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A última tentativa de Trump para manter o Apartheid nos EUA

Uma recente pesquisa de opinião mostra que a intenção de voto de jovens eleitores de 18 a 29 anos é 59% para Joe Biden contra 29% para Trump

Trump: o presidente não condena suprematistas brancos publicamente.  (Bloomberg / Colaborador/Getty Images)
Trump: o presidente não condena suprematistas brancos publicamente. (Bloomberg / Colaborador/Getty Images)
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Visão Global

Publicado em 27 de outubro de 2020 às, 16h09.

NOVA YORK – A ferocidade das eleições presidenciais de 2020 nos Estados Unidos não é sobre Donald Trump, propriamente dito, mas sobre o que ele representa: as estruturas racistas de poder que existem nos  EUA há séculos, embora às vezes de forma mutante. A longa história do racismo patrocinado pelo governo do país chegará ao fim na próxima geração, razão pela qual Trump está tão extraordinariamente reacionário em suas tentativas de prolongá-lo. No entanto, o dano que o nacionalismo branco de Trump ainda pode causar aos Estados Unidos e ao mundo se ele ganhar um segundo mandato, torna essa eleição, sem dúvida, como a mais importante na história americana moderna.

O racismo está embutido nos Estados Unidos desde a fundação das colônias americanas, com suas economias construídas sobre a escravidão dos africanos e na matança e expropriação dos nativos americanos. A escravidão tornou-se tão profundamente enraizada na sociedade americana que apenas uma sangrenta guerra civil pôs fim a ela, em contraste com a maioria dos outros países, onde o tráfico e a posse de escravos africanos terminaram pacificamente.

Quando a Guerra Civil dos Estados Unidos terminou, um breve período de emancipação afro-americana durante a era da Reconstrução (1865-76) deu lugar a um renovado sistema de repressão racista tão abrangente e sistemático que foi, na verdade, um sistema americano de apartheid. O racismo legal de Jim Crow no sul dos Estados Unidos é muito conhecido, mas a repressão e a segregação no Norte e no Oeste, incluindo moradias segregadas, flagrante discriminação no trabalho, pouca ou nenhuma escolaridade e falhas sistêmicas de justiça foram igualmente nocivas.

Em seu brilhante e eloquente livro The Color of Law (A Cor da Lei), Richard Rothstein examina como os governos federal, estaduais e locais, em colaboração com a vigilante violência branca, criaram e perpetuaram guetos afro-americanos em todo o país, enquanto subscreviam e promoviam a disseminação dos exclusivos subúrbios totalmente brancos. Muitas legislações abertamente racistas foram por fim eliminadas pelo Congresso ou revogadas pelos tribunais federais no final da década de 1960. No entanto, o racismo continuou, refletido na brutalidade policial, no encarceramento em massa de jovens negros a partir dos anos 1970, na contínua supressão dos votos negros e na discriminação generalizada no emprego. E a maioria dos subúrbios exclusivos dos Estados Unidos permaneceram quase todos brancos.

O movimento pelos direitos civis das décadas de 1950 e 1960 produziu profundas e duradouras mudanças. No entanto, também alimentou uma reação política entre os conservadores brancos, especialmente no Sul e no Centro-Oeste. Os brancos da classe trabalhadora e evangélicos que há muito faziam parte da coalizão do New Deal, de Franklin D. Roosevelt trocaram sua fidelidade para o Partido Republicano, que prometia resistir a uma maior desagregação e apoiar políticas promovidas por conservadores sociais. Essa mesma “Estratégia Sulista” ajudou a colocar Richard Nixon na Casa Branca em 1968, e depois Ronald Reagan em 1980. A mesma base rural e suburbana evangélica branca ajudou a eleger George HW Bush, George W. Bush e Trump.

Atualmente, no entanto, os americanos mais jovens apoiam muito mais a diversidade racial – e eles próprios são racialmente muito mais diversificados. Eles também são melhor instruídos. Como os campi universitários reúnem americanos de uma ampla variedade de origens, eles promovem um ambiente de vivência da diversidade, alimentando assim uma maior tolerância racial.

De acordo com uma recente pesquisa de opinião do Pew Research Center, a intenção de voto de jovens eleitores de 18 a 29 anos é 59% para Joe Biden contra 29% para Trump, que também atrai pouco apoio entre eleitores com educação superior. Eleitores com diploma de bacharel preferem Biden a Trump por uma margem de 57% a 37%. Para eleitores com pós-graduação, a margem de Biden é ainda maior, de 68% a 28%. A base de Trump está concentrada entre os protestantes mais velhos, brancos e menos escolarizados, muitos dos quais se mudaram para subúrbios exclusivos há décadas, precisamente para evitar a integração.

Em 2016, os eleitores indecisos eram indivíduos brancos, da classe trabalhadora no meio-oeste, que haviam perdido seus empregos para a automação e o comércio internacional. Muitos já haviam votado nos democratas. Trump os cortejou prometendo impedir que imigrantes e minorias competissem por seus empregos e suas moradias. Também prometeu recuperar um grande número de empregos na indústria e endurecer sua política com a China. Essa mensagem funcionou.

Este ano, no entanto, os eleitores indecisos provavelmente votarão em Biden. O desdém de Trump pela saúde pública permitiu que o COVID-19 ficasse sem controle. Junto com a economia fraca, a falta de empregos por causa da China, a perda geral de empregos na indústria desde o início da presidência de Trump e as propostas convincentes de Biden para criar milhões de empregos investindo em infraestrutura limpa e verde, a mensagem de Trump não ecoa mais para muitos desses eleitores.

Com a mudança nas atitudes demográficas e culturais dos EUA, os eleitores mais velhos e brancos pró-segregação podem reconhecer que esta eleição é sua última oportunidade. O estratagema remanescente de Trump é induzir a abstenção do eleitor, inclusive com sombrias ameaças de violência dos grupos supremacistas caso seja derrotado. Ele tem repetidamente se recusado a se comprometer com uma transferência pacífica de poder e tem sinistramente exortado os supremacistas brancos a "recuar e aguardar" até o resultado final das urnas.

À medida que sua derrota eleitoral se torna cada vez mais provável, Trump intensificou sua retórica até um ponto insustentável. O caos de uma contagem de votos contestada artificialmente é a principal chance de Trump para se manter no poder. As palavras mais encorajadoras de Trump durante toda a campanha foram sua recente reflexão de que, se perder, “talvez eu tenha que deixar o país”. O mais provável é que, após uma vida inteira de evasão fiscal e fraude financeira, a justiça o alcançará.

Se Trump de alguma forma se mantiver no poder, as consequências domésticas e globais de um regime norte-americano racista abertamente repressivo podem ser mortais. Nos EUA, grupos de supremacia branca descontrolados e desequilibrados podem estimular um avanço para a violência aberta. No cenário global, a base evangélica de Trump exibe um frenético desejo por uma guerra fria com a China, uma que exalte a xenofobia, o racismo anti-China e a histórica ignorância desses eleitores.

Tudo isso significa que as próximas semanas estarão cheias de perigos. Os Estados Unidos e o mundo não estarão seguros até que Trump vá embora.

Jeffrey D. Sachs, Professor de Desenvolvimento Sustentável e Professor de Política e Gestão de Saúde na Universidade de Columbia, é diretor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Columbia e da Rede de Soluções de Desenvolvimento Sustentável da ONU.

Tradução: Anna Maria Dalle Luche, Brazil.