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A competição entre moedas e o papel da tecnologia na evolução do dinheiro

Para nossa reflexão sobre moedas estatais, moedas privadas e a evolução do dinheiro, objetivo do artigo de hoje, é necessário darmos alguns passos atrás, e compreendermos porque o dinheiro surgiu. Por causa da divisão do trabalho, e da necessidade de transacionarmos (mercadorias e serviços), a humanidade precisou otimizar e ampliar nossas possibilidades de transação direta. […]

 (Dem10/Getty Images)
(Dem10/Getty Images)
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Tatiana Revoredo

Publicado em 20 de dezembro de 2020 às, 10h00.

Para nossa reflexão sobre moedas estatais, moedas privadas e a evolução do dinheiro, objetivo do artigo de hoje, é necessário darmos alguns passos atrás, e compreendermos porque o dinheiro surgiu.

Por causa da divisão do trabalho, e da necessidade de transacionarmos (mercadorias e serviços), a humanidade precisou otimizar e ampliar nossas possibilidades de transação direta.

A solução encontrada foi a criação de um saldo líquido “descentralizado”, isto é, sistemas líquidos descentralizados expressos em "tokens", que funcionavam mais ou menos assim: Eu dou a você um “token”, um "dinheiro simbólico", que é representação da possibilidade de se conseguir algo em nossa sociedade (um produto, um serviço). E você pode dar este token para outra pessoa, em troca de uma mercadoria ou serviço.

Desde modo, podemos pensar no “dinheiro” como um “mecanismo de manutenção de registros eficiente de informações”, que permite a negociação descentralizada e direta em transações comerciais. Esta definição de dinheiro, por sua vez, tem muitas implicações interessantes, e para nosso objetivo é importante destacarmos três.

Primeira, o dinheiro é uma criação do homem. Ele foi criado por indivíduos, seja ele dinheiro privado (depósitos de varejo, e-money e stablecoins) ou dinheiro público (notas e moedas que temos no bolso e As Reservas no Banco Central). Criptoativos como Bitcoin, emitidos por algoritmos criptográficos em blockchain de código aberto, são uma nova espécie de ativo (digital e com alcance global) e, portanto, não entrariam nesta classificação.

Uma segunda implicação seria que o dinheiro pode ser algo sem utilidade (como conchas, pedras, metais, papel), ou pode representar a reivindicação de ativos. Alem disso, um token pode representar diferentes graus de "dinheiro" (dinheiro não como substantivo, mas como qualidade, representativo de vários graus de liquidez, como bem definiu Hayek).

No tocante à terceira implicação, a mais importante para este artigo, é: “quem fala em dinheiro, está falando em atritos, em “fricções comerciais”.

Quanto tempo demorou para cartões de crédito implementarem o “chip”e o “pin”?; isto é fricção comercial. Transferir dinheiro entre fronteiras e efetuar câmbio entre moedas é caro; isso é fricção comercial. Se um empreendedor indiano consegue abrir uma empresa em minutos, mas possui dificuldades em conseguir empréstimos e receber pagamentos; isso é fricção comercial.

Nosso acesso e nossa habilidade para transacionarmos uns com os outros é a razão pela qual o dinheiro surgiu. O dinheiro existe porque não podemos presumir (ou ter como certo) que os mercados e as transações comerciais sempre terão um bom desfecho, um resultado satisfatório (fricções comerciais).

Compreendida a razão do surgimento do dinheiro, podemos avançar em nossa reflexão sobre quais os melhores arranjos da sociedade para o dinheiro. Devemos abraçar o dinheiro privado? Ou devemos adotar apenas o dinheiro estatal?

O interessante aqui é que historicamente, o dinheiro foi criado por um acordo privado, uma aliança entre particulares. O “dinheiro commodity” surgiu, por exemplo, da decisão de indivíduos que convencionaram usar “tokens” para contornar as fricções comerciais.

A cunhagem de moeda só passou a ser realizada pelos governos (moeda estatal) bem mais tarde, como podemos observar na linha do tempo da história do dinheiro.

O dinheiro como estamos acostumados hoje (uma moeda fiduciária emitida por um Banco Central), nada mais é do que a “convenção de um cupom circulante ao portador” que usamos para negociar, e para liquidar transações.

Mas note, além do dinheiro estatal, da moeda fiduciária, existem muitas outras maneiras de realizarmos essas operações.

Aqui, é importante destacarmos como a forma e a organização do dinheiro depende, fundamentalmente, da tecnologia existente à época.

Por séculos e séculos, a sociedade vem desenvolvendo uma relação constante entre a mudança tecnológica e o avanço do dinheiro. E um exemplo dessa relação direta entre evolução do dinheiro e avanço tecnológico é justamente o Bitcoin cujo surgimento só foi possível devido ao aprimoramento de tecnologias como criptografia, redes distribuídas, e mecanismos de consenso.

Todos os meios de comunicação, universidades, organismos internacionais e autoridades monetárias dos países estão discutindo CBDCs, Stablecoins, bem como o que é dinheiro, porque a evolução da tecnologia possibilitou o surgimento do Bitcoin e dos criptoativos. E a origem dos criptoativos se deu pelo aprimoramento de um ramo da matemática, a criptografia.

Criptografia estuda como garantir a segurança nas comunicações — mascarar informações para que possam ser escondidas à vista de todos, e verificar uma parte da fonte de informação. Ela sustenta muitos dos sistemas ao nosso redor, e é tão poderosa que governos já a consideraram como uma arma.

Durante a Segunda Guerra Mundial, quebrar criptossistemas como o “Enigma” foi fundamental para decodificar as transmissões inimigas e virar a maré da guerra. Hoje, qualquer pessoa com um navegador moderno está executando um cripto-sistema bastante sofisticado. É o que usamos para proteger nossas interações na Internet; é o que torna seguro digitar nossa senha e enviar informação financeira a sites, enviar pagamentos via internet e potencializar a Economia da Web.

Logo, não há como levar adiante discussões acerca dos impactos da regulação sobre aspectos político-econômicos e financeiros, sem antes debater a atual tecnologia, a infraestrutura e a arquitetura da internet.

Outro exemplo interessante da relação entre tecnologia e o dinheiro, é o fato de que a computação mudou drasticamente a logística da distribuição do dinheiro. Se olharmos para os países europeus, na transição das moedas nacionais para o Euro, a logística exigiu um esforço enorme, com anos de operação.

Hoje em dia, contudo, a distribuição logística do dinheiro é muito fácil, usando um código de computador para distribuir dinheiro mais rapidamente; sem desconsiderar, claro, que atualmente enfrenta-se outros problemas como técnicas criptográficas, contratos inteligentes e mitigação de risco cibernético.

Agora que vimos a importância da tecnologia na evolução do dinheiro, seguindo com o objetivo de nosso artigo – analisar a competição entre moeda estatal e privada, algumas perguntas se fazem necessárias...

O dinheiro privado é uma boa alternativa ao dinheiro estatal? Os sistemas de dinheiro privado serão capazes de proporcionar estabilidade de preços? Sistemas de dinheiro privados conseguirão entregar a quantidade ideal de dinheiro para a sociedade?

E as respostas a tais perguntas certamente se encontram no que mencionamos no início de nosso texto. Ao falarmos em dinheiro, necessariamente estamos falando sobre “fricções comerciais”.

Tal significa que devemos preferir necessariamente um dinheiro público? Não, necessariamente. O dinheiro público está sujeito a uma série de circunstâncias, notadamente por motivos de ordem política. Daí, é preciso avaliar as situações particulares de cada país.

Qual a política monetária aplicada? Quais ferramentas estão disponíveis para os problemas mais complexos? Que tipo de ineficiência inata aos atritos comerciais traz implicações que o dinheiro privado não terá um bom desempenho? E quais considerações político-econômicas deve-se fazer para avaliar, se o dinheiro público será ou não uma boa escolha?

Por fim, gostaria de fazer uma breve observação sobre a evolução do dinheiro estatal. Em particular, sobre as Moedas Digitais do Banco Central – as Central Banks Digital Currencies (CBDCs).

As pessoas têm usado as mesmas palavras para significar algo muito diferente. E na literatura e no debate político, no momento, existem dois tipos de CBDC.

Um é o CBDC simples, onde os bancos centrais controlam a tecnologia e o sistema de liquidação; e o setor privado distribui as carteiras digitais para que você possa usar o dinheiro do banco central no cyber espaço.

E o outro tipo de CBDC é o sintético ou híbrido, onde o setor privado emite e distribui as moedas digitais estatais, totalmente respaldado pelas reservas do Banco Central e sob sua supervisão.

Nele, a emissão integral é garantida, por Reservas do Banco Central, e a inovação tecnológica, o assentamento é feito pela iniciativa privada. E os que defendem a CBDC híbrida argumentam que sua razão de ser reside no fato do setor privado ser “historicamente” mais capaz de inovar, e responder às mudanças tecnológicas.

As moedas privadas são uma boa alternativa às moedas estatais? Onde as criptomoedas se encaixam nesta história? Qual tipo de CBDC você acha que prevalecerá no futuro próximo?

Pense nisto até nosso próximo encontro. Vamos descobrir juntos qual será o futuro do dinheiro. Mantenha a curiosidade em alta e, até breve!