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Heróis da pandemia: Katalin Karikó

As descobertas da pesquisadora Katalin Karikó formada em bioquímica foram fundamentais para o desenvolvimento de vacinas contra a covid-19

Vacina da Moderna: o imunizante é um dos que usam a técnica do RNA mensageiro, que teve a contribuição da cientista Katalin Karikó (Bing Guan/Bloomberg/Getty Images)
Vacina da Moderna: o imunizante é um dos que usam a técnica do RNA mensageiro, que teve a contribuição da cientista Katalin Karikó (Bing Guan/Bloomberg/Getty Images)
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Taciana Pereira

Publicado em 23 de abril de 2021 às, 08h05.

Última atualização em 23 de abril de 2021 às, 11h39.

A luz no fim do túnel para a pandemia da covid-19 parece estar longe, especialmente no Brasil. Mas ela existe. Graças a pesquisadores como Katalin Karikó e tantos outros que trabalharam por décadas em tecnologias à frente de seu tempo, o mundo viu o mais rápido desenvolvimento de uma vacina da história. Hoje, pouco mais de um ano após o início da maior pandemia desde 1918, milhões são vacinados diariamente contra a covid-19.

Katalin Karikó nasceu na Hungria, onde obteve um PhD em bioquímica pela Universidade de Szeged. Filha de açougueiro, não conhecia cientistas quando decidiu trilhar esse caminho. Em 1985, três anos após se formar, foi para os EUA fazer um pós-doutorado na Temple University (Filadélfia, Pensilvânia). Depois, em 1989, assumiu o posto de Professora Adjunta na University of Pennsylvania, focando sua pesquisa no desenvolvimento de terapias com base na tecnologia de mRNA (o RNA mensageiro).

Para entender como o mRNA funciona, podemos usar a analogia de um livro de receitas que fica guardado em uma biblioteca. Para fazer um bolo de chocolate, por exemplo, seria necessário ir até a biblioteca, abrir o livro e copiar a receita para, então, ir até a cozinha e preparar o bolo. A cópia da receita tem o mesmo papel que o mRNA, que vai do núcleo da célula ("biblioteca"), onde está o DNA com todo nosso código genético ("livro de receitas"), até uma estrutura específica ("cozinha") que produz as proteínas ("bolo de chocolate") nele codificadas. O “m” (de mRNA) se refere ao termo “mensageiro” e o RNA é uma molécula mais simples que o DNA, mas que também guarda sequências genéticas.

(Taciana Pereira/Divulgação)

Desde que o mRNA foi isolado, na década de 60, cientistas buscam entender suas potenciais aplicações. A partir dos anos 90, essa tecnologia começou a ser mais explorada para fins terapêuticos, com o anseio de que um dia pudesse ser a base de imunoterapias, vacinas, ou até suplementar ou substituir proteínas afetadas por certas doenças.

A ideia para o uso dessa plataforma em vacinas, em resumo, é a seguinte: se o mRNA é um código que contém instruções para a produção de proteínas, poderíamos fabricar um mRNA sintético com o código de uma proteína viral para que o nosso corpo produzisse essa proteína e o nosso sistema imunológico fosse treinado a atacá-la. Assim, caso infectados pelo vírus, já teríamos anticorpos para neutralizá-lo e não desenvolveríamos a doença. As vacinas tradicionais, por outro lado, utilizam o vírus inativado ou então partes do vírus como imunizante, o que torna o processo de desenvolvimento mais difícil.

No entanto, nos testes iniciais de injeção do mRNA em animais, verificou-se uma reação inflamatória tóxica que inibia o resultado terapêutico esperado. Isso fez com que muitos passassem a ver o uso da tecnologia de mRNA para fins terapêuticos como "loucura". Mas não Karikó. Diante desse obstáculo, a cientista não conseguiu bolsas de pesquisa do governo americano e acabou sendo rebaixada de seu posto na University of Pennsylvania. Ela se questionou, achando que talvez não fosse boa ou inteligente o suficiente. Ainda por cima, nessa mesma época, teve que enfrentar uma batalha contra o câncer.

Depois de uma década de pesquisa, ela e seu colaborador Drew Weissman, da Escola de Medicina da University of Pennsylvania, conseguiram alcançar um ponto crucial no desenvolvimento da plataforma terapêutica. Eles descobriram que se o mRNA tivesse a adição de uma sequência sintética específica, eles poderiam acabar com a reação inflamatória que observavam.

A descoberta dessa modificação viabilizou o desenvolvimento da tecnologia para o uso em vacinas, e foi licenciada pela Moderna e pela BioNTech, que tiveram os primeiros imunizantes aprovados para covid-19 nos EUA, em dezembro de 2020. Isso somente foi possível graças ao investimento maciço nessas empresas ao longo da última década.

Se não fosse pelo investimento em inovação, não teríamos uma vacina que pudesse ser fabricada tão rapidamente com eficácia acima de 90%. As vacinas tradicionais da influenza, por  exemplo, normalmente tem eficácia de 40-60%, enquanto as vacinas de mRNA da Pfizer/BioNTech e Moderna apresentaram eficácia de 95% e 94.1% contra a covid-19, respectivamente. Além de contribuir para o eventual fim da pandemia, essas empresas também estão trabalhando no desenvolvimento de vacinas contra o câncer, doenças raras e doenças infecciosas que hoje não tem imunizante, usando a mesma plataforma.

Karikó ganhou um posto na BioNTech de vice-presidente sênior em 2013, manteve sua posição de professora na University of Pennsylvania e hoje está cotada, junto com Weissman, para receber o Prêmio Nobel. Muito mais do que isso, por causa do seu trabalho, milhões de vidas estão sendo salvas.

No decorrer da nossa história, a ciência e cientistas enfrentaram (e enfrentam) inúmeros desafios. Muitos deles vão além do âmbito técnico - a falta de financiamento, a descrença, o desrespeito ao sermos acusados de fazer "balbúrdia". Se Karikó tivesse desistido, talvez não teríamos uma solução tão rápida para o fim dessa crise. E é com os cientistas de hoje que poderemos prevenir futuras pandemias.