As falhas individualistas da economia
A economia poderia avançar muito se flexibilizasse um dos seus pressupostos mais preciosos: o individualismo metodológico
Da Redação
Publicado em 3 de abril de 2021 às 16h53.
Última atualização em 3 de abril de 2021 às 16h54.
CAMBRIDGE – A economia poderia avançar muito se flexibilizasse um dos seus pressupostos mais preciosos: o individualismo metodológico, ou a ideia de que qualquer explicação precisa estar associada a indivíduos que tomam decisões sensatas. Este requisito faz com que a disciplina esteja numa posição de enorme desvantagem em comparação às ciências naturais, porque impede a evolução da compreensão do relacionamento entre os níveis micro e macro.
A física explica todos os comportamentos assumindo algumas leis fundamentais ao nível (muito) micro. Os quarks formam os prótons e os nêutrons que, juntamente com os elétrons, criam os átomos, que por sua vez dão origem às moléculas e macromoléculas como o ADN, os genes e as proteínas. Estas produzem células, seres multicelulares, e ecossistemas inteiros que vivem num planeta que gira em torno do sol. Em teoria, deveremos conseguir explicar tudo isto se voltarmos às leis fundamentais da física das partículas. Na prática, isto não é apenas impossível, mas é também desnecessário, o que facilita o progresso.
Conhecemos todos estes níveis porque os cientistas os analisaram e descreveram com o máximo de detalhes, permitindo a outros cientistas explicá-los em termos determinantes de mais nível inferior. Cada camada pode, de alguma forma, ser relacionada com a camada inferior, e isto continuamente até chegarmos novamente aos quarks e elétrons.
Embora dar um passo atrás não seja simples, porém quase sempre viável, avançar nem que seja um passo, é difícil. Podemos chegar à sequência de aminoácidos de uma proteína a partir do gene que a codifica, mas ainda não seremos capazes de definir a forma tridimensional que a proteína assumirá, que é fundamental para determinar a sua função.
O que dificulta ainda mais as coisas é um fenômeno conhecido como emergência, que descreve a criação de uma propriedade de um nível mais elevado que não existe na ação anterior. Por exemplo, os diamantes e o grafeno têm propriedades muito diferentes, mas são quimicamente idênticos. Os neurônios dão origem à consciência, mas apenas ao nível de milhões de neurônios ligados em rede: nunca saberíamos disso se olhássemos apenas para dentro do neurónio.
Compare-se isto com a economia atual. O individualismo metodológico requer que todos os fenômenos possam, em última análise, ser explicados em termos de indivíduos que tomam decisões para as quais têm razões justificadas. O estudo de regularidades nos dados agregados (típico da macroeconomia, antes da década de 1970) é por esse motivo pouco interessante se essas não puderem ser relacionadas com o comportamento racional dos indivíduos.
Como argumenta o economista ganhador do Prêmio Nobel, Robert Lucas, os governos não poderiam confiar na estabilidade destas regularidades se as usassem para fundamentar suas políticas, porque os indivíduos responderiam a essas medidas de tal forma que comprometeriam as regularidades. Os dados podem sugerir uma correlação entre inflação e desemprego, mas se os governos tentassem “comprar” menos desemprego através de um pouco mais de inflação, as pessoas alterariam as suas expectativas relativamente à inflação de maneira a tornar fútil todo o exercício.
Por conseguinte, profissionais da economia desenvolveram modelos com robustos micro alicerces, centrados em indivíduos que tomam decisões racionais e que respondem a incentivos bem compreendidos. Para progredirem, respeitando ao mesmo tempo esses requisitos, esses profissionais tiveram que simplificar ou menosprezar as camadas de interação entre o indivíduo e os resultados agregados que tentavam explicar. Uma forma comum de se conseguir isso é assumir que todos os indivíduos são idênticos, ou que são heterogéneos de forma previsível. Mas exigir que todas as explicações econômicas sejam baseadas no comportamento individual é como tentar explicar o aquecimento global com física quântica.
Felizmente, esta abordagem metodológica está desmoronando. Ao nível micro, a economia comportamental afetou a crença no pressuposto da racionalidade individual. Numa série de artigos, Xavier Gabaix, da Universidade de Harvard, demonstrou que todas as premissas básicas da micro e da macroeconomia mudam muito se assumirmos que existem limites à racionalidade dos agentes. Da mesma forma, um colega de Gabaix em Harvard, Joseph Henrich, defende que o modo como as pessoas tomam decisões não é universal, mas que ao contrário, depende da cultura de uma sociedade.
Mais relacionada com o nosso argumento está a questão de partirmos dos indivíduos que tomam decisões e chegarmos ao nível agregado. O extremamente talentoso e já falecido economista de Harvard, Emmanuel Farhi, em colaboração com David Baqaee, da UCLA, mostrou que precisamos considerar a estrutura (não explicada) de entradas e saídas da estrutura produtiva para compreendermos as flutuações macroeconômicas: não podemos derivá-las apenas a partir de agentes representativos individuais.
De mesma forma, Pol Antràs, de Harvard, (com coautores) ultimamente está reconstruindo a teoria do comércio internacional com o pressuposto de que o mundo está organizado em cadeias globais de valor, e não em mercados tradicionais. Este pressuposto aparentemente pouco importante provoca enormes diferenças, tanto teóricas como em termos das implicações para a política do comércio. Só agora começamos a compreender o que isso significa na prática porque, até agora, nunca nos preocupamos em coletar os necessários dados entre empresas.
Vista dessa perspectiva, a teoria neoclássica do crescimento econômico parece pitoresca. Sua principal contribuição, nas palavras do economista ganhador do Prêmio Nobel, Paul Romer, é demonstrar como é difícil fundamentar o crescimento de longo prazo na teoria. Infelizmente, a teoria neoclássica tem sido quase inútil para todos os efeitos práticos, principalmente porque ignora de forma gritante as mesoestruturas que existem entre indivíduos e resultados econômicos agregados.
Felizmente, alguns pesquisadores tentaram desvendar essas mesoestruturas, utilizando grandes quantidades de dados com o estudo das redes e outras técnicas. Por exemplo, identificaram complexas estruturas de complementaridades de competências e padrões de afinidade, dentro de indústrias, classes tecnológicas e áreas científicas.
Estes estudos demonstram que as mesoestruturas são importantes para a forma como as cidades e os países crescem e como as tecnologias se desenvolvem. Dada a ortodoxia atual, esses artigos não puderam ser publicados em publicações científicas de economia, porque não conseguem demonstrar o modo como essas estruturas estão relacionadas com indivíduos que tomam decisões sob determinadas restrições. Porém, foram publicadas em veículos científicos prestigiados como a Nature e a Science , bem como no Journal of Urban Economics e na Research Policy . Consequentemente, outros pesquisadores podem colocar questões sobre o modo como estas mesoestruturas surgem, por exemplo, da tomada individual de decisões.
Nas últimas décadas, a economia deixou de se definir pelas questões que coloca, para se definir pelos métodos que utiliza. Ao restringir essa abordagem ao individualismo metodológico, comprometeu o próprio progresso.
Ricardo Hausmann, ex-Ministro de Planejamento da Venezuela e ex-Economista-Chefe do Banco Interamericano de Desenvolvimento, é Professor da Escola de Governo John F. Kennedy de Harvard e Diretor do Laboratório de Crescimento de Harvard.
Direitos Autorais: Project Syndicate, 2021. www.project-syndicate.org
CAMBRIDGE – A economia poderia avançar muito se flexibilizasse um dos seus pressupostos mais preciosos: o individualismo metodológico, ou a ideia de que qualquer explicação precisa estar associada a indivíduos que tomam decisões sensatas. Este requisito faz com que a disciplina esteja numa posição de enorme desvantagem em comparação às ciências naturais, porque impede a evolução da compreensão do relacionamento entre os níveis micro e macro.
A física explica todos os comportamentos assumindo algumas leis fundamentais ao nível (muito) micro. Os quarks formam os prótons e os nêutrons que, juntamente com os elétrons, criam os átomos, que por sua vez dão origem às moléculas e macromoléculas como o ADN, os genes e as proteínas. Estas produzem células, seres multicelulares, e ecossistemas inteiros que vivem num planeta que gira em torno do sol. Em teoria, deveremos conseguir explicar tudo isto se voltarmos às leis fundamentais da física das partículas. Na prática, isto não é apenas impossível, mas é também desnecessário, o que facilita o progresso.
Conhecemos todos estes níveis porque os cientistas os analisaram e descreveram com o máximo de detalhes, permitindo a outros cientistas explicá-los em termos determinantes de mais nível inferior. Cada camada pode, de alguma forma, ser relacionada com a camada inferior, e isto continuamente até chegarmos novamente aos quarks e elétrons.
Embora dar um passo atrás não seja simples, porém quase sempre viável, avançar nem que seja um passo, é difícil. Podemos chegar à sequência de aminoácidos de uma proteína a partir do gene que a codifica, mas ainda não seremos capazes de definir a forma tridimensional que a proteína assumirá, que é fundamental para determinar a sua função.
O que dificulta ainda mais as coisas é um fenômeno conhecido como emergência, que descreve a criação de uma propriedade de um nível mais elevado que não existe na ação anterior. Por exemplo, os diamantes e o grafeno têm propriedades muito diferentes, mas são quimicamente idênticos. Os neurônios dão origem à consciência, mas apenas ao nível de milhões de neurônios ligados em rede: nunca saberíamos disso se olhássemos apenas para dentro do neurónio.
Compare-se isto com a economia atual. O individualismo metodológico requer que todos os fenômenos possam, em última análise, ser explicados em termos de indivíduos que tomam decisões para as quais têm razões justificadas. O estudo de regularidades nos dados agregados (típico da macroeconomia, antes da década de 1970) é por esse motivo pouco interessante se essas não puderem ser relacionadas com o comportamento racional dos indivíduos.
Como argumenta o economista ganhador do Prêmio Nobel, Robert Lucas, os governos não poderiam confiar na estabilidade destas regularidades se as usassem para fundamentar suas políticas, porque os indivíduos responderiam a essas medidas de tal forma que comprometeriam as regularidades. Os dados podem sugerir uma correlação entre inflação e desemprego, mas se os governos tentassem “comprar” menos desemprego através de um pouco mais de inflação, as pessoas alterariam as suas expectativas relativamente à inflação de maneira a tornar fútil todo o exercício.
Por conseguinte, profissionais da economia desenvolveram modelos com robustos micro alicerces, centrados em indivíduos que tomam decisões racionais e que respondem a incentivos bem compreendidos. Para progredirem, respeitando ao mesmo tempo esses requisitos, esses profissionais tiveram que simplificar ou menosprezar as camadas de interação entre o indivíduo e os resultados agregados que tentavam explicar. Uma forma comum de se conseguir isso é assumir que todos os indivíduos são idênticos, ou que são heterogéneos de forma previsível. Mas exigir que todas as explicações econômicas sejam baseadas no comportamento individual é como tentar explicar o aquecimento global com física quântica.
Felizmente, esta abordagem metodológica está desmoronando. Ao nível micro, a economia comportamental afetou a crença no pressuposto da racionalidade individual. Numa série de artigos, Xavier Gabaix, da Universidade de Harvard, demonstrou que todas as premissas básicas da micro e da macroeconomia mudam muito se assumirmos que existem limites à racionalidade dos agentes. Da mesma forma, um colega de Gabaix em Harvard, Joseph Henrich, defende que o modo como as pessoas tomam decisões não é universal, mas que ao contrário, depende da cultura de uma sociedade.
Mais relacionada com o nosso argumento está a questão de partirmos dos indivíduos que tomam decisões e chegarmos ao nível agregado. O extremamente talentoso e já falecido economista de Harvard, Emmanuel Farhi, em colaboração com David Baqaee, da UCLA, mostrou que precisamos considerar a estrutura (não explicada) de entradas e saídas da estrutura produtiva para compreendermos as flutuações macroeconômicas: não podemos derivá-las apenas a partir de agentes representativos individuais.
De mesma forma, Pol Antràs, de Harvard, (com coautores) ultimamente está reconstruindo a teoria do comércio internacional com o pressuposto de que o mundo está organizado em cadeias globais de valor, e não em mercados tradicionais. Este pressuposto aparentemente pouco importante provoca enormes diferenças, tanto teóricas como em termos das implicações para a política do comércio. Só agora começamos a compreender o que isso significa na prática porque, até agora, nunca nos preocupamos em coletar os necessários dados entre empresas.
Vista dessa perspectiva, a teoria neoclássica do crescimento econômico parece pitoresca. Sua principal contribuição, nas palavras do economista ganhador do Prêmio Nobel, Paul Romer, é demonstrar como é difícil fundamentar o crescimento de longo prazo na teoria. Infelizmente, a teoria neoclássica tem sido quase inútil para todos os efeitos práticos, principalmente porque ignora de forma gritante as mesoestruturas que existem entre indivíduos e resultados econômicos agregados.
Felizmente, alguns pesquisadores tentaram desvendar essas mesoestruturas, utilizando grandes quantidades de dados com o estudo das redes e outras técnicas. Por exemplo, identificaram complexas estruturas de complementaridades de competências e padrões de afinidade, dentro de indústrias, classes tecnológicas e áreas científicas.
Estes estudos demonstram que as mesoestruturas são importantes para a forma como as cidades e os países crescem e como as tecnologias se desenvolvem. Dada a ortodoxia atual, esses artigos não puderam ser publicados em publicações científicas de economia, porque não conseguem demonstrar o modo como essas estruturas estão relacionadas com indivíduos que tomam decisões sob determinadas restrições. Porém, foram publicadas em veículos científicos prestigiados como a Nature e a Science , bem como no Journal of Urban Economics e na Research Policy . Consequentemente, outros pesquisadores podem colocar questões sobre o modo como estas mesoestruturas surgem, por exemplo, da tomada individual de decisões.
Nas últimas décadas, a economia deixou de se definir pelas questões que coloca, para se definir pelos métodos que utiliza. Ao restringir essa abordagem ao individualismo metodológico, comprometeu o próprio progresso.
Ricardo Hausmann, ex-Ministro de Planejamento da Venezuela e ex-Economista-Chefe do Banco Interamericano de Desenvolvimento, é Professor da Escola de Governo John F. Kennedy de Harvard e Diretor do Laboratório de Crescimento de Harvard.
Direitos Autorais: Project Syndicate, 2021. www.project-syndicate.org