Exame Logo

Lições de uma Casa Branca supercontagiosa

Adotar as medidas mais simples para proteger os outros – como usar proteção facial em locais públicos – está se tornando uma discussão partidária

Donald Trump: o presidente está se recuperando da covid-19. (Erin Scott/Reuters)
MD

Matheus Doliveira

Publicado em 19 de outubro de 2020 às 14h54.

Como quase todo mundo atento ao noticiário, passei os últimos dias grudado em uma tela ou outra, no aguardo da próxima bomba detonar. Mas o que nós estamos descobrindo com isso tudo? Sem dúvida, estamos descobrindo que o presidente Trump e aqueles que o cercam mentem sobre tudo e não se importam nem um pouco com colocar outras pessoas em risco. Mas isso é mais uma confirmação do que uma revelação – nós basicamente já sabíamos disso, ainda que não esperássemos uma evidência tão explícita. O que há de realmente novo?

Bem, uma conclusão a que estou chegando é que eu e a maioria dos que pensaram sobre o tema estivemos errados sobre o aquecimento global. É sério. Peço só um pouco de paciência.

Não quero dizer que nós estivéssemos errados sobre a ciência. Não sou climatologista, mas meu campo é uma área, economia, em que pesquisadores sérios têm de lidar com um monte de pseudoanálises vindo de picaretas com motivação política. Ou seja, eu sei que cara tem tanto conhecimento genuíno quanto pilantragem genuína, e não tenho nenhuma dúvida sobre a realidade e o perigo do aquecimento global.

Onde eu estou começando a achar que erramos foi na política.

Até alguns meses atrás eu teria dito que a política da ação climática era difícil, apesar do consenso científico, por causa do espaço e tempo. Espaço: o dano provocado pelas emissões de gases do efeito estufa recai sobre o planeta como um todo, e não nos nossos vizinhos de porta, o que dificulta motivar uma ação política contra os poluidores. Tempo: as consequências das emissões se desenrolam ao longo de várias décadas, o que torna ainda mais difícil fazer com que as pessoas ajam agora.

Mas lidar com a covid-19, ainda que tenha forte relação conceitual com o aquecimento global – assim como a emissão de gases do efeito estufa, comportamento irresponsável durante uma pandemia é uma “externalidade”, um custo que você impõe a outras pessoas –, é tudo que lidar com as mudanças climáticas não é.

As consequências de uma política pandêmica ruim levam meses, e não décadas, para se tornarem óbvias – levou cerca de apenas dois meses para os tuítes de “LIBERTEM” de Trump, e a reabertura prematura dos EUA inspirada por eles, produzirem uma disparada mortífera do vírus no Cinturão do Sol americano.

E se mostrou relativamente fácil vincular o estrago coletivo a atitudes específicas. O coronavírus , estamos descobrindo, não é disseminado em maior parte por aquelas pessoas irritantes que não conseguem entender que as máscaras têm de cobrir o nariz, e não só a boca de quem as usa; em vez disso, os maiores culpados são uma relativa dúzia de eventos supercontagiosos, em que grandes números de pessoas se agrupam ignorando precauções básicas de segurança.

Ou seja, isso deveria ser simples. Causa e efeito estão ligados de modo muito claro, ou seja, não devia ser difícil criar um consenso político nos Estados Unidos quanto a fazer a coisa certa.

No entanto, o que estamos de fato vendo é irresponsabilidade e negação. Adotar até mesmo as medidas mais simples e menos caras para proteger os outros – como usar proteção facial em locais públicos – está se tornando uma discussão partidária. E o partido no poder não só vem se recusando a dar fim a eventos potencialmente supercontagiosos como tem ele próprio promovido tais eventos. Gerações futuras vão ter dificuldade de acreditar que o evento para a juíza Amy Coney Barrett no Rose Garden foi realizado em meio a uma pandemia; eles vão ter ainda mais dificuldade de acreditar que Trump e cia. dão todos os sinais de não terem aprendido nada com a onda de infecções que vêm varrendo filas de republicanos.

A lição que eu tiro disso é que nossa disfunção política é ainda pior, e nossa habilidade de estar à altura do desafio ainda menor, do que eu imaginava. É difícil olhar para o que vem acontecendo neste momento sem experimentar uma sensação de desespero.

-(Paul Krugman/Exame)

Veja também

Como quase todo mundo atento ao noticiário, passei os últimos dias grudado em uma tela ou outra, no aguardo da próxima bomba detonar. Mas o que nós estamos descobrindo com isso tudo? Sem dúvida, estamos descobrindo que o presidente Trump e aqueles que o cercam mentem sobre tudo e não se importam nem um pouco com colocar outras pessoas em risco. Mas isso é mais uma confirmação do que uma revelação – nós basicamente já sabíamos disso, ainda que não esperássemos uma evidência tão explícita. O que há de realmente novo?

Bem, uma conclusão a que estou chegando é que eu e a maioria dos que pensaram sobre o tema estivemos errados sobre o aquecimento global. É sério. Peço só um pouco de paciência.

Não quero dizer que nós estivéssemos errados sobre a ciência. Não sou climatologista, mas meu campo é uma área, economia, em que pesquisadores sérios têm de lidar com um monte de pseudoanálises vindo de picaretas com motivação política. Ou seja, eu sei que cara tem tanto conhecimento genuíno quanto pilantragem genuína, e não tenho nenhuma dúvida sobre a realidade e o perigo do aquecimento global.

Onde eu estou começando a achar que erramos foi na política.

Até alguns meses atrás eu teria dito que a política da ação climática era difícil, apesar do consenso científico, por causa do espaço e tempo. Espaço: o dano provocado pelas emissões de gases do efeito estufa recai sobre o planeta como um todo, e não nos nossos vizinhos de porta, o que dificulta motivar uma ação política contra os poluidores. Tempo: as consequências das emissões se desenrolam ao longo de várias décadas, o que torna ainda mais difícil fazer com que as pessoas ajam agora.

Mas lidar com a covid-19, ainda que tenha forte relação conceitual com o aquecimento global – assim como a emissão de gases do efeito estufa, comportamento irresponsável durante uma pandemia é uma “externalidade”, um custo que você impõe a outras pessoas –, é tudo que lidar com as mudanças climáticas não é.

As consequências de uma política pandêmica ruim levam meses, e não décadas, para se tornarem óbvias – levou cerca de apenas dois meses para os tuítes de “LIBERTEM” de Trump, e a reabertura prematura dos EUA inspirada por eles, produzirem uma disparada mortífera do vírus no Cinturão do Sol americano.

E se mostrou relativamente fácil vincular o estrago coletivo a atitudes específicas. O coronavírus , estamos descobrindo, não é disseminado em maior parte por aquelas pessoas irritantes que não conseguem entender que as máscaras têm de cobrir o nariz, e não só a boca de quem as usa; em vez disso, os maiores culpados são uma relativa dúzia de eventos supercontagiosos, em que grandes números de pessoas se agrupam ignorando precauções básicas de segurança.

Ou seja, isso deveria ser simples. Causa e efeito estão ligados de modo muito claro, ou seja, não devia ser difícil criar um consenso político nos Estados Unidos quanto a fazer a coisa certa.

No entanto, o que estamos de fato vendo é irresponsabilidade e negação. Adotar até mesmo as medidas mais simples e menos caras para proteger os outros – como usar proteção facial em locais públicos – está se tornando uma discussão partidária. E o partido no poder não só vem se recusando a dar fim a eventos potencialmente supercontagiosos como tem ele próprio promovido tais eventos. Gerações futuras vão ter dificuldade de acreditar que o evento para a juíza Amy Coney Barrett no Rose Garden foi realizado em meio a uma pandemia; eles vão ter ainda mais dificuldade de acreditar que Trump e cia. dão todos os sinais de não terem aprendido nada com a onda de infecções que vêm varrendo filas de republicanos.

A lição que eu tiro disso é que nossa disfunção política é ainda pior, e nossa habilidade de estar à altura do desafio ainda menor, do que eu imaginava. É difícil olhar para o que vem acontecendo neste momento sem experimentar uma sensação de desespero.

-(Paul Krugman/Exame)

Acompanhe tudo sobre:CoronavírusDonald TrumpEstados Unidos (EUA)

Mais lidas

exame no whatsapp

Receba as noticias da Exame no seu WhatsApp

Inscreva-se