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Direito Internacional e os desafios do Brexit e de Johnson

O principal desafio é reconciliar o Brexit com o acordo que trouxe paz à Irlanda do Norte e comprometeu o Reino Unido a manter uma fronteira aberta

Boris Johnson: o primeiro-ministro sobreviveu no mês passado a uma moção de censura apresentada por conservadores rebeldes. (Molly Darlington/Reuters)
MD

Matheus Doliveira

Publicado em 23 de setembro de 2020 às 14h37.

Última atualização em 23 de setembro de 2020 às 14h39.

LONDRES – Sempre que maior e melhor se unem para aprovar ou condenar algo, meu impulso é ir contra. Portanto, acho difícil juntar-me ao coro de indignação moral com a recente decisão do governo do Reino Unido de “violar a lei internacional” ao alterar seu Acordo de Retirada (WA) com a União Europeia.

A “violação” do WA é um blefe calculado com base na crença do governo de que só poderá honrar o resultado do referendo do Brexit de 2016 se trapacear muito. O principal problema é reconciliar o WA com o Acordo da Sexta-feira Santa de 1998, que trouxe paz à Irlanda do Norte e comprometeu o governo do Reino Unido a manter uma fronteira aberta entre Irlanda do Norte e República da Irlanda.

O primeiro-ministro Boris Johnson negociou e assinou o WA e deve estar ciente do risco implícito de a Irlanda do Norte continuar sujeita aos regulamentos alfandegários da UE e à maioria das regras do mercado único. Mas em sua determinação de “produzir o Brexit”, Johnson ignorou essa pequena dificuldade local, apressou o acordo no Parlamento e venceu as eleições gerais de dezembro de 2019. Ele agora deve recuar furiosamente para preservar a unidade econômica e política do Reino Unido, ao mesmo tempo em que culpa a UE por ter de fazer isso.

Apesar de Johnson ter sido o principal autor dessa barafunda legal não altera o fato de que o governo do Reino Unido se comprometeu a honrar o decreto popular de deixar a UE e ter de encontrar um mecanismo político para fazer isso acontecer. A Lei do Mercado Interno agora perante o parlamento é tanto esse mecanismo quanto a última jogada de Johnson para concluir o Brexit.

O projeto de lei dá ao governo o poder, com o consentimento do Parlamento, de alterar ou ignorar elementos do Protocolo da Irlanda do Norte do WA, que os ministros temem que possa resultar em "novas barreiras comerciais [...] entre Grã-Bretanha e Irlanda do Norte".

O governo admitiu que o projeto de lei viola o direito internacional, mas afirma que suas disposições para proibir elementos do protocolo "não deveriam ser consideradas ilegais". Isso é discutível e ainda pode ser contestado nos tribunais. Mas foi a violação do “direito internacional” que principalmente suscitou a indignação moral dos críticos.

Em um artigo no The Times, o ex-procurador-geral do Reino Unido Geoffrey Cox argumentou que era “axiomático” que o governo devesse manter sua palavra para outros países (meu grifo), “mesmo que as consequências sejam intragáveis”. Não fazer isso, escreveu Cox, diminuiria a "fé, honra e crédito" do Reino Unido. A assinatura do WA com a UE obrigou o governo a aceitar "todas as consequências normais e previsíveis de [sua] implementação".

Mas não é “axiomático” que um governo deva manter sua palavra para com outros estados-nação, mesmo quando isso esteja codificado em tratados. Fazer isso é desejável, mas os estados geralmente não o desejam, por algumas óbvias razões.

Primeiro, ninguém pode prever com precisão todas as consequências de suas ações. A construção de barreiras alfandegárias no Mar da Irlanda não é uma “implicação inevitável” da assinatura do WA, como Cox agora afirma que é, porque o acordo pressupõe mais negociações sobre esse ponto.

Em segundo lugar, o pronunciamento de Cox implica que a palavra de um governo dada a outros governos vale mais do que a palavra dada a seu próprio povo. Mas o governo do ex-primeiro-ministro David Cameron, bem como os líderes dos principais partidos da oposição, prometeram respeitar o resultado do referendo do Brexit.

Terceiro, Cox e outros argumentaram que, em vez de violar o direito internacional, o governo deveria acionar o mecanismo de resolução de disputas do WA para desafiar as consequências desagradáveis ​​do acordo à medida que e quando elas ocorrerem. Mas ter que sofrer danos antes de fazer qualquer coisa a respeito é uma doutrina estranha.

Finalmente, Cox parece tratar o direito internacional como equivalente ao direito nacional, quando na verdade é inerentemente menos vinculativo. Isso ocorre porque o direito internacional é menos legítimo; não existe um governo mundial com o direito de emitir e fazer cumprir a legislação.

O direito internacional é principalmente um conjunto de “obrigações” de tratados internacionais entre Estados soberanos. Romper um é certamente um assunto grave: acertadamente acarreta uma penalidade na forma de perda de reputação, e o Reino Unido pode agora terminar com um acordo comercial menos favorável com a UE. Se o Reino Unido deveria ter arriscado sua reputação neste caso específico, não é a questão. Agora que o fez, o caso deve ser arguido com base na necessidade política, não com base no princípio da obrigação legal.

Governos e formuladores de políticas frequentemente violam ou fogem do direito internacional por meio de planejadas e improvisadas rotas de fuga. Isso ocorre porque os instrumentos do tratado são necessariamente estáticos, enquanto as condições mudam. Normalmente, faz mais sentido permitir derrogações excepcionais do que desembaraçar uma teia de tratados.

Por exemplo, muitos governos repudiaram explícita ou implicitamente as dívidas nacionais, sendo o exemplo mais conhecido o repúdio dos bolcheviques em 1918 às dívidas da Rússia czarista, devidas principalmente a franceses detentores de títulos. Mais frequentemente, os devedores “combinam” com seus credores para pagar sua dívida total ou parcialmente fictícia (como a Alemanha fez com suas obrigações de reparação na década de 1920).

Da mesma forma, o Banco Central Europeu está proibido pelo Artigo 123 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia de adquirir instrumentos de dívida de seus governos membros. Mas o ex-presidente do BCE, Mario Draghi, encontrou uma maneira de contornar isso para iniciar a flexibilização quantitativa em 2015.

Eu sou muito mais simpático ao argumento de que Johnson assinou o WA de má fé, sabendo que ele provavelmente tentaria anular o Protocolo da Irlanda do Norte. O que os críticos parecem não entender é que tirar o Reino Unido da UE iria sempre demandar um grande volume de trapaça legal.

A confusão legal foi uma consequência da política de retirada e, especificamente, da tensão entre o Brexit e a exigência do Acordo da Sexta-Feira Santa de uma fronteira aberta entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda (um estado membro da UE). A primeira-ministra Theresa May tropeçou nessa pedra, enquanto o governo de Johnson empurrou o problema para o período de transição pós-Brexit que termina em 31 de dezembro de 2020.

Com o prazo para a conclusão de um acordo comercial entre Reino Unido e UE se aproximando, Johnson espera que a Lei do Mercado Interno pressione a UE para criar uma fórmula que garanta uma fronteira livre de alfândega no Mar da Irlanda. É, pura e simplesmente, um estratagema de negociação,.

Se é uma boa tática de negociação, é discutível. Mas os críticos devem defender sua posição no contexto do processo de negociação como um todo, e sem recorrer ao fetichismo legal. É por isso que advogados nunca deveriam governar um país.

Em sua declaração final na conferência de Bretton Woods em 1944, John Maynard Keynes descreveu o advogado ideal: “Eu quero que ele me diga como fazer o que eu acho sensato e, acima de tudo, que invente meios pelos quais isso seja legal para que eu continue sendo sensato em condições imprevistas daqui a alguns anos.” Em breve saberemos se o blefe de Johnson atende a esse padrão de sensatez.

Robert Skidelsky, Membro da Casa Britânica dos Lordes, é Professor Emérito de Economia Política da Warwick University.

Tradução: Anna Maria Dalle Luche.

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LONDRES – Sempre que maior e melhor se unem para aprovar ou condenar algo, meu impulso é ir contra. Portanto, acho difícil juntar-me ao coro de indignação moral com a recente decisão do governo do Reino Unido de “violar a lei internacional” ao alterar seu Acordo de Retirada (WA) com a União Europeia.

A “violação” do WA é um blefe calculado com base na crença do governo de que só poderá honrar o resultado do referendo do Brexit de 2016 se trapacear muito. O principal problema é reconciliar o WA com o Acordo da Sexta-feira Santa de 1998, que trouxe paz à Irlanda do Norte e comprometeu o governo do Reino Unido a manter uma fronteira aberta entre Irlanda do Norte e República da Irlanda.

O primeiro-ministro Boris Johnson negociou e assinou o WA e deve estar ciente do risco implícito de a Irlanda do Norte continuar sujeita aos regulamentos alfandegários da UE e à maioria das regras do mercado único. Mas em sua determinação de “produzir o Brexit”, Johnson ignorou essa pequena dificuldade local, apressou o acordo no Parlamento e venceu as eleições gerais de dezembro de 2019. Ele agora deve recuar furiosamente para preservar a unidade econômica e política do Reino Unido, ao mesmo tempo em que culpa a UE por ter de fazer isso.

Apesar de Johnson ter sido o principal autor dessa barafunda legal não altera o fato de que o governo do Reino Unido se comprometeu a honrar o decreto popular de deixar a UE e ter de encontrar um mecanismo político para fazer isso acontecer. A Lei do Mercado Interno agora perante o parlamento é tanto esse mecanismo quanto a última jogada de Johnson para concluir o Brexit.

O projeto de lei dá ao governo o poder, com o consentimento do Parlamento, de alterar ou ignorar elementos do Protocolo da Irlanda do Norte do WA, que os ministros temem que possa resultar em "novas barreiras comerciais [...] entre Grã-Bretanha e Irlanda do Norte".

O governo admitiu que o projeto de lei viola o direito internacional, mas afirma que suas disposições para proibir elementos do protocolo "não deveriam ser consideradas ilegais". Isso é discutível e ainda pode ser contestado nos tribunais. Mas foi a violação do “direito internacional” que principalmente suscitou a indignação moral dos críticos.

Em um artigo no The Times, o ex-procurador-geral do Reino Unido Geoffrey Cox argumentou que era “axiomático” que o governo devesse manter sua palavra para outros países (meu grifo), “mesmo que as consequências sejam intragáveis”. Não fazer isso, escreveu Cox, diminuiria a "fé, honra e crédito" do Reino Unido. A assinatura do WA com a UE obrigou o governo a aceitar "todas as consequências normais e previsíveis de [sua] implementação".

Mas não é “axiomático” que um governo deva manter sua palavra para com outros estados-nação, mesmo quando isso esteja codificado em tratados. Fazer isso é desejável, mas os estados geralmente não o desejam, por algumas óbvias razões.

Primeiro, ninguém pode prever com precisão todas as consequências de suas ações. A construção de barreiras alfandegárias no Mar da Irlanda não é uma “implicação inevitável” da assinatura do WA, como Cox agora afirma que é, porque o acordo pressupõe mais negociações sobre esse ponto.

Em segundo lugar, o pronunciamento de Cox implica que a palavra de um governo dada a outros governos vale mais do que a palavra dada a seu próprio povo. Mas o governo do ex-primeiro-ministro David Cameron, bem como os líderes dos principais partidos da oposição, prometeram respeitar o resultado do referendo do Brexit.

Terceiro, Cox e outros argumentaram que, em vez de violar o direito internacional, o governo deveria acionar o mecanismo de resolução de disputas do WA para desafiar as consequências desagradáveis ​​do acordo à medida que e quando elas ocorrerem. Mas ter que sofrer danos antes de fazer qualquer coisa a respeito é uma doutrina estranha.

Finalmente, Cox parece tratar o direito internacional como equivalente ao direito nacional, quando na verdade é inerentemente menos vinculativo. Isso ocorre porque o direito internacional é menos legítimo; não existe um governo mundial com o direito de emitir e fazer cumprir a legislação.

O direito internacional é principalmente um conjunto de “obrigações” de tratados internacionais entre Estados soberanos. Romper um é certamente um assunto grave: acertadamente acarreta uma penalidade na forma de perda de reputação, e o Reino Unido pode agora terminar com um acordo comercial menos favorável com a UE. Se o Reino Unido deveria ter arriscado sua reputação neste caso específico, não é a questão. Agora que o fez, o caso deve ser arguido com base na necessidade política, não com base no princípio da obrigação legal.

Governos e formuladores de políticas frequentemente violam ou fogem do direito internacional por meio de planejadas e improvisadas rotas de fuga. Isso ocorre porque os instrumentos do tratado são necessariamente estáticos, enquanto as condições mudam. Normalmente, faz mais sentido permitir derrogações excepcionais do que desembaraçar uma teia de tratados.

Por exemplo, muitos governos repudiaram explícita ou implicitamente as dívidas nacionais, sendo o exemplo mais conhecido o repúdio dos bolcheviques em 1918 às dívidas da Rússia czarista, devidas principalmente a franceses detentores de títulos. Mais frequentemente, os devedores “combinam” com seus credores para pagar sua dívida total ou parcialmente fictícia (como a Alemanha fez com suas obrigações de reparação na década de 1920).

Da mesma forma, o Banco Central Europeu está proibido pelo Artigo 123 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia de adquirir instrumentos de dívida de seus governos membros. Mas o ex-presidente do BCE, Mario Draghi, encontrou uma maneira de contornar isso para iniciar a flexibilização quantitativa em 2015.

Eu sou muito mais simpático ao argumento de que Johnson assinou o WA de má fé, sabendo que ele provavelmente tentaria anular o Protocolo da Irlanda do Norte. O que os críticos parecem não entender é que tirar o Reino Unido da UE iria sempre demandar um grande volume de trapaça legal.

A confusão legal foi uma consequência da política de retirada e, especificamente, da tensão entre o Brexit e a exigência do Acordo da Sexta-Feira Santa de uma fronteira aberta entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda (um estado membro da UE). A primeira-ministra Theresa May tropeçou nessa pedra, enquanto o governo de Johnson empurrou o problema para o período de transição pós-Brexit que termina em 31 de dezembro de 2020.

Com o prazo para a conclusão de um acordo comercial entre Reino Unido e UE se aproximando, Johnson espera que a Lei do Mercado Interno pressione a UE para criar uma fórmula que garanta uma fronteira livre de alfândega no Mar da Irlanda. É, pura e simplesmente, um estratagema de negociação,.

Se é uma boa tática de negociação, é discutível. Mas os críticos devem defender sua posição no contexto do processo de negociação como um todo, e sem recorrer ao fetichismo legal. É por isso que advogados nunca deveriam governar um país.

Em sua declaração final na conferência de Bretton Woods em 1944, John Maynard Keynes descreveu o advogado ideal: “Eu quero que ele me diga como fazer o que eu acho sensato e, acima de tudo, que invente meios pelos quais isso seja legal para que eu continue sendo sensato em condições imprevistas daqui a alguns anos.” Em breve saberemos se o blefe de Johnson atende a esse padrão de sensatez.

Robert Skidelsky, Membro da Casa Britânica dos Lordes, é Professor Emérito de Economia Política da Warwick University.

Tradução: Anna Maria Dalle Luche.

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