A Grande Estreia de Biden
Biden vem corretamente chamando sua iniciativa de “Plano de Resgate Americano”, em vez de chama-lo de programa de “recuperação” ou “estímulo”
Bibiana Guaraldi
Publicado em 2 de fevereiro de 2021 às 13h41.
Austin – Em menos de três meses, acontecimentos conspiraram para transformar o cenário político americano. Em primeiro lugar, a pandemia DO COVID-19 derrotou Donald Trump – não porque o sentimento público neste país profundamente polarizado tenha mudado mas sim porque o vírus forçou a abertura das portas de acesso às urnas. Devido a um vasto aumento de votação antecipada e envio de cédulas pelo correio, a participação nas eleições de 2020 ultrapassou a de 2016 em 20 milhões de votos e contou com uma parcela do eleitorado maior do que qualquer eleição presidencial dos EUA desde 1900.
Em segundo lugar, graças a dez anos de organização local por ativistas pelos direitos de voto liderados por Stacey Abrams, a Geórgia substituiu seus dois senadores republicanos por democratas no segundo turno das eleições de 5 de janeiro, transferindo assim o estreito controle do Senado dos EUA para o Partido Democrático do presidente Joe Biden.
Finalmente, Trump e alguns de seus colegas republicanos incitaram uma turba para saquear o Capitólio dos Estados Unidos. Esse catastrófico erro de cálculo político resultou na morte de cinco pessoas (incluindo um policial), no segundo pedido de impeachment de Trump e na infindável desgraça dos pretensos sucessores mais agressivos do presidente derrotado, os senadores Josh Hawley do Missouri e Ted Cruz do Texas.
O momento era propício para Biden contar ao país seus planos econômicos. E quando falou, foi com foco, precisão e uma clara noção da escala e extensão de ação que a situação requer.
Biden propôs um plano de resgate que irá promover uma série de objetivos urgentes de uma só vez. Sua primeira prioridade é a saúde pública, uma questão há muito negligenciada que pode ser resolvida em parte com a criação de centros de vacinação comunitários e clínicas médicas, e com treinamento e emprego de pelo menos 100.000 novos funcionários de saúde pública nas noções básicas de controle de epidemia. Os elementos essenciais desse plano atingirão comunidades de baixa renda e minorias, bem como prisões e cadeias.
Uma segunda meta do plano Biden é o apoio à renda, que assumirá a forma de auxílio em dinheiro extra para as famílias abaixo de um certo limite, seguro-desemprego estendido e expandido, licença remunerada de emergência, subsídios para locatários e pequenas empresas e créditos fiscais para cobrir custos de creche.
Terceiro, o plano Biden visa estabilizar o federalismo com cerca de US$ 350 bilhões em apoio aos governos estaduais e locais cujas bases tributárias implodiram. Esse financiamento é urgente e necessário para manter professores, bombeiros, policiais e outros funcionários públicos essenciais no trabalho – assim como os US$ 20 bilhões adicionais que serviriam para manter o transporte público operando durante a crise.
Finalmente, o plano Biden tem um elemento de fair-play propondo um há muito esperado aumento do salário-mínimo federal para US$ 15 por hora, o que aumentaria em cerca de 30% os salários de todos os trabalhadores americanos.
Biden vem corretamente chamando sua iniciativa de “Plano de Resgate Americano”, em vez de chama-lo de programa de “recuperação” ou “estímulo”. Caso seja bem-sucedido, o pacote irá estancar a pandemia, evitará uma série de calamidades sociais e evitará o colapso dos serviços governamentais estaduais e locais. A reconstrução econômica é importante; mas é um objetivo separado que pode ser desenvolvido em um segundo pacote. Biden fez questão de reconhecer este ponto: uma vez que o plano de resgate tenha sido implementado, a reconstrução pode começar, com ênfase em infraestrutura, energia e política climática.
Entre outras coisas, esta segunda fase pode ser usada para colocar os setores avançados dos Estados Unidos de volta ao trabalho a serviço do bem-estar público e das necessidades sociais.
Esse sequenciamento é crucial, porque esses setores não vão simplesmente renascer e retornar às suas posições anteriores na economia. Agora que a pandemia afetou a construção aeroespacial, comercial e de varejo, o setor de energia e muito mais, uma ampla gama de habilidades e recursos precisará ser realocada. Um programa econômico de segunda fase poderá indicar o caminho.
Mais importante, o plano de Biden não fazia menção às palavras difíceis de Wall Street sobre déficits orçamentários ou dívida nacional. Não propõe medidas meramente temporárias que serão revertidas posteriormente, nem apela para previsões econômicas para cobrir uma lacuna entre os gastos e os resultados do programa. Dado o elenco ortodoxo da equipe econômica de Biden, isso é especialmente encorajador de se ver. Tendo se comprometido com uma ambiciosa agenda no início, será um pouco mais difícil para seu pessoal retroceder mais tarde.
Mesmo assim, três coisas que estão faltando no pacote Biden precisarão ser resolvidas no devido tempo. Primeira, nem os programas de saúde pública nem as iniciativas de infraestrutura, energia e clima proporcionarão empregos suficientes para compensar as perdas no vasto setor de serviços dos Estados Unidos. Após o declínio inevitável do trabalho de escritório e no varejo e o desaparecimento de uma ampla gama de serviços pessoais que não poderiam sobreviver à pandemia, os americanos de classe média se retiraram para suas casas nos subúrbios. Já está claro que, mais cedo ou mais tarde, um programa de empregos públicos garantidos ou sem fins lucrativos precisará ser colocado na mesa.
Em segundo lugar, para retornar à viabilidade, muitos serviços e pequenas empresas precisarão mudar para um novo tipo de domínio e acordos de compartilhamento de custos, que podem ser alcançados de forma melhor por meio de estruturas cooperativas com a devida supervisão e financiamento. E acordos semelhantes serão necessários para sustentar o trabalho de artistas, atores, músicos e escritores. Assim como no New Deal, os talentos da América precisam (e merecem) um apoio que a economia comercial não será capaz de fornecer.
Por fim, uma vez que a crise imediata tenha passado, as medidas de emergência para adiar aluguéis, hipotecas, contas de saúde e empréstimos estudantis precisarão ser submetidas a um sistema que possa amortizar, cancelar ou liquidar dívidas impagáveis de forma justa e ordenada.
Essas etapas posteriores pressupõem as anteriores. Mas depois de uma magnífica estreia, já estamos vendo os primeiros raios de uma liderança coerente, qualificada, dedicada e séria. Biden certamente é capaz de atender à emergência em questão e já aproveitou o momento. O país agora deve exigir que o Congresso aprove seu programa imediatamente.
James K. Galbraith ex-diretor executivo do Comitê Econômico Conjunto, é Professor de Assuntos Governamentais e Presidente de Relações Governamentais e Comerciais da Escola de Assuntos Públicos Lyndon B. Johnson da Universidade do Texas, em Austin. É autor de: Inequality: What Everyone Needs to Know (Desigualdade: o que todo mundo precisa saber) e Welcome to the Poisoned Chalice: The Destruction of Greece and the Future of Europe (Bem-Vindo ao Cálice Envenenado: A destruição da Grécia e o futuro da Europa).
Direitos Autorais: Project Syndicate, 2021. www.project-syndicate.org
Austin – Em menos de três meses, acontecimentos conspiraram para transformar o cenário político americano. Em primeiro lugar, a pandemia DO COVID-19 derrotou Donald Trump – não porque o sentimento público neste país profundamente polarizado tenha mudado mas sim porque o vírus forçou a abertura das portas de acesso às urnas. Devido a um vasto aumento de votação antecipada e envio de cédulas pelo correio, a participação nas eleições de 2020 ultrapassou a de 2016 em 20 milhões de votos e contou com uma parcela do eleitorado maior do que qualquer eleição presidencial dos EUA desde 1900.
Em segundo lugar, graças a dez anos de organização local por ativistas pelos direitos de voto liderados por Stacey Abrams, a Geórgia substituiu seus dois senadores republicanos por democratas no segundo turno das eleições de 5 de janeiro, transferindo assim o estreito controle do Senado dos EUA para o Partido Democrático do presidente Joe Biden.
Finalmente, Trump e alguns de seus colegas republicanos incitaram uma turba para saquear o Capitólio dos Estados Unidos. Esse catastrófico erro de cálculo político resultou na morte de cinco pessoas (incluindo um policial), no segundo pedido de impeachment de Trump e na infindável desgraça dos pretensos sucessores mais agressivos do presidente derrotado, os senadores Josh Hawley do Missouri e Ted Cruz do Texas.
O momento era propício para Biden contar ao país seus planos econômicos. E quando falou, foi com foco, precisão e uma clara noção da escala e extensão de ação que a situação requer.
Biden propôs um plano de resgate que irá promover uma série de objetivos urgentes de uma só vez. Sua primeira prioridade é a saúde pública, uma questão há muito negligenciada que pode ser resolvida em parte com a criação de centros de vacinação comunitários e clínicas médicas, e com treinamento e emprego de pelo menos 100.000 novos funcionários de saúde pública nas noções básicas de controle de epidemia. Os elementos essenciais desse plano atingirão comunidades de baixa renda e minorias, bem como prisões e cadeias.
Uma segunda meta do plano Biden é o apoio à renda, que assumirá a forma de auxílio em dinheiro extra para as famílias abaixo de um certo limite, seguro-desemprego estendido e expandido, licença remunerada de emergência, subsídios para locatários e pequenas empresas e créditos fiscais para cobrir custos de creche.
Terceiro, o plano Biden visa estabilizar o federalismo com cerca de US$ 350 bilhões em apoio aos governos estaduais e locais cujas bases tributárias implodiram. Esse financiamento é urgente e necessário para manter professores, bombeiros, policiais e outros funcionários públicos essenciais no trabalho – assim como os US$ 20 bilhões adicionais que serviriam para manter o transporte público operando durante a crise.
Finalmente, o plano Biden tem um elemento de fair-play propondo um há muito esperado aumento do salário-mínimo federal para US$ 15 por hora, o que aumentaria em cerca de 30% os salários de todos os trabalhadores americanos.
Biden vem corretamente chamando sua iniciativa de “Plano de Resgate Americano”, em vez de chama-lo de programa de “recuperação” ou “estímulo”. Caso seja bem-sucedido, o pacote irá estancar a pandemia, evitará uma série de calamidades sociais e evitará o colapso dos serviços governamentais estaduais e locais. A reconstrução econômica é importante; mas é um objetivo separado que pode ser desenvolvido em um segundo pacote. Biden fez questão de reconhecer este ponto: uma vez que o plano de resgate tenha sido implementado, a reconstrução pode começar, com ênfase em infraestrutura, energia e política climática.
Entre outras coisas, esta segunda fase pode ser usada para colocar os setores avançados dos Estados Unidos de volta ao trabalho a serviço do bem-estar público e das necessidades sociais.
Esse sequenciamento é crucial, porque esses setores não vão simplesmente renascer e retornar às suas posições anteriores na economia. Agora que a pandemia afetou a construção aeroespacial, comercial e de varejo, o setor de energia e muito mais, uma ampla gama de habilidades e recursos precisará ser realocada. Um programa econômico de segunda fase poderá indicar o caminho.
Mais importante, o plano de Biden não fazia menção às palavras difíceis de Wall Street sobre déficits orçamentários ou dívida nacional. Não propõe medidas meramente temporárias que serão revertidas posteriormente, nem apela para previsões econômicas para cobrir uma lacuna entre os gastos e os resultados do programa. Dado o elenco ortodoxo da equipe econômica de Biden, isso é especialmente encorajador de se ver. Tendo se comprometido com uma ambiciosa agenda no início, será um pouco mais difícil para seu pessoal retroceder mais tarde.
Mesmo assim, três coisas que estão faltando no pacote Biden precisarão ser resolvidas no devido tempo. Primeira, nem os programas de saúde pública nem as iniciativas de infraestrutura, energia e clima proporcionarão empregos suficientes para compensar as perdas no vasto setor de serviços dos Estados Unidos. Após o declínio inevitável do trabalho de escritório e no varejo e o desaparecimento de uma ampla gama de serviços pessoais que não poderiam sobreviver à pandemia, os americanos de classe média se retiraram para suas casas nos subúrbios. Já está claro que, mais cedo ou mais tarde, um programa de empregos públicos garantidos ou sem fins lucrativos precisará ser colocado na mesa.
Em segundo lugar, para retornar à viabilidade, muitos serviços e pequenas empresas precisarão mudar para um novo tipo de domínio e acordos de compartilhamento de custos, que podem ser alcançados de forma melhor por meio de estruturas cooperativas com a devida supervisão e financiamento. E acordos semelhantes serão necessários para sustentar o trabalho de artistas, atores, músicos e escritores. Assim como no New Deal, os talentos da América precisam (e merecem) um apoio que a economia comercial não será capaz de fornecer.
Por fim, uma vez que a crise imediata tenha passado, as medidas de emergência para adiar aluguéis, hipotecas, contas de saúde e empréstimos estudantis precisarão ser submetidas a um sistema que possa amortizar, cancelar ou liquidar dívidas impagáveis de forma justa e ordenada.
Essas etapas posteriores pressupõem as anteriores. Mas depois de uma magnífica estreia, já estamos vendo os primeiros raios de uma liderança coerente, qualificada, dedicada e séria. Biden certamente é capaz de atender à emergência em questão e já aproveitou o momento. O país agora deve exigir que o Congresso aprove seu programa imediatamente.
James K. Galbraith ex-diretor executivo do Comitê Econômico Conjunto, é Professor de Assuntos Governamentais e Presidente de Relações Governamentais e Comerciais da Escola de Assuntos Públicos Lyndon B. Johnson da Universidade do Texas, em Austin. É autor de: Inequality: What Everyone Needs to Know (Desigualdade: o que todo mundo precisa saber) e Welcome to the Poisoned Chalice: The Destruction of Greece and the Future of Europe (Bem-Vindo ao Cálice Envenenado: A destruição da Grécia e o futuro da Europa).
Direitos Autorais: Project Syndicate, 2021. www.project-syndicate.org