unidos em 3 de novembro trarão implicações globais tão perigosas quanto a iminente crise climática ou tão promissoras quanto um grande avanço científico que possibilite a prosperidade compartilhada. Mas isso não depende dos caprichos da natureza ou dos mistérios da ciência. Depende dos eleitores dos EUA.
A eleição marcará um ponto de inflexão para os EUA e para o mundo. O fato de o presidente Donald Trump ainda ter alguma chance de ganhar um segundo mandato de quatro anos me deixa perplexo. Por que os eleitores e líderes republicanos o apoiam?
Quando minha esposa e eu nos mudamos de Nova Délhi para uma pequena cidade da América em 1994, com dois filhos pequenos que teriam que se adaptar a uma nova escola e fazer novos amigos, ficamos apreensivos. Mas também nos surpreendemos com a rapidez com que encontramos um novo lar e aceitação geral, não apenas em Ithaca e cidades vizinhas como Trumansburg, que são conhecidas por serem progressistas e abertas (ou, na linguagem de Trump, "comunistas"), mas também nas cidades e subúrbios de Nova York, Nova Jersey e Pensilvânia.
Muitas dessas áreas são tradicionalmente republicanas, e não faltam outdoors e cartazes expressando essa lealdade. Mas quando pare em uma pequena loja ou lanchonete e você quase sempre será recebido de forma amigável. Ao conversar com as pessoas, você descobrirá que, embora suas opiniões sobre política e economia possam ser diferentes, elas foram acolhedoras, corteses e decentes. Mais tarde, quando me mudei para Washington, DC, tive muitas diferenças ideológicas com os líderes do Partido Republicano que conheci, mas não entendi isso como um problema. Como observa o economista ganhador do Prêmio Nobel, Amartya Sen, em seu livro The Argumentative Indian (O Indiano que Argumenta), argumentar e contestar são elementos básicos da democracia.
Ao debater com republicanos, pude ver que eles eram genuinamente comprometidos com as próprias ideias e seguiam uma bússola moral. Gostei de saber que o partido deles tem uma grande história, e isso foi ainda confirmado por minha experiência oficial e pessoal quando trabalhei no Banco Mundial.
Fiquei muito ansioso quando conheci Larry Pressler, senador republicano dos Estados Unidos que representou a Dakota do Sul de 1979 a 1997 e que havia assumido posições sobre comércio internacional, negócios e política externa que não compartilhei. No entanto, quanto mais eu conhecia Larry, mais ficava impressionado com sua decência, honestidade e adesão aos princípios. Fiquei contente ao saber que ele estava disposto a fazer sacrifícios pessoais por princípios morais. Minha esposa e eu nos tornamos amigos íntimos dele e de sua esposa, Harriet, e não fiquei surpreso quando ele abertamente se opôs a Donald Trump nas eleições de 2016.
Na verdade, quanto mais ouço Trump, mais me convenço de que ele não é o tipo de republicano que aprendi a conhecer. Ele representa a si mesmo e nada mais. Quando questionado por não pagar quase nenhum imposto de renda na vida, sua resposta foi “Isso me torna mais inteligente”, o que implica que as pessoas que pagam impostos são estúpidas. À luz desses e de tantos outros comentários, como os republicanos com algum princípio podem apoiá-lo?
Certamente, não é fácil distanciar-se do chefe de um partido. No entanto, muitos líderes republicanos o fizeram. O ex-presidente do Comitê Nacional Republicano, Michael Steele, o ex-governador de Ohio John Kasich, a ex-administradora da Agência de Proteção Ambiental, Christine Todd Whitman, o ex-secretário de Estado, Colin Powell, e Mitt Romney, agora senador por Utah, todos mostraram coragem moral em relação a Trump.
Pode-se gostar ou não da chapa democrata. Pessoalmente, considero o ex-vice-presidente Joe Biden e a senadora Kamala Harris, da Califórnia, muito moderados. Eu teria preferido uma agenda mais radical. Mas pelo menos representam alguma coisa. Biden não foge dos impostos nem se vangloria por isso. Ele não usa linguagem chula nem rebaixa os outros. Ele não irá constranger, de modo rotineiro, os Estados Unidos no cenário global. Biden e Harris têm empatia por pessoas comuns.
Eu não esperaria que um governo Biden desse início à uma mudança radical na política dos EUA. Mas com certeza restauraria um senso de decoro, decência e estabilidade no comando, e esses atributos são necessários com urgência neste momento.
Os republicanos deveriam perceber que se Biden vencer semana que vem, eles ainda podem competir por votos futuros e buscar retornar ao poder por meio do processo democrático. Caso, em 2024, Biden perdesse, deixaria o cargo com dignidade, como deve acontecer em qualquer democracia. Se Trump vencer, no entanto, o republicanismo como o conhecemos não mais existirá. Os valores que uma vez vi em exibição naquela pequena cidade dos Estados Unidos e os princípios pelos quais o Partido Republicano defende há tanto tempo terão sido abandonados.
Dada a importância dos EUA como fonte de liderança global, não é de se admirar que tantas pessoas boas em todo o mundo estejam torcendo para que Biden ganhe, e ganhe de lavada. Os republicanos que ainda defendem algo deveriam fazer o mesmo e declarar abertamente seu apoio a Biden. Com a posição moral dos EUA agora em jogo, eles devem isso ao seu país.
Kaushik Basu, ex-Economista-Chefe do Banco Mundial e Consultor-Chefe de Economia do Governo da Índia, é professor de Economia na Universidade Cornell e Membro Sênior não residente da Brookings Institution.